O Homem da Rua Lopes Chaves
Foi há mais de setenta anos que o coração de Mário de Andrade deixou de bater, no dia 25 de fevereiro de 1945, o coração paulistano que ele pedira em seu poema que afundassem no Pátio do Colégio, e que a cabeça esquecessem na rua Lopes Chaves.
Meus pés enterrem na rua Aurora,
No Paissandu deixem meu sexo,
Na Lopes Chaves a cabeça
Esqueçam.
No Pátio do Colégio afundem
O meu coração paulistano:
Um coração vivo e um defunto
Bem juntos.
Carlos Drummond de Andrade, seu amigo, dedicou a ele uma das mais bonitas elegias da poesia brasileira, seu “Mário de Andrade desce aos infernos”: “Mais perto, e uma lâmpada. Mais perto, e quadros, / quadros. Portinari aqui esteve, deixou / sua garra. Aqui Cézanne e Picasso, / os primitivos, os cantadores, a gente de pé-no-chão, / a voz que vem do Nordeste, os fetiches, as religiões, / os bichos… Aqui tudo se acumulou, / esta é a Rua Lopes Chaves, 546, / outrora 108. Para aqui muitas vezes voou / meu pensamento. Daqui vinha a palavra / esperada na dúvida e no cacto. / Aqui nunca pisei. Mas como o chão / sabe a forma dos pés e é liso e beija!”
Esta semana, foi aberta ao público em São Paulo a casa de Mário de Andrade na famosa Rua Lopes Chaves. Na Festa Literária Internacional de Paraty deste ano, é ele o homenageado. Os últimos anos viram a publicação, pela editora da Universidade de São Paulo, de sua correspondência com Tarsila do Amaral, Manuel Bandeira, Henriqueta Lisboa e Luiz Camillo de Oliveira Netto.
Por duas décadas, o poeta paulistano foi um dos dínamos da cultura brasileira, apaixonado e falho, como convém ao Brasil. Poeta, romancista, contista, crítico literário, musicólogo (pioneiro da etnomusicologia), ensaísta. Percorreu o país coletando cultura. Canções, poemas. Um dos idealizadores e fundadores do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, com Rodrigo Melo Franco (1898-1969), foi também o primeiro diretor da mais importante biblioteca pública paulistana, que hoje leva seu nome.
Foi um dos primeiros modernistas a sair de cena. Morreu em um ano fulcral para o país, oito meses antes do fim da ditadura estadonovista de Getúlio Vargas. O mundo ainda se encontrava em guerra, mesmo que os soviéticos já tivessem entrado na Alemanha pelo leste, e os americanos pelo oeste. Para nós, parece uma figura distante, emoldurada. Oswald de Andrade ainda viveria para ver Getúlio Vargas retornar ao poder e suicidar-se em 1954. Manuel Bandeira viveria para ver o país mergulhar no novo pesadelo ditatorial de 1964, morrendo exatos dois meses antes do AI-5 afundar o país de vez no terror. Carlos Drummond de Andrade sobreviveria a ditaduras e redemocratizações sucessivas.
Este não é o espaço para recontar os percalços da recepção crítica da obra de Mário de Andrade. Posso falar por mim, pelo tempo em que me vi desperto, respirando. A julgar por meus companheiros de geração, com os quais me correspondo, e por minhas próprias impressões, quando cheguei à cena sua obra parecia envelhecida, datada. Os anos 90, com a admiração pela obra enxuta e antilírica de João Cabral de Melo Neto, não pareciam encontrar muita serventia para o mais desbragadamente lírico dos poetas modernos brasileiros.
Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta,
As sensações renascem de si mesmas sem repouso,
Ôh espelhos, ôh Pireneus! Ôh caiçaras!
Si um deus morrer, irei no Piauí buscar outro!
Abraço no meu leito as milhores palavras,
E os suspiros que dou são violinos alheios;
Eu piso a terra como quem descobre a furto
Nas esquinas, nos táxis, nas camarinhas seus próprios beijos!
Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta,
Mas um dia afinal eu toparei comigo…
Tenhamos paciência, andorinhas curtas,
Só o esquecimento é que condensa,
E então minha alma servirá de abrigo.
Sua insistência numa grafia brasileira, seguindo a fala do povo, parecia uma ilusão de pertencimento que o homem privilegiado de São Paulo nutria de forma sincera, mas equivocada. Lembro-me de ler seu poema “Descobrimento”, sobre aquele “homem pálido magro de cabelo escorrendo nos olhos, / Depois de fazer uma pele com a borracha do dia, / Faz pouco se deitou, está dormindo. // Esse homem é brasileiro que nem eu”, e pensar: “Não, Mário, não é”, irritado com o que me parecia uma visão demasiado romântica das desigualdades regionais do país. É claro que a incompreensão era minha, não do homem da Rua Lopes Chaves. Na aura pseudocosmopolita daqueles anos (esta foi a nossa ilusão, o nosso equívoco), o nacionalismo de Mário de Andrade (e de seus companheiros, em menor medida) parecia-me simplesmente cafona.
Em Oswald de Andrade, a busca por uma poesia genuinamente brasileira levara às experimentações poéticas da Poesia Pau-Brasil, que até mesmo nos permitiriam discuti-lo hoje como um precursor do que mais tarde se tornaria uma prática da Internacional Situacionista, ou de um poeta como o austríaco Heimrad Bäcker [ver meu texto “Austríacos em meus olhos e ouvidos”], da poesia conceitual contemporânea – com suas apropriações dos textos coloniais portugueses. Deu-nos os romances experimentais e estimulantes como ainda são as Memórias Sentimentais de João Miramar (1924) e Serafim Ponte Grande (1933). E mesmo sua lírica desbragada, como no lindíssimo Cântico dos Cânticos para Flauta e Violão (1942), tem outra pegada, outra firmeza de mão. Quanto à poesia lírica de Manuel Bandeira, este jamais abandonou a limpidez, a clareza. Sua relação com a fala popular era outra, talvez mais sóbria e consciente.
Mário de Andrade, comparado a eles, era exagerado, um poeta que se abismava. É o brasileiro que negamos, que temos certa vergonha de ser, com nossas lágrimas – verdadeiras – derramadas sobre uma bandeira com lema positivista. Mário nos constrange porque nos constrangemos de nós mesmos. De nosso desbordamento, de nossas contradições. Talvez por isso sua prosa nos pareça ainda o que tem de mais fresco, mais vivo, pois nelas estas contradições parecem encontrar uma síntese. Macunaíma (1928) é um texto em que sua preocupação com a brasilidade e a experimentação vanguardista encontram seu equilíbrio. Jamais será compreensível para um estrangeiro, é bem provável, mas é uma das joias de nossa vanguarda histórica.
Aqui, tentando chegar ao fim do que se quer apenas uma homenagem meio capenga e cheia de confissões tolas sobre o homem da rua Lopes Chaves, preciso tocar em outro tema. Pois, para mim, há algo que por vezes ainda irrita minha sensibilidade quando penso em Mário de Andrade: a eterna negação e pergunta jamais respondida sobre sua sexualidade. Sei que alguns dirão que isso não importa. É óbvio que o sigo admirando pelos textos e pelos trabalhos práticos que nos doou. Sei também que é necessário pensar em seu contexto histórico, no Brasil em que vivia, onde mesmo homens inteligentes como Oswald e Drummond foram capazes de seus momentos de homofobia. Quando penso no tiro no peito que o grande Raul Pompeia infligiu a si mesmo no natal de 1895, compreendo o silêncio de Mário de Andrade, caso tenha sido realmente silêncio.
Estes dois escritores, com suas reputações de “hipersensíveis”, sobre os quais o “fantasma da homossexualidade” sempre paira, complicado, gerando em críticos as desculpas e comentários mais constrangedores, com seus silêncios e suas defesas de honra, por fim seriam os que nos deram alguns dos textos brasileiros mais significativos e corajosos sobre a sexualidade. O Ateneu (1888), de Raul Pompeia, é um livro presciente das discussões que tomariam de assalto o século 20. E Mário de Andrade, em contos como “Frederico Paciência” e, especialmente, em “Atrás da Catedral de Ruão”, criaria tanto uma imagem luminosa do homoerotismo (“Frederico Paciência era aquela solaridade escandalosa”), como uma imagem tenebrosa de nossas neuroses sexuais, com aquele final memorável, assustador, carregado de violência, que é a cena da perseguição imaginada por Mademoiselle atrás da Igreja de Santa Cecília. A equação entre sexualidade e violência em Raul Pompeia e Mário de Andrade parece-me algo que só seria enfrentado de frente pelo abertamente homossexual Lúcio Cardoso, em Crônica da Casa Assassinada (1959), e mais tarde por Hilda Hilst e Roberto Piva, estes que jamais tiveram medo de coisa alguma – certamente não da violência que cerca o sexo em nosso mundo.
Hoje, eu próprio um lírico desbragado, indecoroso, exagerado, celebrando ininterruptamente meus Fredericos Paciências, testando minha mão nos meus próprios poemas pseudo-dialetais, olho para a figura de Mário de Andrade com respeito, com carinho, e respeito suas falas e seus silêncios.