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“Os ilhados”, de Ismar Tirelli Neto

A editora carioca 7Letras acaba de lançar Os ilhados (Rio de Janeiro: 7Letras, 2015), terceiro livro do poeta e prosador carioca Ismar Tirelli Neto, nascido em 1985. Com este volume, este jovem senhor de 30 anos de idade mostra-nos que o velho discurso das promessas, quando se trata de jovens autores, já não lhe cabe mais. Ele acaba de dar-nos um livro belo e de mão firme. Alguns pensarão que estou tentando dar passagem só de ida ao livro para dentro do cânone, mas esta anda sendo a última de minhas preocupações. Vocês ainda não notaram o nível do mar? Estamos próximos do fim. Para os seres que habitam o livro de Ismar Tirelli Neto, parece que já estão ilhados em seus prédios de dezenas de andares.

Comecemos pelo título: Os ilhados alerta o leitor, desde a capa, que ele está prestes a entrar em território de isolamento, dando a justa dimensão da existência das personagens que o habitam. Mas, personagens ou vozes? Talvez seja uma discussão inevitável, e tentarei conduzi-la da maneira menos desencaminhadora possível. Formado em parte considerável por textos que ocupam toda a página, de margem a margem, o leitor poderia crer estar diante de um livro que contém, a meu ver, alguns dos melhores contos publicados ultimamente. Mas há também os muitos textos que lançam mão da quebra-de-linha, poesia à vista.

unnamedEsta conversa talvez seja ociosa. Mesmo os críticos mais sazonados hesitam à hora de traçar a linha que possa separar os gêneros, especialmente neste nosso tempo de misturas e indefinições. Algumas das funções incorporadas pela prosa nos últimos séculos, como a narratividade que a estrutura na maior parte dos casos, foram desenpenhadas pela poesia por milênios. Mesmo a narratividade como efeito poético, hoje em dia, é usada por alguns poetas contemporâneos, como Marília Garcia em seu Um teste de resistores (Rio de Janeiro: 7Letras, 2014), livro que já discuti aqui [“Marília Garcia e um teste de resistores”, DW Brasil, 12.12.2014]. Mas no trabalho de Garcia vemos outro efeito, através do minar a poesia de seus elementos mais reconhecíveis, como a metáfora ou os vários efeitos sonoros, concentrando-se na voz e na performance. Talvez a maneira mais segura continue sendo a de Roman Jakobson: a função poética é aquela que faz com que a linguagem chame para si a atenção do leitor. Mas são muitas as maneiras com que a linguagem festeja-se. E talvez o mais difícil de definir seja o que poderíamos chamar de controle do tom. Portanto, mesmo estas definições podem ser enganadoras. Como definir o mais poético: a prosa plena de poeticidade de João Guimarães Rosa ou a poesia plena de prosaísmo de Manuel Bandeira?

Num belo retrato do autor, escrito por Bolívar Torres [“Ismar Tirelli Neto e a arte da irrealização”, O Globo, 11.07.2015], a ênfase voltou-se para a biografia de Ismar Tirelli Neto como forma de compreensão deste seu último trabalho. É certo que a personalidade do carioca é formadora de sua escrita, desde o seu primeiro bom poema publicado, aquele que anunciava a promessa, “Ansiedades quanto a uma academia”, incluído em seu primeiro livro, Synchronoscopio (Rio de Janeiro: 7Letras, 2008). Desde então, Ismar Tirelli Neto publicou ainda Ramerrão, pela mesma editora em 2011, e vem se mostrando um dos autores mais atentos e capazes de exercitar o léxico da língua, dono, sim, de uma personalidade que devora tudo e nos devolve artefatos de linguagem, em especial seu interesse pelo cinema e pela canção de fossa. Quando Ramerrão foi lançado, escrevi em linguajar pedante-especializado para a Modo de Usar & Co.: “Uma das características que mais me interessam em seu trabalho é como sua composição, nos melhores momentos, parece oscilar entre hipotaxe e parataxe, entre o linear e o desconexo, criando um encadeamento de imagens e ideias que surpreendem, mas ao mesmo tempo encaixam-se com uma naturalidade da voz, a voz dos bons de papo.”

Pois ler Ismar Tirelli Neto é como estar diante de alguém que fala tanto com inteligência como com exuberância. Suas encadeações de argumento desconexas, sua escrita elíptica, mostram-se tanto nos textos que ocupam toda a página como nos poemas propriamente ditos. Mas é interessante notar como a linguagem se materializa mais nos textos em prosa, com o estranhamento da mescla dos registros culto e popular, resgatando palavras de outros ambientes, porque ali funcionam e nos levam a estas vidas isoladas e descritas com carinho e agressão ao mesmo tempo, de um mundo que parece ter perdido o dom de compartilhar, ainda que “compartilhar” seja um dos verbos mais usados nestes tempos de redes sociais.

A mim, o que principalmente importa é o prazer da linguagem através da exuberância da língua, e neste talento ele aproxima-se de seu conterrâneo Victor Heringer, ainda que sejam autores de índoles muito distintas. Talvez a melhor maneira seja remeter o leitor ao próprio texto de Ismar Tirelli Neto, como neste início de “As mães em chamas”:

“Desde que pôs os pés aqui dentro, já quase não tenho forças para visitar ninguém. Isto deve ter sido em fins de março. De lá para cá, não houve um só instante de paz. Abro a porta e lá está ela – a mãe, em chamas. Tento me explicar, não posso, não estou em casa. Mas ela passa por mim estalando, senta-se no sofá sem dar acordo do que digo. O que é, mãe? É dinheiro? Precisa de dinheiro? São os tranquilizantes? Eu não tenho tranquilizantes. O que tenho? Receio que as línguas de fogo acabem se alastrando pelo sofá, mas parecem inteiramente circunscritas à sua figura breve, acaixotada. Ela já não foi assim, evidente, houve tempo que não era assim –, como nos comove pensar que houve tempo que não era assim, que eu não andava tão ocupado –, da missa –, a metade –, coloco a distância avisada. Longo tempo permaneço chegado à porta, a mão sobre a maçaneta, o rosto voltado em sua direção. Minha mãe se volta com o fogo para mim. Minha mãe se volta com o fogo para mim. Minha mãe faz com o fogo inúmeros gestos exasperados sem finalidade aparente. Crepita, estala, balbucia. Sua voz rompe o mosquiteiro negro e ocupa com um espesso ruído eletrônico. Essa voz, esse som, tão volumoso que não consigo me acercar. Continuo chegado à porta, a mão na maçaneta, o rosto voltado em sua direção. O que significa? Que derrota tomar? Ela se volta com o fogo para mim. No corredor, uma pinha de passantes. Limpo a garganta, tusso, peço desculpas. Como é antigo este vaudeville. Devo pegar um balde d’ água, minha mãe? Devo tremer? Devo telefonar para alguém? Quer que eu prepare um escalda-pés? Pequenos pedaços chamuscados de papel vão saltando dela, antes de pousarem no piso riscado riscam no ar uns adejos tolos – sei que se trata de um pedido, sei que querem algo de mim, algo talvez importantíssimo, mas o quê? Sinto-me culpado, não sei que derrota tomar, rebusco em mim mesmo algum escrúpulo de lealdade.” – Ismar Tirelli Neto, Os ilhados (Rio de Janeiro: 7Letras, 2015).

Aqui vemos exemplificado o que tento argumentar sobre o livro: a narratividade atenta à materialidade da língua, o controle de tom, o uso do léxico, com um vocabulário que vai do “escalda-pés” à “pinha de passantes”. É uma experimentação da língua com febre, que busca o real através da hipersensibilidade, e seu uso da língua portuguesa poderia ligá-lo aos mais diversos autores, de Otto Lara Resende a Hilda Hilst, mas, como cada um eles, de maneira pessoalíssima. Pensando em alguns de seus textos como contos, por vezes me veio a escrita de Donald Barthelme e Lydia Davis à mente.

Ezra Pound escreveu certa vez que deveríamos prestar atenção nos poetas, que talvez seus comportamentos aparentemente estranhos possam indicar simplesmente que estão vendo uma catástrofe formar-se, catástrofe que ainda não se tornou visível a todos. É nisto que escolho não ver este belo, triste e por vezes claustrofóbico livro de Ismar Tirelli Neto como fruto das possíveis derrotas pessoais do autor, mas ver nestas vozes-personagens um alerta de nossas catástrofes vindouras, quando talvez estaremos todos ilhados, verdadeira e literalmente ilhados, não em nossas vidas, mas em nossas sobrevivências. Como tantos de nós já estamos.

Data

sábado 15.08.2015 | 10:00

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