Nota sobre “Sala de chuto”, de Rui Caeiro
Em Lisboa, há duas semanas, em uma leitura organizada pelo poeta Miguel Martins como o faz todas as quintas-feiras no excelente Teatro A Barraca, vi Alexandra Lucas Coelho conversando com um senhor que me parecia familiar e perguntei ao lendário Changuito, com quem tagarelava àquela altura: “quem é aquele senhor conversando com Alexandra?”
“Ora, é o Rui Caeiro.” Soube então que o reconheci por uma das raras fotos do autor, fornecida pelo próprio Changuito a mim em 2013, quando preparamos uma pequena amostra dos textos de Rui Caeiro para a revista que edito, Modo de Usar & Co. Caeiro é um destes excelentes escritores da língua portuguesa que evitam as ninharias do mundo literário. Nossa língua flui na escrita destes homens e mulheres, mas nossos centros de comunicação, tão frequentemente surdos e capengas, os escondem mais amiúde do que seria aconselhável para nossa saúde. Conversei com o autor por um tempo, o que foi uma honra e um prazer, dado ser ele o cavalheiro que é. Bom comprovar, a cada vez nova, como a mesquinharia é algo que vai de mão em mão com os medíocres. Os grandes que tive a honra de conhecer, até hoje, foram invariavelmente generosos. Ao fim da conversa, Rui Caeiro apertou em minhas mãos seu último livro, Sala de chuto (Lisboa: Edição do autor, 2015), com desenhos de Mariana Gomes.
Na manhã seguinte, após um café com o poeta brasileiro radicado em Lisboa Ederval Fernandes, pus-me a ler o livro próximo à Torre de Belém. Com apenas 32 págins, lê-se-o de um jato, mas um jato de raio lúcido, tal a clareza de olhos abertos com que Rui Caeiro encara a experiência que gerou livro, sua passagem por sessões de quimioterapia para o tratamento de um câncer (ou cancro, no português-lusitano do livro). O primeiro estranhamento vem com o título, que só pude pesquisar mais tarde, ao começar este texto. “Salas de chuto” são locais para o consumo assistido ou salas de injeção assistida de drogas, que visam diminuir os riscos de doenças de contágio intravenoso, que começam a ser instaladas em alguns países da Europa, entre eles Portugal. “Chuto” é uma palavra pejorativa para o consumo ou vício em drogas injetáveis. Governos europeus, sabiamente tentando diminuir os riscos de contágio entre dependentes químicos, que sempre vêm a ser um peso para o sistema público de saúde, mas compreendendo que cidadãos fazem de seus corpos o que queiram, chegaram a esta possível solução. Imaginem, agora, o Congresso brasileiro (um dos piores de nossa História em direitos humanos) ouvindo sobre tal ideia.
Ao descobrir o que eram salas de chuto, sorri com o sarcasmo de Rui Caeiro, ao descrever assim a sala onde recebia seu tratamento quimioterápico. Alguns dos nossos melhores escritores são mestres neste humor autodepreciativo, como Machado de Assis já no título de Dom Casmurro (1899) e Fernando Assis Pacheco em tantos de seus poemas, como em Variações em Sousa (1987). À página 7, Rui Caeiro escreve:
“Antes de entrar na sala convém, como é da praxe das boas maneiras, preparar a forma de saudação. Talvez a dos antigos gladiadores, antes da actuação na arena:
— Avé César, avé todo poderoso, ou
Avé ó czar de todas as Rússias, ou
Avé diretores, responsáveis superiores, enfermeiras, técnicos subalternos,
Aquele que vai morrer saúda-vos!”
(Rui Caeiro, Sala de chuto, p. 7)
O pequeno grande livro tem todo este tom, esta clareza, esta lucidez que sempre é um ato de coragem. Há a passagem em que o autor vê/pensa ver um rato, o momento em que contempla os rostos dos seus colegas-gladiadores, doentes como ele, suas expressões de tristeza, onde “acende-se quiçá uma lembrança, um trejeito, um sorriso de dor.” Mas, o que não há no livro é pena, dó. O tom é o de uma depuração completa à pobreza de nossos corpos, nós, organismos.
“Querias um humanismo para o nosso tempo, não era? Well, you came to the right place. Um humanismo para o nosso tempo. Quem não queria? O humanismo da burocratice, do caga e tosse, do faz de conta. O da indiferença e o da impiedade. Sobretudo este. Here you are. Vieste ao sítio certo.”
(Rui Caeiro, Sala de chuto, p. 27)
Rui Caeiro nasceu em Vila Viçosa, no dia 27 de junho de 1943. Vive em Oeiras. Estreou com o volume Deus, sobre o magno problema da existência de Deus (1988), e ainda publicou, entre outros, Sobre a nossa morte bem muito obrigado (1989), Livro de Afectos (1992) e O Quarto Azul e outros poemas (2011). Traduziu obras de Rainer Maria Rilke, Robert Desnos, Nâzim Hikmet, Ramón Gómez de la Serna e Roger Martin du Gard. Nas palavras de Changuito, Caeiro “usa o silêncio como generosa estratégia. Estudou direito. Tem filhos, netos, amigos. Gosta de ler e de comer. Dorme cedo. Leu tudo. É um sábio.”
Como leitor e admirador de Rui Caeiro, espero que sua luta lúcida na sala de chuto tenha sido completamente vitoriosa, e que tenhamos sempre mais palavras saídas de sua cabeça clara.
“Pois morre-se de muita coisa, de muita coisa
se morre, morre-se por tudo e por nada
morre-se sempre muito
Por exemplo, de frio e desalento
um pouco todos os dias
mas de calor também se morre
e de esperança outro tanto
e é assim: como a esperança nunca morre
morre a gente de ter que esperar
Morre-se enfim de tudo um pouco
De olhar as nuvens no céu a passar
ou os pássaros a voar, não há mais remédio
ó amigos, tem que se morrer
Até de respirar se morre e tanto
tão mais ainda que de cancro
De amar bem e amar mal
de amar e não amar, morre-se
De abrir e fechar, a janela ou os olhos
tão simples afinal, morre-se
Também de concluir o poema
este ou qualquer outro, tanto faz
ou de o deixar em meio, o resultado
é o mesmo: morre-se
Data-se e assina-se – ou nem isso
Sobrevive-se – ou nem tanto
Morre-se – sempre
Muito”