Natal e o suicídio de Raul Pompeia
Neste 25 de dezembro, o Brasil estava ocupado, como todo ano, em enfeitar árvores de plástico e gastar energia elétrica com iluminações que fingem ser neve. Em shoppings, homens suavam sob a fantasia de um Papai Noel ártico sob o sol dos trópicos, como um pinguim perdido em Ipanema. Famílias e amigos estavam reunidos, e é natural que qualquer outro aniversário além deste do Cristo passasse despercebido. Pois, naquele dia, completavam-se também 120 anos do suicídio de Raul Pompeia no Rio de Janeiro, com sua mãe presenciando a cena. É difícil não ver a escolha da data como simbólica, um suicídio no Natal.
“Talvez seja amolecimento cerebral, pois que Raul Pompeia masturba-se, e gosta de, altas horas da noite, numa cama fresca, à meia luz de veilleuse mortiça, recordar, amoroso e sensual, todas as beldades que viu durante o seu dia, contando em seguida as tábuas do teto onde elas vaporosamente valsam.” São palavras de Olavo Bilac, em artigo de 1892, no jornal O Combate. Não se trata exatamente de um momento alto no debate intelectual brasileiro.
A polêmica entre os dois escritores centrava-se na figura do presidente Floriano Peixoto, o “marechal de ferro”, que começava a reprimir de forma violenta as forças opositoras a seu Governo. Uma delas foi a Revolta da Armada, que tivera início já em março de 1892, quando treze generais enviaram uma carta-manifesto a Peixoto, que exercia então o cargo de Presidente da República após a renúncia de Deodoro da Fonseca, na qual exigiam a convocação de novas eleições presidenciais. Pela Constituição de 1891, estavam previstas novas eleições caso o presidente eleito desocupasse o cargo antes da metade do mandato, mas Floriano Peixoto, alegando que a primeira eleição após o Governo Provisório não fora direta, prendeu os generais e os desterrou para a região amazônica, como faria com outros opositores.
Raul Pompeia, republicano convicto, ligado aos líderes abolicionistas, com vários momentos que nos levam a admirar sua biografia, mostrava-se um dos mais ferrenhos defensores do ferrenho marechal, vendo em Peixoto o epíteto de Consolidador da República que ainda lhe é atribuído. Lembramos que o quase fanatismo dos florianistas seria satirizado por Lima Barreto em Triste Fim de Policarpo Quaresma, publicado como folhetim ao longo de 1911, assim como também saiu em folhetim ao longo de 1888 a obra-prima de Raul Pompeia, O Ateneu, ainda em tempos monárquicos.
Eu tenho uma grande admiração pela geração de intelectuais brasileiros das duas últimas décadas do século 19. Trata-se de um período fulcral para a cultura do país, no qual alguns dos nossos melhores escritores se mostravam críticos mordazes das contradições tanto do Império como da infante República, nascida de um golpe de Estado e sem base popular. Em um ensaio intitulado “Elogio dos modernos em oposição aos modernistas”, escrevi que, comparados “com esta geração das duas últimas décadas do século XIX, a ânsia celebratória do Grupo de 22 me parece por vezes incrivelmente infantil. Seria importante comparar as atitudes críticas perante o País, que chegam às tentativas de criação de mitos fundadores, mesmo que críticos, em Macunaíma e Cobra Norato, vinda dos relatos findadores que são Os Sertões, Esaú e Jacó e O Ateneu. Pois, enquanto o Grupo de 22 por vezes se entregava a celebrar, esta geração anterior atacava muito mais impiedosamente. Contra os mitos de fundação (impulso épico) dos Modernistas, nossos Modernos, em seu impulso antiépico, davam-nos seus relatos de findação, ou, como gosto de chamar os textos de Luiz Gama, Qorpo-Santo, Sapateiro Silva, Machado de Assis, Raul Pompeia, Sousândrade e Cruz e Sousa: não mitos da fundação, mas crônicas do afundanço.”
Raul Pompeia não ocupa em nosso imaginário uma posição particularmente alta, nem pode-se dizer que tenha a mesma importância de um gênio como Machado de Assis. Lido em geral quando somos bastante jovens, ainda na escola ou em período de vestibular, não é um escritor que revisitamos ao longo da vida como o próprio Machado ou Lima Barreto. Seu único livro importante é mesmo O Ateneu, e a qualidade de seu estilo não é unanimidade. Chamado às vezes de “impressionista”, com uma escrita que pode parecer camp (se me permitem o anacronismo) a outros, não está entre nossos “escritores magros”, como diria José Lins do Rego, os da elegância minimalista. Sua escrita é violenta, exuberante, como nos trabalhos de Lúcio Cardoso e Roberto Piva. A escolha de mencionar estes autores não é acidental.
Eu ainda me lembro quando, adolescente, li num manual de História da Literatura Brasileira sobre a suposta homossexualidade de Raul Pompeia. Aquilo imediatamente o marcou como um heroi em meu romantismo juvenil, mesmo que eu hoje saiba que não se pode afirmar com qualquer certeza qual a sexualidade do autor, e que o manual escolar seguira as fofocas da época, caracterizando-o ainda como “hipersensível, um homem com nervos à flor da pele.” Há aí, eu diria, ainda hoje um ataque e condenação, mesmo que velados, uma forma de desrespeito que segue ainda entre nós.
Se há em sua linguagem por vezes algo que denuncia a época, e que poderia ser chamado de “datado” especialmente quando pensamos na atualidade da escrita de Machado de Assis, jamais esqueci a violência de certas passagens memoráveis de O Ateneu, e a presciência do autor em trazer a sexualidade humana para o centro da sua crítica política e cultural, as repressões e violências latentes, mais de uma década antes de Sigmund Freud tomar o mundo de assalto com A Interpretação dos Sonhos (1901). Há algo em Raul Pompeia que sempre me pareceu ligá-lo neste aspecto ao austríaco Arthur Schnitzler, seu contemporâneo exato, ainda que este tenha vivido muito mais e tenha tido tempo para polir sua forma.
A cena do banho, em que um estudante quer se vingar dos outros com cacos de vidro na piscina, naquela ameaça de banho de hormônios e sangue, ou a violência de fim de mundo com que o escritor termina sua alegoria do Império, indo aos ares em chamas, me impressionou muito quando li o romance. Suicidando-se aos 32 anos de idade, com um tiro no peito em pleno natal carioca de 1895, Pompeia entra para o rol de escritores brasileiros que nos deixaram um obra pequena, mas que ainda podem suscitar discussões entre nós. Falar sobre o que teriam feito se tivessem vivido mais é pura conjectura. Pessoalmente, com O Ateneu, Raul Pompeia ainda permanece em meu imaginário, como parte de uma certa linhagem intelectual brasileira, a dos intransigentes e inconformados, violentos em sua negação das hipocrisias do país. Machado de Assis e Clarice Lispector, também violentos, escolheram caminhos muito mais sutis, seria possível argumentar.
Ainda que Décio Pignatari tenha escrito que alguém precisava ser medula e osso na geleia geral brasileira, escritores como Machado, Clarice, Lima Barreto ou Graciliano Ramos, para citar alguns, vinham cumprindo já esta função, à qual se uniram, com certeza, o próprio Décio Pignatari e Augusto de Campos. Mas quando penso no estilo exuberantemente violento de homens e mulheres como o Sousândrade de “O Inferno de Wall Street”, o Euclides da Cunha de Os Sertões, o Lúcio Cardoso de Crônica da Casa Assassinada, a Hilda Hilst de Qadós, ou o Roberto Piva de Piazzas, com, é claro, o incendiário Raul Pompeia de O Ateneu, pergunto-me que papel quiseram cumprir na geleia geral brasileira. Intuo que o de lança-chamas. Sinto-me em casa com eles.