100 anos do Cabaret Voltaire e do dadaísmo
Há 100 anos, na noite de 5 de fevereiro de 1916, um grupo de refugiados de guerra dava início à primeira sessão do Cabaret Voltaire, no mesmo prédio do Kneipe (boteco) conhecido como Meierei, em Zurique. À época, a cidade suíça estava repleta de exilados e refugiados. Lênin, por exemplo, vivia na mesma rua do Cabaret Voltaire, a Spiegelgasse. Dentro de alguns meses, o Cabaret Voltaire se desdobrou na revista Dada e num dos movimentos de vanguarda mais influentes do século 20 – grupo que estudaríamos décadas mais tarde em manuais de literatura como dadaísmo.
Iniciado pelo casal alemão Hugo Ball e Emmy Hennings, o Cabaret Voltaire contaria ainda com a participação dos romenos Tristan Tzara e Marcel Janco, do alemão Richard Huelsenbeck e do casal Hans Arp, nascido na Alsácia, e Sophie Taeuber, a única suíça do grupo. A ideia inicial que os movia era rebelar-se contra a mentalidade militarista e nacionalista que lançara o continente europeu na Primeira Guerra Mundial. Mas o casal Ball e Hennings também precisava de dinheiro. Nada melhor, portanto, do que iniciar um cabaré na pacata Zurique, na neutra Suíça.
A Grande Guerra entrava em seu terceiro ano. De cada lado, rei, kaiser e tzar da mesma família – George V, do Reino Unido; Wilhelm II, da Alemanha; e Nícolas II, da Rússia, eram primos. E imbuídos de uma mentalidade imperialista do século 19, lançavam homens jovens e civis em meio a bombas e canhões do século 20. Vários escritores do início do século morreriam naqueles campos de batalha, como os britânicos Wilfred Owen e Isaac Rosenberg ou o alemão August Stramm. Em decorrência da guerra, perderíamos ainda o austríaco Georg Trakl e o francês Guillaume Apollinaire. Em julho de 1916, com o Cabaret Voltaire ainda em atividade, viria a batalha do Somme, na qual dezenas de milhares de soldados morriam a cada dia.
Era este o contexto do Cabaret Voltaire. Não se pode falar dessa vanguarda histórica sem mencionar contra o que se rebelavam. Pois não se tratava simplesmente do novo pelo novo ou de apenas chocar os burgueses. Esses poetas e artistas pacifistas, contra a mentalidade belicista prussiana comandando seu lado da guerra, queriam deter a maquinaria de moer gente. Suas escolhas tinham sim um caráter de choque, quase de agitprop, como se veria depois entre os artistas ligados à Revolução Russa. Mas, ao escolher um cabaré como plataforma de exposição, ao proferir poemas sonoros sem sentido linguístico decodificável, ao fazer seu teatro de marionetes, suas máscaras de papelão, estes homens e mulheres iam contra tudo o que se considerava arte séria naquele momento e tinham um inimigo claro e poderoso à frente, que vinha matando há anos.
O Cabaret Voltaire duraria apenas alguns meses. Logo, despreocupados em garantir que a empreitada fosse rentável, não conseguiram mais pagar o aluguel do boteco. Mas o grupo seguiria editando a revista Dada, escrevendo seus manifestos e exportando o movimento para outras cidades.
Em Berlim, como de praxe, o movimento se tornaria explicitamente político nas mãos e mentes de Raoul Hausmann, Hannah Höch, John Heartfield e Johannes Baader. A eles se uniria George Grosz, já conhecido desde os tempos do expressionismo. Não aceito pelo grupo em Berlim, Kurt Schwitters retornaria a Hannover, onde iniciaria seu próprio movimento, o Merz, nome formado após recortar as letras de Kommerz (comércio) de uma campanha publicitária.
Em Nova York, Marcel Duchamp e Francis Picabia, após passagens por Zurique e Paris, se uniriam a americanos como Beatrice Wood para editar a revista Blind Man. Nos Estados Unidos, os readymades de Duchamp tornaram-se famosos, como o urinol e a cadeira com roda de bicicleta. Ainda que o movimento tenha sido dado por encerrado, artistas como o fenomenal John Heartfield seguiriam fazendo suas colagens contra os nazistas em plena década de 1930, com os assassinos já no poder, correndo grande risco.
A historiografia literária tende a julgar o sucesso de um movimento artístico por datas de início e fim, ou pela fama póstuma de seus autores. É com frequência que se lê que Dada não esteve entre os movimentos mais influentes do século 20, dando-se esta honra ao surrealismo, que nasceu do dadaísmo, ou a movimentos de caráter construtivista, em especial no Brasil, onde a poesia concreta deu atenção especial a tais artistas. Mas o espírito que guiou Dada pode ser facilmente mostrado como um dos mais frutíferos do período.
Quando acabou a Segunda Guerra, fruto que foi da Primeira, e artistas ao redor do continente e do globo retomam os experimentos das primeiras vanguardas, foi ao Cabaret Voltaire e ao Dada que muitos deles retornaram. Na Áustria, um dos mais fiéis a este espírito foi o Grupo de Viena, com H.C. Artmann, Gerhard Rühm, Konrad Bayer e Friedrich Achleitner. Suas performances no Art Club da capital austríaca na década de 1950 são reignições das práticas do Cabaret Voltaire, retornando a poemas sonoros, satíricos e performances contestadoras do estado respeitável das coisas.
Em Paris, Idisore Isou, compatriota romeno de Tristan Tzara, deu início ao Movimento Letrista, do qual logo surge a Internacional Situacionista, grupos com práticas altamente políticas, rebelando-se contra a mentalidade socioeconômica de seus países. As apropriações de comerciais por Guy Debord em seus filmes tem raízes nas práticas de Höch, Hausmann, Heartfield e Schwitters. Em Barcelona, nasce o movimento catalão Dau al Set (“dado no 7”, indicando já no nome seu espírito Dada), com Joan Brossa, Modest Cuixart, Joan Ponç e Antoni Tàpies, entre outros. Assim como os vários independentes, do poeta sonoro Henri Chopin ao inclassificável, também romeno, Ghérasim Luca. Movimentos como a Pop Art, o Fluxus e até o Punk são impensáveis sem as contribuições do Cabaret Voltaire.
E isso se dá também porque o espírito do Dada, antes de ser um destruidor de tradições, foi o de reconectar a tradições então desprestigiadas pela alta cultura. Os poemas sonoros de Hugo Ball, Kurt Schwitters e Raoul Hausmann os ligam a tradições e práticas milenares que jamais abandonaram a humanidade, como o canto gutural dos inuítes, canções ameríndias, os puirt à beul (sons na boca) gaélicos, o joik dos lapões (ou saamis, o único grupo indígena da Escandinávia), e assim por diante, assim como a arte de Sophie Taeuber, Emmy Hennings e Hannah Höch permanecem entre nós na arte visual em colagens e apropriações, e, no teatro, foram altamente influentes para a criação cenográfica. A poesia satírica desses autores tem precursores nos Goliardos, os padres-poetas beberrões da Idade Média, nos poetas ingleses do nonsense, como Lewis Carroll e Edward Lear, no alemão Christian Morgenstern e até mesmo no brasileiro Qorpo Santo.
Ao escrever sobre essas figuras hoje, 100 anos depois de sua primeira explosão em nosso meio, o que os torna ainda vivos e necessários vai além de suas contribuições inestimáveis às práticas artísticas: pois, ao se rebelarem contra a máquina de moer gente dos senhores da guerra, estes homens e mulheres reforçaram nossa crença de que o artista e o poeta devem estar ligados a seu tempo, fazendo-se voz de suas comunidades. E nestes tempos de guerras e refugiados, assim como em 1916, precisamos muito de artistas desse calibre.