Friederike Mayröcker: 90 anos
Este 2014 foi um ano de grandes perdas para nós leitores, gente apaixonada por livros e, consequentemente, por aqueles que os produzem. Houve semanas em que pareciam diárias as mortes de poetas e prosadores importantes. No Brasil, perdemos Donizete Galvão, João Ubaldo Ribeiro, Manoel de Barros, Ariano Suassuna, Moacy Cirne e Rubem Alves, entre outros. No cenário internacional, deixaram-nos poetas e prosadores como Vasco Graça Moura, Juan Gelman, Nadine Gordimer, Victoria Santa Cruz, Maya Angelou ou Leopoldo María Panero. Em meio a estas perdas, o centenário em vida de Nicanor Parra e, hoje, o aniversário da agora nonagenária Friederike Mayröcker nos deixam ainda mais felizes.
Algumas informações para os leitores que porventura não a conheçam: Friederike Mayröcker é uma poeta e prosadora austríaca, nascida em Viena no dia 20 de dezembro de 1924, há 90 anos. Seus primeiros textos publicados surgiram na revista Plan, a partir de 1946, e, apesar de ter mantido um diálogo com os poetas do Wiener Gruppe (Grupo de Viena), não se filiou a ele. O Grupo de Viena foi a neovanguarda mais importante do pós-guerra em língua alemã, formado pelos autores H.C. Artmann, Gerhard Rühm, Konrad Bayer, Friedrich Achleitner e Oswald Wiener. Em 1954, Mayröcker conhece o poeta Ernst Jandl (1925-000), com quem viveria até a morte dele. Seu trabalho afasta-se muitas vezes da sintaxe normativa e está entre os mais difíceis de traduzir na poesia contemporânea em língua alemã, especialmente os textos polifônicos, orquestrais, ou que Haroldo de Campos chamaria de barroquizantes.
Dois de seus livros de poemas mais importantes são Tod durch Musen (1966) e Winterglück (1985). Ganhadora em 1991 do prestigioso prêmio Georg Büchner, equivalente ao nosso Prêmio Camões, ela teve seus Poemas Reunidos (Gesammelte Gedichte) publicados pela editora Suhrkamp em 2004.
Friederike Mayröcker é uma personagem já lendária na cidade de Viena. Conhecida por guardar obsessivamente seus papéis, há alguns anos precisou abandonar o primeiro apartamento por este ter sido invadido completamente por livros, manuscritos, cartões postais, papéis por toda parte. Mudou-se então para o apartamento do andar de baixo, deixando o de cima com os papéis. O novo apartamento, habitado há alguns anos, já caminha na mesma direção. Algo isolada, com vida de eremita, abriu sua casa para a diretora Carmen Tartarotti, que fez das filmagens o documentário Das Schreiben & das Schweigen (A escrita e o silêncio), lançado em 2008.
Traduzi vários poemas seus, mas são todos de sua lírica mais direta, jamais tendo conseguido chegar a versões satisfatórias de seus textos mais complexos. Mas esta lírica é uma das mais belas da literatura contemporânea em língua alemã, e eu celebro hoje o nonagésimo aniversário de Friederike Mayröcker com esta tradução de um de seus mais bonitos poemas. Feliz aniversário, Friederike Mayröcker.
Às vezes por quaisquer movimentos
acidentais
roça minha mão sua mão o dorso de sua mão
ou meu corpo enfiado em roupas encosta-se quase sem saber
um piscar-de-olhos em seu corpo de roupa
estes minúsculos movimentos quase vegetais
seu olhar de ângulos e suas pupilas de propósito
vagam no vazio
sua pergunta logo de início interrompida aonde você
viaja este verão
o que você está lendo
atravessam-me o peito em cheio
e através da garganta como uma doce faca
e eu resseco por completo como um poço num verão escaldante
Poema de Friederike Mayröcker, tradução minha.