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Pequena homenagem a Tomaž Šalamun

Tomaž Šalamun em Tiradentes, Minas Gerais © Ezequiel Zaidenwerg

Tomaž Šalamun em Tiradentes, Minas Gerais © Ezequiel Zaidenwerg

Este ano de 2014 parece realmente não querer dar trégua aos obituários. No mesmo dia em que fazia minha homenagem a Friederike Mayröcker por seus 90 anos [Friederike Mayröcker: 90 anos, DW Brasil, 20.12.2014], mencionando a alegria de poder comentar um aniversário num ano de tantas mortes de escritores, vim a saber algumas horas depois da morte de Gerardo Deniz (1934-2014), poeta nascido na Espanha mas residente no México e que eu admirava imensamente. Minha família poética mexicana havia celebrado há pouco seu aniversário de 80 anos com uma série de eventos.

Mas ao receber do artista esloveno Dražen Dragojević a notícia, esta manhã [27.12.2014], de que havia falecido o grande poeta Tomaž Šalamun (1941-2014), nosso querido amigo em comum, a sensação foi de perda pessoal, além da grande perda literária. Infelizmente, não foi uma surpresa, pois os mais próximos sabíamos que ele há dois anos lutava contra um câncer. Triste saber, no entanto, que o ano levaria este amigo. E em uma semana, outra vez, perdemos dois grandes poetas contemporâneos internacionais.

Tomaž Šalamun era considerado um dos maiores poetas europeus da atualidade, amplamente traduzido, e provavelmente o mais famoso poeta do Leste Europeu nesta última década. Esteve no Brasil uma única vez, no ano passado, a convite meu e de Luiz Gustavo Carvalho, para participar do Festival Artes Vertentes, em Tiradentes. O quarto número impresso da revista que coedito, Modo de Usar & Co., trazia uma mini-antologia de seus poemas, com traduções de Flávio Britto. Era sua primeira publicação no Brasil. Está muito longe de ter feito de Šalamun, no Brasil, um nome tão conhecido como já era há anos nos Estados Unidos e Europa Ocidental, mas era um começo.

Šalamun nasceu em Zagreb, na Croácia, em 1941, mas viveu quase toda a sua vida em Liubliana, na Eslovênia. Era poeta esloveno. Seu livro de estreia, Poker (1966), é considerado um marco das Letras de seu país, um renovador da tradição poética na  língua. Amplamente traduzido para dezenas de línguas e um dos poetas mais conhecidos e respeitados da Europa, era convidado frequente dos grandes festivais de poesia do continente e uma estrela nos Estados Unidos. Isso, no entanto, jamais transformou sua atitude generosa para com poetas mais jovens. Foi um dos mais gentis cavalheiros que já conheci nesta profissão.

Por coincidências felizes, estivemos juntos em alguns festivais de duração mais longa, permitindo que passássemos algum tempo juntos em algumas ocasiões. Tínhamos o mesmo aniversário, ambos nascidos a 4 de julho, e tivemos a sorte de passá-lo juntos em um ano. Nos encontramos algumas vezes no Festival de Poesia de Berlim e, em 2008, passamos uma semana bastante estranha juntos nos Emirados Árabes, durante o primeiro Festival Internacional de Poesia de Dubai, ao lado de poetas como Wole Soyinka (o Nobel da Nigéria), Yang Lian (China) e Breyten Breytenbach (África do Sul), mas Tomaž sempre parecia preferir a companhia dos mais jovens, com um interesse genuíno, comentando nossos trabalhos pessoalmente ou por correspondência. Em 2009, tive a chance de passar um tempo com ele em seu próprio país, quando participei de um festival nas cidades eslovenas de Liubliana e Medana. Ele, sempre jovial e generoso.

Nosso último encontro mais demorado foi no Brasil, meu país desta vez, no ano passado, mas o câncer que o mataria já havia tomado muito de suas forças, de sua alegria. Só meses mais tarde soube que ele estava doente, através de outro amigo em comum, o poeta norte-americano Christian Hawkey. Fiquei me perguntando se havia aproveitado sua companhia o suficiente durante os dias brasileiros, temeroso de que não voltaria mais a vê-lo. Infelizmente, foi este o caso.

O mundo perdeu um grande poeta e um verdadeiro cavalheiro. Os poetas mais jovens perderam um aliado. Descanse em paz, amigo. Deixo vocês com um poema de Šalamun, em tradução de Flávio Britto, publicada originalmente na Modo de Usar & Co.

A Janela da Morte
Tomaž Šalamun

Estancar o sangue das flores e virar a ordem das coisas.
Morrer no rio, morrer no rio.
Auscultar o coração do rato. Não há diferença
Entre a prata da lua e a das minhas tribos.
Limpar o campo e correr até os limites da terra.
Carregar no peito a palavra: o cristal. Na porta
O sabão evapora, a conflagração iluminou o dia.
Dar meia-volta, outra vez meia-volta.
E despir a túnica. A papoula havia mordido o céu.
Caminhar pelas estradas desertas e beber sombras.
Sentir o carvalho na boca de uma primavera.
Estancar o sangue das flores, estancar o sangue das flores.
Os altares se fitam, olho no olho.
Deitar num repolho azul.

(tradução de Flávio Britto, Modo de Usar & Co. 4, Rio de Janeiro: Berinjela, 2013).

Data

segunda-feira 29.12.2014 | 08:02

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