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As obscuras (de Vivian Maier a Hilda Machado)

A poeta brasileira Francisca Júlia

A poeta brasileira Francisca Júlia

Há algumas semanas, pude finalmente assistir ao documentário do historiador e colecionador John Maloof sobre a fotógrafa norte-americana Vivian Maier (1926-2009), Finding Vivien Maier (2013), dirigido por ele e Charlie Siskel. O filme mostra sua descoberta da obra da fotógrafa, completamente desconhecida até então, e sua busca pela história de sua vida. Talvez alguns de vocês conheçam alguns dos fatos: em 2009, pouco tempo depois da morte da artista, John Maloof comprou em um leilão uma caixa de negativos, e, ao revelá-los, deparou-se com o trabalho fotográfico da mulher que vem conquistando admiradores ao redor do mundo, com várias exposições e publicações. Maier jamais tentou angariar esta fama. Fez milhares de fotos, sem revelar os negativos, deixando caixas e caixas de um trabalho que a põe lado a lado de fotógrafos como Lisette Model, Eugène Atget, Diane Arbus, Robert Frank ou William Eggleston. Compartilho da opinião.

O que fascina não é apenas seu trabalho, mas sua história. Por que uma mulher com este talento jamais tentou, seriamente, ter seu trabalho mostrado, publicado, reconhecido? A pergunta percorre todo o documentário. Vivian Maier passou toda a sua vida trabalhando como babá de famílias ricas de Nova Iorque, mas teria dito que esta era sua escolha, pois o trabalho lhe dava liberdade para percorrer as ruas, onde fazia suas fotos, onde produzia sobre obra. Sai-se do documentário com a impressão de uma mulher que foi senhora dos seus passos, dona de sua vida. Que fez escolhas a partir de sua arte. Mas também se sai dele com certa tristeza, pelo fim que teve, sozinha, desconhecida, jamais recebendo tratamento pelos problemas que parecia certamente carregar.

Durante o filme, não pude deixar de pensar em outras duas americanas que tiveram destino parecido. Obviamente, em primeiro lugar, a poeta Emily Dickinson (1830-1886), que viveu toda a sua vida na casa dos pais, em Amherst, cuidando da casa, e, ao morrer, deixara centenas de papéis com alguns dos poemas mais belos do século 19. Hoje, Dickinson é incontornável para compreendermos nossa modernidade, nossa própria época. A outra foi também poeta, Lorine Niedecker (1903-1970), que passou a vida na ilha onde nasceu, a Black Hawk Island, e ganhou o pão limpando casas e espaços alheios. Enquanto isso, produzia uma obra poética brilhante. O quanto o gênero feminino destes seres fabulosos influiu em seu isolamento, na impossibilidade de seu reconhecimento, seria assunto que nos levaria a algumas questões espinhosas.

O filme me levou a pensar também em algumas mulheres brasileiras, como a grande Francisca Júlia (1871-1920), a poeta paulista que, ao publicar os primeiros poemas em revistas, levou homens famosos da época a questionar se vinham de uma mente feminina ou se se tratava de um pseudônimo. Isso diz muito de nós. Um deles, João Ribeiro, mais tarde tentou consertar o erro escrevendo o prefácio admirado do primeiro livro da autora, Mármores (1895). Ler este livro hoje é deparar-se com um dos poetas brasileiros com maior firmeza e tesura de linguagem, com poemas de uma plasticidade realmente exuberante, apesar do epíteto que deram à poeta: a “Musa Impassível”. Sempre a surpresa diante da mente feminina. Sua circunscrição ao sentimental, a dúvida de sua lucidez. Como Clarice Lispector viria a ironizar na voz de seu narrador em A Hora da Estrela (1977), “Um outro escritor sim, mas teria que ser homem porque escritora mulher pode lacrimejar piegas.”

O que sabemos é que Francisca Júlia publicou outro livro, Esfinges (1903), uma reescritura do primeiro – retirando poemas e acrescentando outros – além de dois livros infantis, antes de silenciar-se a si mesma após o casamento, retirando-se para os afazeres domésticos e talvez sua escrita, que não voltaria a publicar. Reconhecida em vida, sim, mas hoje esquecida. Por que ela se silenciou? Continuou realmente escrevendo? O que foi feito destes papeis após seu suicídio? Pois Francisca Júlia foi a nossa primeira grande poeta e primeira suicida da literatura, matando-se em 1920 após a morte do marido. Alguém cuidou de seus papéis? Sobrou algo? Há grandes poemas místicos seus escondidos, empoeirando-se, alimentando traças em algum lugar? Morta há tanto tempo, é mais provável que, se houve novos trabalhos, já estão perdidos.

Há outros exemplos de mulheres que não alcançaram na hora certa o reconhecimento que mereciam, estando entre os maiores escritores do país, como a grande Hilda Hilst, ou Orides Fontela. O caso é distinto, porém, já que foram mulheres que publicaram, buscaram o diálogo, mas foram silenciadas pela estupidez crítica das gerações a que pertenciam.

No Brasil, talvez o caso mais parecido ao de Vivian Maier seja o de Hilda Machado (1952-2007). Conhecida como cineasta e historiadora, escreveu alguns dos poemas mais luminosos, tesos e inteligentes que li na última década. Dois foram publicados na revista Inimigo Rumor, como “Miscasting”, certamente um dos meus favoritos. Carlito Azevedo possuía um arquivo com outros poemas, pois a conheceu pessoalmente e foi quem conseguiu tirar dela estes textos, e os publicamos no segundo número impresso da Modo de Usar & Co. Há alguns dias, decidi disponibilizá-los todos para leitura coletiva [“Hilda Machado”, revista Modo de Usar & Co., 3 de janeiro de 2015] (link: http://revistamododeusar.blogspot.de/2008/04/hilda-machado-1952-2007.html)

Estou em contato há alguns anos com a irmã de Hilda Machado, buscando a possibilidade de editar os papéis que a autora deixou. Segundo ela, há alguns arquivos: poemas, artigos, escritos sobre o cinema. Faço votos que este trabalho possa vir à luz em breve. Eu me ofereci para editar o trabalho poético, mas não importa quem o faça, desde que este trabalho não se perca e possa ser lido por todos. O talento de Hilda Machado é inegável, e basta ler o que está disponível para estar certo de que estes excelentes textos não foram acidentes de percurso, nem sorte de principiante. São poemas de uma mulher que sabia exatamente o que estava fazendo, tinha voz própria e inteligência, lucidez e humor fascinantes.

Faço aqui minha pequena homenagem a estas mulheres que respeito e admiro, como Francisca Júlia e Hilda Machado, com a esperança de que elas deixem o quanto antes de ser obscuras. Precisamos, para nosso bem, deixar de cometer estes erros.

Data

segunda-feira 05.01.2015 | 14:58

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