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A tarde em que descobri a existência de Hilda Hilst

O ano era 1997. Eu tinha 20 anos. Os jornais discutiam o livro autobiográfico de Caetano Veloso, Verdade Tropical. O romance de estreia de Paulo Lins, Cidade de Deus, era publicado e também amplamente debatido. João Cabral de Melo Neto, ainda vivo e considerado o maior poeta do país, tinha sua obra completa reunida em dois volumes, Serial e antes e A Educação pela Pedra e depois. Sua poética comandava a atenção e estipulava, para muitos críticos, os parâmetros de qualidade para a poesia: secura, economia de meios, antilirismo, objetividade. Na prosa, tais características eram louvadas em Rubem Fonseca, que parecia ser a maior influência da prosa de então.

Era meu primeiro ano vivendo na cidade de São Paulo, num apartamento pequeno próximo àquela que apenas ali poderia ser chamada de Praça da Árvore, um local lúgubre com uma coitada verde esticando seus galhos no meio do tráfego da Zona Sul. Mas foi ali, numa tarde qualquer que, lendo uma resenha sobre o romance de uma escritora da qual jamais havia ouvido falar, encontrei os versos: “Palha / Trapos / Uma só vez o musgo das fontes / O indizível casqueando o nada // Essa sou eu. / Poeta e mula”. O poema encerrava o romance de título estranho, Estar sendo. Ter sido (São Paulo: Nankin, 1997), de uma escritora de nome igualmente estranho, Hilda Hilst.Hilda Hilst livro

Naquela mesma semana, procurei o livro e o encontrei em uma pequena livraria da Avenida Paulista. Em pé, sem dinheiro para comprar o volume, folheei o artefato esquisito, com prosa, diálogos e poemas intercalados, e ao fim o poema do qual haviam saído os versos, chamado “A Mula de Deus”. Nada poderia ter me preparado para a febre que senti ao ler o poema todo, sensação que se repetiria a partir de então, quando passei a caçar os volumes anteriores da autora, em poesia e prosa. Diante do louvor ininterrupto à secura e ao antilirismo de João Cabral, aquele misticismo carnal de Hilda Hilst parecia, naquele ambiente, praticamente alienígena. “Para fazer sorrir O MAIS FORMOSO / Alta, dourada, me pensei. / Não esta pardacim, o pelo fosco / Pois há de rir-se de mim O PRECIOSO. // Para fazer sorrir O MAIS FORMOSO / Lavei com a língua os cascos / E as feridas. Sanguinolenta e viva / Esta do dorso / A cada dia se abre carmesim.” Senti-me imediatamente em casa.

Até hoje, “A Mula de Deus”, ao lado do volume de poemas publicado por Hilda Hilst naquela década – Cantares do Sem Nome e de Partidas (1995), parece-me um milagre, e um dos textos mais potentes dos anos 90. Com os volumes de prosa da autora ao longo dos anos 70 e 80, seus poemas desde os anos 50 e as peças teatrais dos anos 60, a autora nascida em Jaú e auto-exilada na Casa do Sol em Campinas deu-nos alguns dos livros mais impressionantes e assustadores do país. São livros únicos. O volume em prosa Qadós (1973, reeditado como Kadosh) parece-me um dos maiores livros da língua, levando-a a um estado de pura febre.

Naquele momento, Hilda Hilst era ainda uma escritora à margem. Feliz o país que podia contar, naquele fim de século, com João Cabral de Melo Neto e Hilda Hilst, com Augusto de Campos e Roberto Piva, mas parecia haver ainda uma trincheira impedindo que todas estas manifestações textuais chegassem a um público amplo. Apenas no fim de suas vidas, quando praticamente já haviam deixado de produzir, foi que Hilst e Piva receberam algo da atenção que mereciam, mesmo que talvez nós não os merecêssemos. Ao lado da potência elegante e minimalista de autores como Machado de Assis, Graciliano Ramos e Augusto de Campos, o Brasil sentiu as esporas da luxúria linguística de homens e mulheres como Raul Pompeia, Lúcio Cardoso e Hilda Hilst. Talvez seja normal e compreensível que a personalidade e visão de mundo de uns os levem a identificar-se com o deserto elegante dos primeiros. Pessoalmente, finco os pés no chão, ergo as mãos ao alto, e dou graças pela existência da febre úmida dos últimos. Juntos, todos eles ensinam-nos sobre as marés do mundo, sertão e mar sempre em rodízio.

Data

quinta-feira 05.02.2015 | 05:46

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