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Literatura durante e após a catástrofe

Poeta francesa Charlotte Delbo

Poeta francesa Charlotte Delbo

Ontem pela manhã [27.01.2015], eu estava na Estação Ferroviária Central de Frankfurt, aguardando o trem que me traria de volta a Berlim. Na banca de jornais, manchetes sobre Auschwitz, a rememoração dos 70 anos de libertação do campo. Na capa da revista Der Spiegel, o rosto de sobreviventes que ainda estão entre nós, hoje octogenários e nonagenários. Tomei o trem pensando que deveria escrever a respeito, mas como? Falar sobre os escritores que ali morreram, como Etty Hillesum (1914-1943)? Sobre os que sobreviveram e relataram os horrores, como Primo Levi (1919-1987), autor de É isso um homem? (1947), um dos primeiros livros a surgir após a guerra sobre aqueles horrores, ao lado de A espécie humana (1947), de Robert Antelme (1917-1990), que sobreviveu a Dachau?

O livro de Primo Levi abre com um poema, no qual ele comanda e exige, a nós “que vivemos em nossas casas mornas”, a não esquecer, a relatar a nossos filhos que aquilo ocorreu, caso contrário, que “a doença nos entrave, que nossos filhos virem seus rostos contra nós.” Outra sobrevivente de Auschwitz, menos conhecida, mas que relatou suas experiências, foi a francesa Charlotte Delbo (1913-1985), que passaria vinte anos trabalhando em sua trilogia Auschwitz et après (Auschwitz e depois). Um poema assustador de Delbo, chamado “Oração aos vivos para que sejam perdoados por estarem vivos”, diz: “Eu suplico a vocês / façam qualquer coisa / aprendam um passo / uma dança / alguma coisa que os justifique / que dê a vocês o direito / de vestir a sua pele o seu pelo / aprendam a andar e a rir / porque será completamente estúpido / no fim / que tantos tenham sido mortos / e que vocês aí vivam / fazendo nada de suas vidas.”

Ao mencionar os poemas de Levi e Delbo, que sobreviveram ao campo, assim como o título da trilogia da francesa, “Auschwitz e depois”, é impossível não pensar na citação de Adorno, a qual imagino tenha sido usada e abusada ontem, de que após Auschwitz seria um ato de barbárie escrever poesia. A citação é frequentemente tirada de contexto, vindo do último parágrafo de um ensaio bastante denso do alemão, sobre a reificação de tudo e todos em uma sociedade totalitária. Num parágrafo anterior, ele escreve: “Na prisão ao ar livre em que o mundo está se transformando, não é mais tão importante saber o que depende de quê, tal é a extensão em que o total se unifica. Todos os fenômenos se enrigecem, tornam-se insígnias do império absoluto daquilo que é.” Sempre compreendi a afirmação de Adorno como a negação da cultura que havia gerado Auschwitz, que simplesmente não se podia seguir escrevendo poesia como se Auschwitz não houvesse ocorrido. Um chamado à História. É importante lembrar que Paul Celan, o poeta mais conhecido entre os sobreviventes da Shoah, escreveu como o horrorizara perceber que autores seguiram escrevendo seus poemas sonoros e belos em meio ao horror da guerra e dos campos. Hoje um clássico do pós-guerra, lido basicamente em traduções, muitos não percebem que a escrita de Celan, a maneira como ele parte e quebra a sintaxe da língua alemã, era uma resposta a isso. Sua escrita hoje é simplesmente vista como “bela”. Sua busca por uma fala partida, feia e dentro do horror, é discutida por alguns como mera “inovação”, parte da “originalidade” de Celan. Transforma-se em literatura. No Brasil, por algum tempo usou-se Celan para resgatar certa aura de autoridade poética. Mas a autoridade de Celan não é apenas literária, é histórica.

Assim como se cita Adorno sobre a impossibilidade da poesia após Auschwitz fora de contexto, e poetas usam as “técnicas” de Celan de forma a-histórica, é comum dizer que Adorno mudou de ideia, ao escrever mais tarde que “o sofrimento perene tem tanto direito à expressão quanto um homem sob tortura tem direito ao grito, dessarte talvez tenha errado em dizer que após Auschwitz não se podia mais escrever poesia.” No entanto, raramente se cita o resto do parágrafo, que talvez seja uma declaração ainda mais tenebrosa que aquela sobre a poesia após Auschwitz: “Mas não é errado levantar a questão menos cultural se após Auschwitz se pode continuar vivendo – especialmente se alguém escapou por sorte, se alguém que poderia ter sido morto pode continuar vivendo. Sua sobrevivência exige frieza, o princípio básico da subjetividade burguesa, sem a qual não poderia ter havido Auschwitz; esta é a trágica culpa daquele que sobreviveu. Sua expiação será a de ser atormentado por pesadelos nos quais ele nem mesmo vive, nos quais ele foi enviado aos fornos em 1944, e toda a sua existência desde então foi imaginária, uma emanação do desejo louco de um homem assassinado 20 anos antes.” É uma passagem assustadora. E penso novamente no poema de Charlotte Delbo, “Oração aos vivos para que sejam perdoados por estarem vivos.” Penso em Simone Weil, que se recusou a comer no hospital onde estava, à beira da morte, pois se outros judeus como ela morriam aos milhares, ela não podia comer. Penso em Hannah Arendt, dizendo em sua entrevista a Günter Gaus em 1964 que “isto [Auschwitz] jamais deveria ter acontecido. Algo ocorreu ali com o qual nenhum de nós jamais poderá conciliar-se.”

Como posso eu escrever sobre aqueles horrores, escritor brasileiro nascido mais de 30 anos depois da libertação do campo? No entanto, e se pensarmos que estamos no auge daquela reificação total, de tudo e todos, dentro do sistema capitalista, contra o qual escreveu Adorno, e Pasolini, e tantos outros? A noção de civilização e cultura que gerou Auschwitz (não me refiro apenas à ideologia nazista) realmente foi vencida? Trinta anos depois da libertação dos sobreviventes do campo, Pasolini faria seu filme Salò ou os 120 Dias de Sodoma (1975), com o qual argumenta que aquela cultura permanece. A do poder obsceno. A da transformação de seres vivos (não apenas humanos) em coisas, mercadorias. Temos mesmo outro conceito de civilização após Auschwitz? Não foi para destruir por completo certo conceito de civilização que ainda permanecia, que a personagem de A Paixão segundo GH (1964), da judia Clarice Lispector, comungou com um inseto e comeu a matéria viva de uma barata? É importante lembrar-se da formulação terrível de Jean Améry (1912-1978), que passou por Auschwitz, Bergen-Belsen e Buchenwald, e que, ao falar sobre os torturadores nazistas nos campos, escreveu “… uma pequena pressão da mão que controla o aparelho é suficiente para transformar a outra – junto com sua cabeça, na qual talvez estejam arquivados Kant e Hegel, e todas as nove sinfonias, e O Mundo como Vontade e Representação – num leitão guinchante no matadouro.” Os nazistas eram homens educados em Kant, Hegel, Beethoven e Schopenhauer. Pertenciam à mesma cultura, e, no entanto…

E aqui, ao final, me pergunto: de que forma eu, escritor brasileiro, posso escrever sobre isso e ainda conciliar-me com os horrores do meu próprio país, onde a reificação de seres humanos já estava no sequestro e escravização de três milhões de africanos, e o genocídio de outros milhões de indígenas? Posso, como escritor brasileiro, escrever sobre Auschwitz sem pensar nisso? Não tenho a ilusão de ter respostas certas para estas questões. O que posso dizer é que nos últimos tempos, pensando a respeito delas, percebi com certo terror e me perguntei se não havia errado em querer alertar leitores para uma possível distopia futura (quando falava sobre uma “poesia pré-distópica”), se talvez não os estava apenas distraindo para o fato de que já estamos (ou continuamos) em plena distopia. Hoje, confesso crer, com Adorno e Pasolini, que este é o caso.

Data

quarta-feira 28.01.2015 | 12:48

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