Otto Lara Resende, soterrado sob anedotas
O Brasil possui alguns autores que são hoje mais lembrados pelas anedotas de alguns de seus amigos, autores mais famosos, que por suas obras. Talvez o caso mais exemplar seja o de Jayme Ovalle (1894-1955). Suas composições permanecem, mas em nossa memória é mais provável que o paraense compareça como personagem de seu amigo Manuel Bandeira, em um par de seus mais belos poemas, como aquele “Poema só para Jayme Ovalle”:
Quando hoje acordei, ainda fazia escuro
(Embora a manhã já estivesse avançada).
Chovia.
Chovia uma triste chuva de resignação
Como contraste e consolo ao calor tempestuoso da noite.
Então me levantei,
Bebi o café que eu mesmo preparei,
Depois me deitei novamente, acendi um cigarro e fiquei pensando…
– Humildemente pensando na vida e nas mulheres que amei.
Jayme Ovalle foi poeta bissexto e compositor de lavra intermitente. Sua peça mais conhecida talvez seja “Azulão”, escrita justamente com Manuel Bandeira e cantada por Elizeth Cardoso e Nara Leão, entre outros. Mas seu nome e as histórias bizarras e pitorescas que o cercavam aparecem em textos dos mais importantes autores do entreguerras e pós-guerra imediato, como Carlos Drummond de Andrade, Vinicius de Moraes, Murilo Mendes e Fernando Sabino, além de alguns outros sobre os quais também deveríamos falar um pouco mais, como Dante Milano. A verdade é que talvez eu esteja apenas contribuindo ainda mais para este caráter elusivo da figura de Jayme Ovalle, para usar o adjetivo de Victor Heringer em seu texto sobre o autor [“O Jayme Ovalle de Manuel Bandeira”, Revista Memento, V.3, n.2, ago.-dez. 2012], já que este artigo não pretende debruçar-se sobre ele. A quem se interessar, há hoje a biografia de Jayme Ovalle escrita por Humberto Werneck, O santo sujo (São Paulo: Cosac Naify, 2008).
O nome de Jayme Ovalle e sua espécie de carreira em terceira pessoa me veio à mente ao pensar sobre outro autor brasileiro que estive lendo esta semana, Otto Lara Resende (1922-1992). Assim como Ovalle em Bandeira, é possível que muitos leitores brasileiros lembrem-se de Otto Lara Resende, hoje em dia, apenas por comparecer em tantos textos e anedotas de seu amigo Nelson Rodrigues, que chegou a intitular uma de suas peças mais famosas Bonitinha, mas ordinária, ou Otto Lara Resende, de 1962, uma de suas tragédias cariocas.
Era a Otto que Nelson costumava atribuir algumas de suas frases de efeito, tenham ou não realmente saído da boca do mineiro, como o célebre “O mineiro só é solidário no câncer”. E assim, Resende, que também engrossou o caldo do anedotário sobre Jayme Ovalle, parece hoje ter destino parecido, mais lembrado por este anedotário que por sua escrita.
No entanto, o mineiro foi um dos intelectuais mais importantes do Brasil no pós-guerra, e como me pareceu claro ao voltar a seus contos esta semana, um escritor formidável. A Companhia das Letras relançou no ano passado uma de suas coletâneas mais importantes, Boca do Inferno, com contos publicados originalmente em livro em 1957. Voltar ao autor mineiro traz prazeres de leitura incontestáveis.
Ele era apenas dez anos mais jovem que Nelson Rodrigues, e apenas dois anos mais jovem que autores tão importantes quanto diversos como João Cabral de Melo Neto e Clarice Lispector. Quando eles chegaram à cena nas décadas de 40 e 50, o Modernismo já era fato consumado e estabelecido no país. Era um período de grande ebulição cultural. Ao mesmo tempo em que autores que estrearam nas décadas de 1920 e 1930 começam a dar-nos suas obras mais importantes, estes mais jovens explodem na cena com obras como Vestido de noiva (1943), Perto do coração selvagem (1943) e O engenheiro (1945). E eu nem mencionei João Guimarães Rosa ou Lúcio Cardoso. Talvez seja compreensível que um autor discreto como Otto Lara Resende tenha sido soterrado sob estes que nos parecem gigantes.
Contemplar a literatura brasileira entre o fim da Segunda Guerra e o início da Ditadura Militar nos dá realmente uma sensação de Idade de Ouro, com autores como estes mencionados acima, além de Oswald de Andrade, Vinicius de Moraes, Cornélio Penna, Carlos Drummond de Andrade, Jorge de Lima, Murilo Mendes, Henriqueta Lisboa, Hilda Hilst e Haroldo de Campos, em sua plena produção. Em minha opinião, a época só pode ser comparada em qualidade e diversidade com as duas últimas décadas do século 19, quando estavam em atividade no país, ao mesmo tempo, autores como Machado de Assis, Joaquim de Sousandrade, Raul Pompeia, Luiz Gama, Joaquim Nabuco, Cruz e Sousa e Alphonsus de Guimaraens, período que se pode dizer culminar, de certa forma, com a publicação de Os Sertões em 1902, ano em que more Sousândrade.
Ao escrever sobre autores da década de 50, como Hilda Hilst, o grande crítico Sérgio Buarque de Holanda chamou a atenção para o fato de que à época, com a consolidação da poética modernista, já não era necessário que autores lançassem mão de certas técnicas que hoje nos parecem cacoetes de linguagem envelhecidos, como a insistência na fala popular como único registro possível para o escritor brasileiro. Isso se torna claro ao ler Otto Lara Resende, que demonstra grande liberdade lexical em seus textos. Se há o registro popular da fala das ruas, Resende não se furta a usar palavras mais raras – se o texto assim o pede. Isso causa um sobressalto hoje e tem forte efeito poético, algo que dá a seus textos uma alta tensão de materialidade de linguagem. Um exemplo é o conto “Gato Gato Gato”, um de meus favoritos. O texto, ainda que narrativo, tem uma carga poética fortíssima, já demonstrada no título, na busca entre língua e coisa.
“Familiar aos cacos de vidro inofensivos, o gato caminhava molengamente por cima do muro. O menino ia erguer-se, apanhar um graveto, respirar o hálito fresco do porão. Sua úmida penumbra. Mas a presença do gato. O gato, que parou indeciso, o rabo na pachorra de uma quase interrogação. Luminoso sol a pino e o imenso céu azul, calado, sobre o quintal. O menino pactuando com a mudez de tudo em torno — árvores, bichos, coisas.”
A história é das mais simples: um menino num quintal qualquer, observando um gato sobre o muro e lançando-se em jogos de linguagem para contê-lo, possuí-lo:
“Gato — leu no silêncio da própria boca. Na palavra não cabe o gato, toda a verdade de um gato. Aquele ali, ocioso, lento, emoliente — em cima do muro. As coisas aceitam a incompreensão de um nome que não está cheio delas. Mas bicho, carece nomear direito: como rinoceronte, ou girafa se tivesse mais uma sílaba para caber o pescoço comprido. Girafa, girafa. Gatimonha, gatimanho.”
O que parece inofensivo em sua narração, a mera descrição de uma cena corriqueira do interior do Brasil, aquele tédio das bananeiras típico dos primeiros poemas de Carlos Drummond de Andrade, logo se transforma em ambiente de matança, sangue. A sutileza psicológica do texto de Otto Lara Resende é admirável. Creio que seria bastante interessante uma leitura comparada entre seus contos e os de Clarice Lispector.
O relançamento de seu livro de contos mais famoso é ótima notícia, que infelizmente só ouvi este ano. Tento repassá-la aqui. Quero buscar também sua coletânea de crônicas Bom dia para nascer, escritas para a Folha de S. Paulo e também publicada pela Companhia das Letras em 2011. Espero que toda a sua obra, concisa mas potente, volte a circular e ele encontre seu lugar merecido entre os escritores brasileiros do pós-guerra. Gosto muito das anedotas, mas agora já não pretendo mais perder de vista o homem – o homem em si e em texto.