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Manhã sem Herberto Helder

helder“Deito-me, levanto-me, penso que é enorme cantar.” Esses versos de Herberto Helder sempre me vêm à mente quando ouço seu nome, e em vários momentos da minha vida, quando a coisa aperta, quando alguém chega com suas conversas sobre a inutilidade da poesia. Eu deito-me, levanto-me, sei que é enorme cantar. São daqueles versos que formam um arcabouço de botes salva-vidas. Como os de Robert Creeley: “let light / as air / be relief”. Ou esses de Carlos Drummond de Andrade: “e na secura nossa, / amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita”; ou os de Wislawa Szymborska: “Morrer apenas o estritamente necessário / Sem ultrapassar a medida.” O último livro de Herberto Helder, publicado no ano passado, chama-se A morte sem mestre. Era estritamente necessária essa morte? A morte levou outro mestre. Que manhã horrível. Um avião alemão caiu na França. Herberto Helder morreu. E as desgraças pelo mundo, acumulando-se como os destroços sem fim sob os pés do Anjo da História de Walter Benjamin. Li a notícia esta manhã sobre a morte de Helder, não mais que dez minutos depois da notícia sobre o desastre do avião, soltei um “não”, e então deitei-me, levantei-me, cantei os versos do seu “Poemacto”, sozinho na sala, a sala minúscula porque é enorme cantar. Paul Zumthor escreveu em sua Introdução à poesia oral, ao discutir as canções dos escravos, as canções das mulheres debruçadas no rio com as roupas sujas da família, as canções daqueles que se dobram sobre plantações durante a colheita, que o ser humano pode tolerar qualquer trabalho, qualquer tristeza e qualquer desgraça, desde que possa cantar, tolerá-la cantando.

Herberto Helder nasceu em Funchal, no dia 23 de novembro de 1930. Frequentou a Universidade de Coimbra, trabalhou como jornalista, bibliotecário, tradutor; viajou por países da Europa como França, Holanda e Bélgica; viveu por alguns anos em clandestinidade no submundo de Antuérpia, chegando a ser deportado em 1960. Seu primeiro livro, O amor em visita, foi publicado em 1958. De volta a Portugal, frequentou o famoso Café Gelo, onde se reuniam os poetas surrealistas e outros intelectuais portugueses, como Mario Cesariny, Luiz Pacheco e António José Forte. Seguiram-se alguns livros e poemas que fizeram do autor um dos mais importantes poetas da língua portuguesa no pós-guerra. Seu livro A máquina lírica, de 1963, é não apenas um livro de potência linguística a beirar o xamânico, como uma obra-prima da poesia experimental, lançando mão da permutação como elemento organizador e produtor. O equilíbrio, neste livro, entre pensamento, imagem e música (poesia ao mesmo tempo logopaica, fanopaica e melopaica) é exemplar e ainda uma lição para escritores da língua.

No Brasil, tende-se a ver a poesia de Helder, tal qual a de Celan, como exemplo do exuberante e místico, por vezes sem perceber o que há de pensamento e trabalho de linguagem em seus poemas. O título deste livro é especialmente apropriado: A máquina lírica (o título original era Electronicolírica), o que me faz pensar na expressão de Le Corbusier “machine à émouvoir” (máquina de comover), que João Cabral de Melo Neto usou como epígrafe em seu livro O engenheiro. Há mais coisas unindo Helder e Cabral do que poderia parecer às leituras mais superficiais. Herberto Helder era um poeta altamente consciente da linguagem como forma não apenas de percepção do mundo, mas também como estratégia de transformação do mesmo. Neste aspecto, podemos falar sobre o encantatório e místico em sua poesia. “As casas são fabulosas, quando digo: casas. São fabulosas / as mulheres, se comovido digo: / as mulheres.” É necessário o cantar. Não apenas dizer o mundo, para visualizá-lo, mas cantá-lo, para que se mova e nos comova. Wallace Stevens escreveu no início de seu “The man with the blue guitar”:

The man bent over his guitar,
A shearsman of sorts. The day was green.

They said, “You have a blue guitar,
You do not play things as they are.”

The man replied, “Things as they are
Are changed upon the blue guitar
.”

capa_o_corpoA crença de que as coisas são o que são, mas transformam-se quando as cantamos. Naqueles poemas de linguagem permutacional, o vocabulário transforma-se, mesmo que permaneça aparentemente o mesmo, a cada rodada sintática. Não é possível “ilustrar” isso com um excerto. É preciso cantar um poema inteiro. Sem poder publicar um poema longo completo aqui, peço a vocês que leiam “A Bicicleta pela Lua Dentro – Mãe, Mãe”.

Sua poesia é ainda de um teor carnal, visceral, de pés na terra, ainda que a cabeça possa parecer nas nuvens para alguns desatentos. O título de um de seus livros é uma lição em si: A colher na boca (1961). A coisa, mas a coisa sentida. Ou O Corpo O Luxo A Obra (1978). E até quando fala do corpo, é corpo sentido pelo corpo, como no título lindo A cabeça entre as mãos (1982). Herberto Helder foi ainda um grande exemplo de integridade artística. Vivendo isolado, sem conceder entrevistas, com raras fotografias disponíveis, recusando prêmios, parecia saber que poesia desta ordem exige não imiscuir-se demais nos negócios deste mundo. O Brasil pode buscar sua antologia O Corpo O Luxo A Obra (São Paulo: Iluminuras, 2000). Portugal tem, os sortudos, acesso a sua obra completa.

O próprio autor escreveu há não muito tempo:

Li algures que os gregos antigos não escreviam necrológios,
quando alguém morria perguntavam apenas:
tinha paixão?
quando alguém morre também eu quero saber da qualidade da sua paixão:
se tinha paixão pelas coisas gerais,
água,
música,
pelo talento de algumas palavras para se moverem no caos,
pelo corpo salvo dos seus precipícios com destino à glória,
paixão pela paixão,
tinha?

Herberto Helder morreu. Cá estou eu perdendo tempo com um necrológio, quando podia apenas dizer: tinha paixão, por tudo o que era corporal. E não esquecer: deitem-se, levantem-se, lembrem-se de que é enorme cantar.

Data

terça-feira 24.03.2015 | 12:36

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