Rememorando o genocídio armênio
Neste começo de 2015, temos sido lembrados e relembrados a cada semana do horror particular do século passado. Com as comemorações do fim da Segunda Guerra Mundial aproximando-se, acompanhamos a cada semana os avanços do Exército Vermelho há 70 anos, e as liberações de campos de concentração nazistas como Auschwitz, Bergen-Belsen, Sachsenhausen. Em algumas semanas, nossos jornais e redes sociais discutirão os horrores de Hiroshima e Nagasaki. Estes são nomes já talhados em nossas memórias coletivas e, em muitos casos, ainda pessoais, com sobreviventes e descendentes diretos de sobreviventes ainda entre nós.
Mas quantos ouviram falar dos horrores na cidade de Van? Das marchas da morte, campos de concentração e valas comuns nas proximidades de Deir ez-Zor?
Este fim de semana, rememoramos o genocídio dos armênios no Império Otomano, que começava há 100 anos, no dia 24 de abril de 1915. Naquela manhã, os poetas armênios Daniel Varoujan e Ruben Sevak, o jornalista Kegham Parseghian, assim como duas centenas de outros poetas, escritores, jornalistas e intelectuais armênios foram presos na cidade que ainda se chamava Constantinopla, e executados nas semanas seguintes. Isso já demonstra o nível de planejamento e organização do genocídio que viria: eliminar da população armênia do território todos aqueles que poderiam erguer suas vozes contra o que estava por vir, ou assumir qualquer tipo de liderança para os armênios. Que ameaça o autor dos versos abaixo poderia representar para o povo turco?
“Campo maduro”
Daniel Varoujan (1884-1915)
A minha terra é dourada…
Parece chama.
O grão se queima
e não se consome.
A minha terra é dourada…
O céu é de fogo,
o solo é imóvel
sob as estrelas.
A minha terra é dourada…
As espigas em quatro filas
revestiram-se
de sombra e sol.
A minha terra é dourada…
Passam como relâmpagos,
no meio das espigas,
as abelhas e os zangões.
A minha terra é dourada…
Do mar, das ondas de ouro
voa o pardal
levado pelo vento.
Dorme, terra dourada,
dorme, campo maduro,
colherei o teu ouro
com a foice de prata.
(Tradução de Carlos Freire, in Babel de Poemas, editora L&PM, 2004)
Nos próximos meses, massacres ao redor da Turquia eliminariam a maior parte da população masculina armênia em idade militar, antes de banir o resto da população (mulheres, crianças, idosos) do território com mentiras de reassentamento na Síria, então ainda sob domínio otomano. Vilas inteiras ao redor de Muş foram incendiadas, e seus habitantes em muitos casos queimados vivos. O reassentamento dos que foram expulsos viria em valas comuns ao redor de Deir ez-Zor, daqueles que sobreviveram aos massacres no caminho, os afogamentos – incluindo barcos cheios de mulheres e crianças afundados no Mar Negro, envenenamentos, estupros de mulheres e meninas. Os horrores de 1915 estão na casa do indizível, como todos os genocídios que viriam no século 20: judeus na Europa, maias na Guatemala, tutsis em Ruanda, bósnios na ex-Iugoslávia. E as técnicas que mais tarde se tornariam praxe na Alemanha nazista e na Guerra da Bósnia, por exemplo: retirar os direitos civis e humanos de uma população específica, separar homens das mulheres, assassinar sob o manto de palavras mentirosas. No dicionário genocida, campo de “trabalho” significa campo de extermínio, “reassentamento” significa vala comum.
E, no entanto, é necessário dizer. Dizer o que é dizível: houve um genocídio, até hoje reconhecido por apenas duas dezenas de países. Estados Unidos e Israel estão entre os que negam o que houve, por suas alianças políticas e militares com a Turquia. E a própria Turquia, obviamente, nega com veemência. Aqui percebemos o poder das palavras: há muitos dispostos a aceitar “crime” e “massacre”, já a palavra “genocídio” agita, no entanto, um horror histórico. Em 2007, o jornalista armênio Hrant Dink foi assassinado em Istambul por um jovem nacionalista turco por lutar justamente por este reconhecimento, por ousar dizer o indizível. Mas, aqui, o “indizível” não é categoria filosófica ou poética, mas política. Temos as palavras, temos o fato. E vale lembrar que foi com o Genocídio Armênio que o jurista polonês Raphael Lemkin começou suas reflexões que levariam à própria criação da palavra genocídio.
O poeta armênio-brasileiro William Zeytounlian escreveu: “Há uma dimensão dupla da história escrita a partir dos depoimentos de um sobrevivente. Certamente é um discurso sobre o passado. Mas antes de tudo, é um discurso sobre o presente, ou antes, um discurso sobre o projeto que o sobrevivente tem sobre o interlocutor. Com um sobrevivente, entramos na vala coletiva do passado com nossas roupagens atuais, como os apóstolos de um quadro renascentista ou dante no inferno”. E encerrou com estes versos:
o alfabeto sobre o escudo
revela a relva, a areia abreviada
nós, devir débil sopro surdo
nós, memória e olvido de uma raça
A impunidade dos criminosos de guerra turcos e a recusa do país em reconhecer os crimes, como já foi sugerido por muitos escritores, serviram de incentivo aos genocídios que viriam. É importante e essencial erguermos nossas vozes, honrar os mortos armênios, como os judeus, e os maias, e os tutsis, e os bósnios, assim como exigir que a Organização das Nações Unidas deixe de ser tão incompetente em impedir crimes tão gigantescos. Décadas depois dos armênios e judeus, a ONU falharia em salvar os tutsis das mãos dos hutus, como no caso horrendo da escola em Kigali, capital de Ruanda, onde centenas de tutsis se refugiaram por ser ali a base de uma força de paz da ONU, enquanto do lado de fora grupos de hutus esperavam com foices e machados. E aquelas centenas de tutsis permaneceram a salvo, até que a ONU decidiu deixar o país. Ou aquela fábrica em Srebrenica, onde milhares de muçulmanos bósnios se refugiaram por ser ali a base de uma força de paz da ONU, até que esta força de paz da ONU, sem receber reforços ou qualquer instrução dos líderes da organização em Genebra, entregou estas pessoas nas mãos do criminoso de guerra Ratko Mladić e seu esquadrão da morte, que os massacrou: uma vez mais separando homens de mulheres, mulheres de suas crianças. Foram 8.372 mortos naquele dia. Quando o presidente sérvio, Tomislav Nikolić, desculpou-se pelo massacre, também ele recusou-se a chamá-lo de genocídio.
Neste exato momento, genocídios organizados estão ocorrendo em Darfur, ao mesmo tempo em que milhares morrem por omissão dos países “civilizados” no Mediterrâneo. Caminha o século 21 nos mesmos passos do século 20? Como as gerações futuras, se as houver, verão nossa omissão sobre o que ocorre hoje na Síria, no Sudão, e com os seus refugiados ao redor e sobre o espelho das águas do Mediterrâneo? E nós, brasileiros, que moral temos ao discutir estes crimes, quando pensamos no que vem ocorrendo há séculos com os guaranis e os iorubás, seus descendentes e sobreviventes em nosso território?