O futuro da poesia
Desde o advento da internet, uma das discussões mais frequentes no campo da literatura é o impacto que isso terá sobre a produção de livros, sobre a vida do escritor, sobre a própria natureza da escrita. A coisa não é nova. Discussões parecidas aconteceram com o advento do rádio e da televisão. Previsões sobre o fim da escrita, o fim dos livros, e assim por diante. E no entanto, isso está longe do que realmente ocorreu. Grandes trabalhos literários foram produzidos após o advento do rádio e da televisão. Ao mesmo tempo, seria ingênuo dizer que essas tecnologias não tiveram um efeito sobre a escrita.
Em seu excelente estudo sobre a literatura modernista, The mechanic muse (1987), o crítico canadense Hugh Kenner discutiu como certas inovações tipográficas na escrita de poetas como Ezra Pound provavelmente não teriam ocorrido como ocorreram sem o advento da… máquina de escrever. Quando pensamos no “futuro da escrita”, a discussão gira em torno das transformações, de inovações, do que mudará. Mas nem sempre as novas tecnologias levam, necessariamente, a novas formas. Como temos visto nas últimas décadas, várias novas tecnologias têm permitido que poetas, por exemplo, retornem a tradições milenares da poesia, especialmente as que estão fincadas na oralidade. Conheço pessoas que têm sérios preconceitos contra livros em áudio, mas mesmo eles não são coisa nova, se pensarmos em como é velha a tradição de sentar-se, seja no sofá ou ao redor de uma fogueira, para ouvir um contador de histórias, que por séculos foi o repositório de épicos.
Em junho, participo de uma conferência chamada de “O futuro da poesia” durante o Festival de Poesia de Berlim. Venho preparando o texto de apresentação, e adianto aqui algumas reflexões que tanto têm guiado sua escrita como também complicado-a.
Há alguns anos, a tarefa teria sido mais fácil, mais simples. Quando comecei meu trabalho crítico, tinha uma preocupação e interesse especiais pelas vanguardas históricas, era muito interessado na ideia de inovação das formas. Mas confesso que, com o passar dos anos, minhas leituras foram se distanciando no tempo, resgatando tradições antigas como a dos trovadores, que nós brasileiros nunca privilegiamos muito, mesmo em nossa formação escolar.
Mesmo quando começo a pensar no futuro da poesia, me vejo voltando ao passado dela, e percebo como este passado é ainda um presente muito vivo entre nós, já que em todas as partes do mundo a poesia segue sendo praticada nas mais diversas formas, algumas delas milenares. Ultimamente, mal tenho lido poesia, confesso. Tenho andado quase obcecado com certos campos da antropologia e da arqueologia, ligados ao estudo das línguas e da linguagem, sobre as próprias origens da linguagem, seu desenvolvimento em nossa espécie, e até mesmo a questão se a linguagem havia realmente surgido pela primeira vez com o Homo sapiens, ou se havia vestígios do uso da língua na organização social de outras espécies humanas, como os Neandertais.
Discutir hoje tanto o presente quanto o futuro da poesia e da literatura parece-me exigir um conhecimento menos parcial de sua história e de sua geografia. Uma compreensão das línguas e da linguagem, de seu papel em nossa vida, de seus usos e abusos. É preciso evitar, ainda, a pretensão de querer guiar o desenvolvimento dessas práticas a partir do desenvolvimento histórico e político-cultural do Ocidente. De nossa obsessão por progresso e evolução. Em todas as partes do globo, práticas milenares coexistem com práticas experimentais, ainda que muitas vezes estas práticas experimentais desconheçam seu arcabouço milenar. Assim como práticas milenares, por nosso completo desconhecimento, por vezes nos chocam por sua natureza experimental.
Há tantas formas e tradições vivas. No ano passado, fiquei fascinado pela tradição do landay, poema de 22 sílabas praticado pelas mulheres afegãs, ao assistir a um filme da escritora Eliza Griswold e do fotógrafo Seamus Murphy. Ainda que perseguido, proibido, este poema continua aflorando no Afeganistão, como uma forma de resistência e sobrevivência dessas mulheres:
Você é como a América, meu querido.
Ainda que sua a culpa, é meu o castigo.
§
No pomar, eu quero beijar você. Mas, sem barulho!
Os outros pensarão que há bodes presos no arbusto.
§
Poderia provar até a morte, se provasse a sua língua
Enquanto o via tomar sorvete, ambos crianças ainda.
O que direi em Berlim sobre o futuro da poesia? Venho pensando a respeito desde que o convite surgiu. O que posso dizer é que esse futuro requererá um conhecimento do passado, e uma compreensão do presente. E, mesmo que a conferência ocorra em Berlim, sei que este futuro não estará apenas na Europa. Assim como o futuro do próprio Ocidente-Norte está e sempre estará ligado ao passado, presente e futuro do Oriente-Sul.