Sprachraum. Lusofonia.
Uma de minhas palavras favoritas em alemão é Sprachraum, usada para definir o espaço geográfico de uma determinada língua, literalmente “espaço linguístico”. Trata-se de uma palavra comum em qualquer conversa literária por aqui, em geral usada para se referir ao espaço linguístico germânico, mas não só. Formada pela própria habilidade aglutinante da língua alemã, é bastante apropriada quando pensamos que o espaço linguístico alemão é compacto, separado apenas por fronteiras nacionais, unindo no entanto a Alemanha, a Áustria e Liechtenstein, países onde é a única língua oficial, e parte da Suíça, onde é uma das línguas oficiais com mais falantes, além de ter reconhecimento oficial na Bélgica e em Luxemburgo. Não podemos, é claro, nos esquecer de que o alemão é uma língua regional reconhecida na Namíbia, colonizada pelo Império Alemão, assim como o Império Austro-Húngaro expandiu a sua influência para vastas regiões do Leste Europeu, onde ainda é falada por minorias em países como a Eslovênia e a Hungria. Um dos poetas de língua alemã mais famosos do pós-guerra, Paul Celan, nasceu em Czernowitz, então Romênia, hoje Ucrânia, assim como dois dos mais influentes autores da língua alemã no século 20, Franz Kafka e Rainer Maria Rilke, nasceram em Praga, então uma cidade importante do Império Austro-Húngaro. No entanto, reconhecemos o alemão como uma língua dominante em um espaço geográfico praticamente cerrado, com cercas definidas, dando um significado bastante concreto para Sprachraum, que tem seu caráter abstrato no campo da linguística.
Talvez seja um exercício de brasileiro que vive há tantos anos na Alemanha, mas gosto de traçar paralelos entre os dois espaços. Em português, não temos uma expressão como Sprachraum. Podemos exprimir a ideia, mas recorremos a construções como espaço ou comunidade linguística. Usamos, no entanto, com frequência a expressão lusofonia, para indicar talvez não exatamente o espaço, mas os sons-significantes comuns. Temos a palavra germanofonia em português, eu porém jamais a li ou ouvi em qualquer lugar, ao contrário de francofonia e anglofonia, certamente pela maior influência destas culturas no mundo lusófono. Mas a comparação mais interessante é realmente geográfica, pois o mundo lusófono, ao contrário do germanófono, é completamente disperso, espalhado. Nenhum dos países de expressão portuguesa faz fronteira com outro da comunidade. Estão todos banhados pela água salgada do mar em três oceanos, e separados dos outros por extensões de terra. Somos linguisticamente isolados, com Portugal e Brasil compartilhando a experiência de estarem banhados pelo Atlântico e pela língua castelhana. Isso tem uma influência tanto econômica quanto política na relação entre os países de língua alemã e os países de língua portuguesa.
É mais fácil para um autor de língua alemã e seus livros circularem em seu Sprachraum, compacto. Ainda que os países de língua alemã tenham uma história bélica e um passado comum de violência mútua, a situação é muito distinta da que vemos entre os países de língua portuguesa, com suas histórias de dominação colonial e escravidão. Isso traz outras complicações a nossas relações.
Já tive a experiência, um par de vezes, de presenciar um alemão hesitando antes de se lembrar de que o grande Robert Walser, por exemplo, era suíço, não alemão. Rilke, Kafka, Walser, Freud, Hoffmansthal, Musil são todos escritores que circulam na Alemanha como autores da língua comum. É claro que há especificidades no trabalho de cada, e que os contextos austríaco e suíço, por exemplo, são bastante distintos do alemão, mas a maneira como estes autores circulam em seu Sprachraum seria quase impensável, infelizmente, para autores da comunidade lusófona. Ao menos, ainda, hoje.
No caso de Brasil e Portugal, isto está mudando. Aos poucos. Lentamente. As redes sociais ajudaram bastante, em vários aspectos, pelo simples fato de que há muitos escritores brasileiros e portugueses hoje em contato virtual, recebendo ao menos as notícias das publicações e podendo ler outras em formato digital. Além disso, há o caso de escritores portugueses que viveram ou vivem no Brasil, como Alexandra Lucas Coelho e Matilde Campilho, mantendo um contato forte com o país, assim como há escritores brasileiros que viveram ou vivem em Portugal, como Érica Zíngano e Luca Argel. Pequenas editoras portuguesas, como Mariposa Azual e Douda Correria, vêm lançando livros de poetas brasileiros em pequenas tiragens, como Marília Garcia e Diego Moraes, respectivamente. O livro de estreia de Matilde Campilho, que chegou a sua quarta edição em Portugal pela Editora Tinta-da-china, foi lançado há pouco no Brasil pela Editora 34. Adília Lopes e Gonçalo M. Tavares são portugueses admirados no Brasil. Sei que autores como Luiz Ruffato e Milton Hatoum são editados em Portugal, mas seu alcance é menor. A edição da obra completa de Ruy Belo no Brasil foi uma ótima iniciativa da Editora 7Letras. Quando vamos, no Brasil, começar a ler e amar Mario Cesariny como ele merece, esse poeta que certamente nos seria tão congenial? Os portugueses já decobriram Hilda Hilst e Roberto Piva? Não sei.
No entanto, a situação é muito pior quando pensamos na ausência de autores africanos de expressão lusófona no Brasil. A responsabilidade é nossa, como críticos e editoras. Não se trata apenas de apontar os dedos em riste, mas de trabalharmos juntos para uma maior compreensão entre os países lusófonos. Faço aqui o meu próprio mea culpa: após anos editando a revista Modo de Usar & Co., percebi com um calafrio que apenas no mês passado publiquei, pela primeira, um autor de Cabo Verde na revista, a poeta e prosadora Dina Salústio, após ler seu nome em um texto de Victor Heringer, dedicado ao músico cabo-verdiano António Vicente Lopes, conhecido como Travadinha [“Travadinha”, Revista Pessoa, 22.04.2015]. Fiquei pensando, após ler o texto de Heringer, em qual havia sido meu primeiro contato com a língua portuguesa de Cabo Verde. E lembrei-me de um documentário sobre o país, visto talvez na década de 1990, em que um dos entrevistados citava um poeta cabo-verdiano, que teria escrito: “As cabras nos ensinaram a comer pedras / para que não morrêssemos de fome”. Ou, ao menos, era assim que havia ficado em minha memória. Mas percebo agora, ao buscar pela primeira vez o texto depois de tantos anos, graças à internet, que eu havia abrasileirado os versos em minha cabeça. Na verdade, o poeta escreveu: “As cabras ensinaram-nos a comer pedra / para não perecermos”, e descubro seu nome: Ovídio Martins. Que nome. Nome de poeta lusófono. Nós, separados pelo mar.
Eu acredito que precisamos pensar pós-colonialmente, e mais, de forma descolonizadora, em língua portuguesa. Talvez a relação entre Brasil e Portugal, por exemplo, ainda precise complicar-se antes de facilitar-se. Mas penso nos versos de Carlos Drummond de Andrade, o gigante lusófono, para encerrar com uma nota de possibilidade, pensando nos companheiros da língua comum: “Estou preso à vida e olho meus companheiros / Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças / Entre eles, considero a enorme realidade / O presente é tão grande, não nos afastemos / Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas”.