Sobre a poesia de Max Czollek
Conheci Max Czollek e seu trabalho em 2012, no lançamento de seu livro de estreia, intitulado Druckkammern (Berlin: Verlagshaus J. Frank, 2012), algo como “câmera de descompressão”. O evento ocorreu na Literaturwerkstatt Berlin (Oficina de Literatura de Berlim), com apresentação de Jan Kuhlbrodt, e eu fui para conhecer o trabalho de um jovem autor daquela que se tornaria, no ano seguinte, a minha própria editora na Alemanha. Seu trabalho imediatamente me chamou atenção e me pareceu diferente do trabalho dos poetas alemães da minha geração, ou ao menos apontar para um caminho distinto do que vinha sendo seguido na cena literária da cidade. Aqui cabem algumas considerações biográficas: Max Czollek nasceu em Berlim, em 1987. É exatamente dez anos mais jovem que eu. O fato de nascer em Berlim é também algo interessante, já que a cena literária da cidade é fortemente marcada por escritores vindos de outras partes da Alemanha. É comum até mesmo que pessoas se espantem quando conhecem berlinenses nativos. Parecem raros em certos círculos.
Com a Queda do Muro, Berlim tornou-se o centro cultural e literário do país, desbancando Colônia e Munique, que atraíam a intelectualidade da Alemanha Ocidental à época da divisão. Frankfurt tinha seu nome no cenário por sediar a maior Feira Literária do mundo e ser a cidade também da maior editora do país, a Suhrkamp. Mas eram Colônia e Munique os centros principais das cenas literárias. A Alemanha Oriental contava com sua capital na Berlim dividida, o que sempre fez da cidade um ponto importante para a intelectualidade da Alemanha comunista. Leipzig e Dresden reuniam também uma cena literária, mas era na capital que intelectuais como Bertolt Brecht e Heiner Müller se moviam. No campo ainda de fatores biográficos específicos, Max Czollek nasceu no seio de uma família da pequena comunidade judaica restante no país. Naquela primeira leitura que presenciei, o poeta leu textos marcados pela tradição poética iídiche, usando mesmo palavras do iídiche, o que me pareceu historicamente não apenas interessante, como comovente.
Trata-se de um belo livro de estreia, publicado quando o poeta tinha 25 anos. O que o distingue ainda de muitos poetas das gerações anteriores é sua rede de referências literárias. Sua poesia dialoga com o que já chamei em vários artigos de ala telúrica da poesia germânica. Sua literatura ao rés do chão, de pés no chão. Não a ala órfica e mística de Novalis, Rilke e Trakl, mas a de Heine, Brecht e, entre os poetas do pós-Guerra, o excelente Thomas Brasch (1945 – 2001), que também pertence a esta família literária. Max Czollek dá também grande importância a um poeta que, mesmo que editado e estudado nas escolas, não é muito privilegiado entre poetas: o escritor judeu Kurt Tucholsky (1890 – 1935), que trabalhou como jornalista, satirista e poeta. São referências que não vinham sendo privilegiadas no debate literário alemão, em parte pelos traumas políticos do período do Muro. A ditadura sob a qual o país viveu foi um regime comunista, e a filiação partidária destes autores os tornava, de certa forma, suspeitos. Para nós brasileiros, onde a ala telúrica da poesia de Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto foi mais influente que a ala órfica de Jorge de Lima e Murilo Mendes (que no entanto se transformou nos últimos livros), a poesia de Czollek poderia parecer muito familiar. Outra diferença é que nós brasileiros vivemos sob uma ditadura militar de direita.
Em um poema que dialoga com Brecht, Czollek mostra muito de sua poética. O texto de Brecht chama-se “an die nachgeborenen”, geralmente traduzido ao português como “aos que vão nascer”. Neste, Brecht escreve na primeira estrofe da segunda parte, aqui em tradução de Paulo César de Souza:
“À cidade cheguei em tempo de desordem
Quando reinava a fome.
Entre os homens cheguei em tempo de tumulto
E me revoltei junto com eles.
Assim passou o tempo
Que sobre a terra me foi dado.”
Brecht escrevia do centro dos horrores do Terceiro Reich. Agora que aquele horror acabou e vivemos os nossos próprios, Czollek escreve seu poema e dirige-se “an einen vorgeborenen” (àquele que nasceu antes), ao próprio Brecht:
àquele que nasceu antes
- cheguei às cidades à hora
das bodas quando
ali a alegria imperava
entre os homenseu dancei com eles
dormi entre os mudos
sem língua a boca cheia
entupida de pontesa força dos meus braços
foi-se em malas
carreguei o medoII.
é verdade
mergulhei no mar cheio
perdi nisso os cabeloscarregado pela sorte
quando isso falhou
eu estava de partidaa esperança magra feito folha
na mata (eu falo de árvores
eu falo)e não encontro o caminho
para as casas de arIII.
de verdade vivo em tempos
em que os infelizes nem
choram mais nós somente
escrevemos adiante – por todo
lado os dedos em gatilhos quem
pode seguir simpático de que
adianta por que nos tornamos
ao fim do oceano árticoaonde levavam as ruas
para o meu tempo
Max Czollek, Druckkammern, Verlagshaus J. Frank, 2012)
A tradução é minha. Nos seus mais recentes poemas Max Czollek vem firmando sua assinatura, em poemas muito bonitos, diretos e despertos, que espero poder traduzir em breve. Tenho certeza que seu próximo livro apenas tornará mais clara sua posição entre os poetas de mão firme da nova geração.
Kurt Schwitters em nova tradução no Brasil
A editora da Universidade Federal de Santa Catarina acaba de lançar no Brasil a tradução de Maria Aparecida Barbosa para uma série de poemas, contos e outros textos inclassificáveis do poeta e artista visual alemão Kurt Schwitters. Intitulado Contos Mércio na escolha da tradutora para verter ao português o famoso e difícil Merz de Schwitters, o livro traz poemas visuais, caligráficos, contos, a partitura de sua Ursonate (1922) – um dos mais conhecidos poemas sonoros do século XX – e uma variedade de trabalhos escritos ao longo de toda a carreira de Schwitters, que iniciou sua escrita ligado ao grupo dadaísta berlinense, com Raoul Hausman, Hannah Höch e John Heartfield, entre outros.
Veronica Stigger escreveu um belo artigo sobre o alemão para o jornal O Globo, e o volume foi saudado por poetas experimentais contemporâneos como Guilherme Mansur. Ainda não pude ter em mãos a edição, que parece muito bem cuidada, mas sua aparição este ano no Brasil deve ser saudada por dois motivos históricos.
Ainda que o mais independente dos artistas ligados ao movimento DADA, a obra de Schwitters não pode ser pensada inicialmente fora dele. Como se sabe, o movimento começou com um grupo de artistas exilados na Suíça por causa dos horrores da Grande Guerra, cujo centenário se comemora este ano. Em 1916, em Zurique, os alemães Hugo Ball, Emmy Hennings, Hans Arp, Richard Huelsenbeck e Hans Richter, ao lado dos romenos Trista Tzara e Marcel Janco e ainda a suíça Sophie Täuber começaram suas performances em um bar do centro da cidade, chamando-o de Cabaret Voltaire. Mais que um movimento de experimentação artística, o que certamente foi, o trabalho dos dadaístas se queria um protesto contra os massacres da guerra e a mentalidade militarista europeia. Menos que defender uma utopia política, estes artistas se voltavam contra o mundo distópico e destrutivo ao seu redor, em seu tempo histórico.
Não apenas como parte das rememorações da Primeira Grande Guerra, este volume pode nos ajudar a contemplar a obra de artistas engajados contra o militarismo, mostrando-os possibilidade de resistência em nosso próprio momento histórico, mais uma vez – como sempre – mergulhado no pesadelo bélico de guerras civis na Síria, Ucrânia e Iraque, além do conflito entre israelenses e palestinos. Para um brasileiro, além disso, no momento em que se discute com força cada vez maior a necessidade de desmilitarizar a polícia no país, com presos políticos mais uma vez sendo encarcerados na República, artistas como Kurt Schwitters são guias para nossas estratégias de desarticulação dos discursos oficiais do governo e da imprensa institucional. É neste espírito que celebro o retorno de Schwitters à língua portuguesa.
Autores alemães e sua influência no Brasil
Quando se pensa na literatura brasileira e em sua relação com as literaturas de outras nações, percebe-se que ela trilhou caminhos parecidos aos de outros países do continente americano. A literatura latino-americana sempre teve uma tendência francófila. Foi em Paris que César Vallejo sonhou sua morte con aguacero, e foi na mesma cidade que Paulo Prado afirma que Oswald de Andrade descobriu o Brasil. Escritores brasileiros importantes dedicaram-se à tradução de franceses, como Marcel Proust, vertido ao português por Mario Quintana e Carlos Drummond de Andrade, e a poesia francesa teve um papel importante até meados da década de 1950, quando pensamos na posição central que o Grupo Noigandres dedica a Stéphane Mallarmé. O idioma francês, lingua franca de cortes e cenas literárias por muito tempo, estendeu sua influência ao simbolismo russo de Alexander Blok, do brasileiro Cruz e Sousa, e o surrealismo deixou sua marca em literaturas do mundo todo, especialmente na latino-americana, ainda que tenha tido menores adeptos no Brasil.
A partir da década de 1950, especialmente com os Beats norte-americanos e a ascendência política dos Estados Unidos no pós-guerra, este papel começou a ser tomado pela língua inglesa. Já se escreveu muito na crítica de arte sobre a transferência da Capital Cultural do mundo no pós-guerra, de Paris para Nova York. Na literatura, a mudança foi a mesma. Muitos escritores contemporâneos brasileiros, especialmente poetas, mantêm uma relação importante com a literatura francesa, como vemos no trabalho que Carlito Azevedo, que divulgou no Brasil autores do século 21, como Christophe Tarkos e Natalie Quintane. Marília Garcia, por sua vez, mantem um trabalho de pesquisa pioneiro sobre a poesia de Emmanuel Hocquard. A literatura norte-americana, no entanto, parece comandar a atenção da maior parte dos autores brasileiros contemporâneos.
Agora qual o papel da literatura alemã no diálogo de autores brasileiros com estrangeiros? Os alemães tiveram seu primeiro momento de grande influência literária com seu Romantismo, certamente. Goethe e Heinrich Heine tiveram seus admiradores no país. Machado de Assis e Fagundes Varela traduziram Heine, e Castro Alves se basearia no poema “Das Sklavenschiff” (1853) para a composição de seu poema mais famoso, “O Navio Negreiro” (1869). Manuel Bandeira traduziria ainda, além de Goethe e Heine, peças como Maria Stuart, de Schiller. Também o expressionismo germânico encontrou seus divulgadores no Brasil, com Georg Trakl traduzido por André Vallias, por exemplo, que há poucos anos deu à língua portuguesa também seu Heinrich Heine definitivo, em traduções verdadeiramente geniais para poemas do alemão em português. Augusto de Campos traduziu com admiração August Stramm, outro expressionista até então pouco discutido no Brasil, e dedicou-se a traduções novas de poemas de Rainer Maria Rilke e de autores especialmente difíceis, como Arno Holz e Quirinus Kuhlman.
Do modernismo alemão, certamente o autor mais influente no Brasil foi Bertolt Brecht, em especial no teatro. Dentre os romancistas, Thomas Mann foi traduzido e muito lido, como em todo o mundo, mas não se pode dizer que tenha deixado marcas. O maior romance do Modernismo alemão e talvez uma das obras mais experimentais da língua alemã, Berlin Alexanderplatz (1929), de Alfred Döblin, jamais parece ter encontrado a mesma acolhida de culto das obras do austríaco Robert Musil, por exemplo.
Os poetas concretos estabeleceram pela primeira vez um diálogo mais forte e direto com a literatura alemã a partir da fundação do movimento da Poesia Concreta. Na Alemanha, fala-se sobre a dupla nacionalidade da poesia concreta com mais frequência que no Brasil. Os diálogos de Eugen Gomringer e Max Bense com Haroldo de Campos e Décio Pignatari são momentos altos da relação entre as literaturas das duas línguas, e o livro Inteligência Brasileira, de Bense, é um belo momento de encontro entre duas culturas. Mas além da relação do Grupo de 45 com a ala mais órfica da poesia germânica, com seu culto a Rilke, e a relação do Grupo Noigandres com sua ala mais construtivista, muitos autores interessantes e amplamente conhecidos, amados e lidos na Alemanha permanecem completamente desconhecidos no Brasil.
Talvez um dos exemplos mais gritantes seja o poeta Rolf Dieter Brinkmann (1940–1975). Brinkmann é um dos poetas mais populares da Alemanha. Tradutor de Frank O´Hara e introdutor na poesia alemã de certas técnicas que vinham dos Beats, sua poesia está entre aquelas que são apreciadas até mesmo (e talvez especialmente) pelos leitores menos contumazes de poesia. Sua vida e morte prematuras adicionam, é claro, pitadas de mito à sua popularidade. Morto em um atropelamento na cidade de Londres, quando voltava bêbado para casa após uma leitura, talvez ele exerça sobre os leitores alemães o mesmo charme que Paulo Leminski parece ter sobre alguns brasileiros, guardadas as devidas diferenças estilísticas entre suas obras. Mas mesmo Brinkmann flertou com a canção popular em seus poemas, ainda que em seu caso a prática o unisse à linhagem de Heine, quando a de Leminski estava na canção popular. No entanto, as traduções de André Vallias para Heine, usando a tradição do samba para ligar os versos de Heine à mente brasileira, mostram que a literatura brasileira e a alemã não precisam ser tão estrangeiras assim uma à outra.
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