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As obscuras (de Vivian Maier a Hilda Machado)

A poeta brasileira Francisca Júlia

A poeta brasileira Francisca Júlia

Há algumas semanas, pude finalmente assistir ao documentário do historiador e colecionador John Maloof sobre a fotógrafa norte-americana Vivian Maier (1926-2009), Finding Vivien Maier (2013), dirigido por ele e Charlie Siskel. O filme mostra sua descoberta da obra da fotógrafa, completamente desconhecida até então, e sua busca pela história de sua vida. Talvez alguns de vocês conheçam alguns dos fatos: em 2009, pouco tempo depois da morte da artista, John Maloof comprou em um leilão uma caixa de negativos, e, ao revelá-los, deparou-se com o trabalho fotográfico da mulher que vem conquistando admiradores ao redor do mundo, com várias exposições e publicações. Maier jamais tentou angariar esta fama. Fez milhares de fotos, sem revelar os negativos, deixando caixas e caixas de um trabalho que a põe lado a lado de fotógrafos como Lisette Model, Eugène Atget, Diane Arbus, Robert Frank ou William Eggleston. Compartilho da opinião.

O que fascina não é apenas seu trabalho, mas sua história. Por que uma mulher com este talento jamais tentou, seriamente, ter seu trabalho mostrado, publicado, reconhecido? A pergunta percorre todo o documentário. Vivian Maier passou toda a sua vida trabalhando como babá de famílias ricas de Nova Iorque, mas teria dito que esta era sua escolha, pois o trabalho lhe dava liberdade para percorrer as ruas, onde fazia suas fotos, onde produzia sobre obra. Sai-se do documentário com a impressão de uma mulher que foi senhora dos seus passos, dona de sua vida. Que fez escolhas a partir de sua arte. Mas também se sai dele com certa tristeza, pelo fim que teve, sozinha, desconhecida, jamais recebendo tratamento pelos problemas que parecia certamente carregar.

Durante o filme, não pude deixar de pensar em outras duas americanas que tiveram destino parecido. Obviamente, em primeiro lugar, a poeta Emily Dickinson (1830-1886), que viveu toda a sua vida na casa dos pais, em Amherst, cuidando da casa, e, ao morrer, deixara centenas de papéis com alguns dos poemas mais belos do século 19. Hoje, Dickinson é incontornável para compreendermos nossa modernidade, nossa própria época. A outra foi também poeta, Lorine Niedecker (1903-1970), que passou a vida na ilha onde nasceu, a Black Hawk Island, e ganhou o pão limpando casas e espaços alheios. Enquanto isso, produzia uma obra poética brilhante. O quanto o gênero feminino destes seres fabulosos influiu em seu isolamento, na impossibilidade de seu reconhecimento, seria assunto que nos levaria a algumas questões espinhosas.

O filme me levou a pensar também em algumas mulheres brasileiras, como a grande Francisca Júlia (1871-1920), a poeta paulista que, ao publicar os primeiros poemas em revistas, levou homens famosos da época a questionar se vinham de uma mente feminina ou se se tratava de um pseudônimo. Isso diz muito de nós. Um deles, João Ribeiro, mais tarde tentou consertar o erro escrevendo o prefácio admirado do primeiro livro da autora, Mármores (1895). Ler este livro hoje é deparar-se com um dos poetas brasileiros com maior firmeza e tesura de linguagem, com poemas de uma plasticidade realmente exuberante, apesar do epíteto que deram à poeta: a “Musa Impassível”. Sempre a surpresa diante da mente feminina. Sua circunscrição ao sentimental, a dúvida de sua lucidez. Como Clarice Lispector viria a ironizar na voz de seu narrador em A Hora da Estrela (1977), “Um outro escritor sim, mas teria que ser homem porque escritora mulher pode lacrimejar piegas.”

O que sabemos é que Francisca Júlia publicou outro livro, Esfinges (1903), uma reescritura do primeiro – retirando poemas e acrescentando outros – além de dois livros infantis, antes de silenciar-se a si mesma após o casamento, retirando-se para os afazeres domésticos e talvez sua escrita, que não voltaria a publicar. Reconhecida em vida, sim, mas hoje esquecida. Por que ela se silenciou? Continuou realmente escrevendo? O que foi feito destes papeis após seu suicídio? Pois Francisca Júlia foi a nossa primeira grande poeta e primeira suicida da literatura, matando-se em 1920 após a morte do marido. Alguém cuidou de seus papéis? Sobrou algo? Há grandes poemas místicos seus escondidos, empoeirando-se, alimentando traças em algum lugar? Morta há tanto tempo, é mais provável que, se houve novos trabalhos, já estão perdidos.

Há outros exemplos de mulheres que não alcançaram na hora certa o reconhecimento que mereciam, estando entre os maiores escritores do país, como a grande Hilda Hilst, ou Orides Fontela. O caso é distinto, porém, já que foram mulheres que publicaram, buscaram o diálogo, mas foram silenciadas pela estupidez crítica das gerações a que pertenciam.

No Brasil, talvez o caso mais parecido ao de Vivian Maier seja o de Hilda Machado (1952-2007). Conhecida como cineasta e historiadora, escreveu alguns dos poemas mais luminosos, tesos e inteligentes que li na última década. Dois foram publicados na revista Inimigo Rumor, como “Miscasting”, certamente um dos meus favoritos. Carlito Azevedo possuía um arquivo com outros poemas, pois a conheceu pessoalmente e foi quem conseguiu tirar dela estes textos, e os publicamos no segundo número impresso da Modo de Usar & Co. Há alguns dias, decidi disponibilizá-los todos para leitura coletiva [“Hilda Machado”, revista Modo de Usar & Co., 3 de janeiro de 2015] (link: http://revistamododeusar.blogspot.de/2008/04/hilda-machado-1952-2007.html)

Estou em contato há alguns anos com a irmã de Hilda Machado, buscando a possibilidade de editar os papéis que a autora deixou. Segundo ela, há alguns arquivos: poemas, artigos, escritos sobre o cinema. Faço votos que este trabalho possa vir à luz em breve. Eu me ofereci para editar o trabalho poético, mas não importa quem o faça, desde que este trabalho não se perca e possa ser lido por todos. O talento de Hilda Machado é inegável, e basta ler o que está disponível para estar certo de que estes excelentes textos não foram acidentes de percurso, nem sorte de principiante. São poemas de uma mulher que sabia exatamente o que estava fazendo, tinha voz própria e inteligência, lucidez e humor fascinantes.

Faço aqui minha pequena homenagem a estas mulheres que respeito e admiro, como Francisca Júlia e Hilda Machado, com a esperança de que elas deixem o quanto antes de ser obscuras. Precisamos, para nosso bem, deixar de cometer estes erros.

Data

segunda-feira 05.01.2015 | 14:58

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Pequena homenagem a Tomaž Šalamun

Tomaž Šalamun em Tiradentes, Minas Gerais © Ezequiel Zaidenwerg

Tomaž Šalamun em Tiradentes, Minas Gerais © Ezequiel Zaidenwerg

Este ano de 2014 parece realmente não querer dar trégua aos obituários. No mesmo dia em que fazia minha homenagem a Friederike Mayröcker por seus 90 anos [Friederike Mayröcker: 90 anos, DW Brasil, 20.12.2014], mencionando a alegria de poder comentar um aniversário num ano de tantas mortes de escritores, vim a saber algumas horas depois da morte de Gerardo Deniz (1934-2014), poeta nascido na Espanha mas residente no México e que eu admirava imensamente. Minha família poética mexicana havia celebrado há pouco seu aniversário de 80 anos com uma série de eventos.

Mas ao receber do artista esloveno Dražen Dragojević a notícia, esta manhã [27.12.2014], de que havia falecido o grande poeta Tomaž Šalamun (1941-2014), nosso querido amigo em comum, a sensação foi de perda pessoal, além da grande perda literária. Infelizmente, não foi uma surpresa, pois os mais próximos sabíamos que ele há dois anos lutava contra um câncer. Triste saber, no entanto, que o ano levaria este amigo. E em uma semana, outra vez, perdemos dois grandes poetas contemporâneos internacionais.

Tomaž Šalamun era considerado um dos maiores poetas europeus da atualidade, amplamente traduzido, e provavelmente o mais famoso poeta do Leste Europeu nesta última década. Esteve no Brasil uma única vez, no ano passado, a convite meu e de Luiz Gustavo Carvalho, para participar do Festival Artes Vertentes, em Tiradentes. O quarto número impresso da revista que coedito, Modo de Usar & Co., trazia uma mini-antologia de seus poemas, com traduções de Flávio Britto. Era sua primeira publicação no Brasil. Está muito longe de ter feito de Šalamun, no Brasil, um nome tão conhecido como já era há anos nos Estados Unidos e Europa Ocidental, mas era um começo.

Šalamun nasceu em Zagreb, na Croácia, em 1941, mas viveu quase toda a sua vida em Liubliana, na Eslovênia. Era poeta esloveno. Seu livro de estreia, Poker (1966), é considerado um marco das Letras de seu país, um renovador da tradição poética na  língua. Amplamente traduzido para dezenas de línguas e um dos poetas mais conhecidos e respeitados da Europa, era convidado frequente dos grandes festivais de poesia do continente e uma estrela nos Estados Unidos. Isso, no entanto, jamais transformou sua atitude generosa para com poetas mais jovens. Foi um dos mais gentis cavalheiros que já conheci nesta profissão.

Por coincidências felizes, estivemos juntos em alguns festivais de duração mais longa, permitindo que passássemos algum tempo juntos em algumas ocasiões. Tínhamos o mesmo aniversário, ambos nascidos a 4 de julho, e tivemos a sorte de passá-lo juntos em um ano. Nos encontramos algumas vezes no Festival de Poesia de Berlim e, em 2008, passamos uma semana bastante estranha juntos nos Emirados Árabes, durante o primeiro Festival Internacional de Poesia de Dubai, ao lado de poetas como Wole Soyinka (o Nobel da Nigéria), Yang Lian (China) e Breyten Breytenbach (África do Sul), mas Tomaž sempre parecia preferir a companhia dos mais jovens, com um interesse genuíno, comentando nossos trabalhos pessoalmente ou por correspondência. Em 2009, tive a chance de passar um tempo com ele em seu próprio país, quando participei de um festival nas cidades eslovenas de Liubliana e Medana. Ele, sempre jovial e generoso.

Nosso último encontro mais demorado foi no Brasil, meu país desta vez, no ano passado, mas o câncer que o mataria já havia tomado muito de suas forças, de sua alegria. Só meses mais tarde soube que ele estava doente, através de outro amigo em comum, o poeta norte-americano Christian Hawkey. Fiquei me perguntando se havia aproveitado sua companhia o suficiente durante os dias brasileiros, temeroso de que não voltaria mais a vê-lo. Infelizmente, foi este o caso.

O mundo perdeu um grande poeta e um verdadeiro cavalheiro. Os poetas mais jovens perderam um aliado. Descanse em paz, amigo. Deixo vocês com um poema de Šalamun, em tradução de Flávio Britto, publicada originalmente na Modo de Usar & Co.

A Janela da Morte
Tomaž Šalamun

Estancar o sangue das flores e virar a ordem das coisas.
Morrer no rio, morrer no rio.
Auscultar o coração do rato. Não há diferença
Entre a prata da lua e a das minhas tribos.
Limpar o campo e correr até os limites da terra.
Carregar no peito a palavra: o cristal. Na porta
O sabão evapora, a conflagração iluminou o dia.
Dar meia-volta, outra vez meia-volta.
E despir a túnica. A papoula havia mordido o céu.
Caminhar pelas estradas desertas e beber sombras.
Sentir o carvalho na boca de uma primavera.
Estancar o sangue das flores, estancar o sangue das flores.
Os altares se fitam, olho no olho.
Deitar num repolho azul.

(tradução de Flávio Britto, Modo de Usar & Co. 4, Rio de Janeiro: Berinjela, 2013).

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segunda-feira 29.12.2014 | 08:02

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Friederike Mayröcker: 90 anos

myaEste 2014 foi um ano de grandes perdas para nós leitores, gente apaixonada por livros e, consequentemente, por aqueles que os produzem. Houve semanas em que pareciam diárias as mortes de poetas e prosadores importantes. No Brasil, perdemos Donizete Galvão, João Ubaldo Ribeiro, Manoel de Barros, Ariano Suassuna, Moacy Cirne e Rubem Alves, entre outros. No cenário internacional, deixaram-nos poetas e prosadores como Vasco Graça Moura, Juan Gelman, Nadine Gordimer, Victoria Santa Cruz, Maya Angelou ou Leopoldo María Panero. Em meio a estas perdas, o centenário em vida de Nicanor Parra e, hoje, o aniversário da agora nonagenária Friederike Mayröcker nos deixam ainda mais felizes.

Algumas informações para os leitores que porventura não a conheçam: Friederike Mayröcker é uma poeta e prosadora austríaca, nascida em Viena no dia 20 de dezembro de 1924, há 90 anos. Seus primeiros textos publicados surgiram na revista Plan, a partir de 1946, e, apesar de ter mantido um diálogo com os poetas do Wiener Gruppe (Grupo de Viena), não se filiou a ele. O Grupo de Viena foi a neovanguarda mais importante do pós-guerra em língua alemã, formado pelos autores H.C. Artmann, Gerhard Rühm, Konrad Bayer, Friedrich Achleitner e Oswald Wiener. Em 1954, Mayröcker conhece o poeta Ernst Jandl (1925-000), com quem viveria até a morte dele. Seu trabalho afasta-se muitas vezes da sintaxe normativa e está entre os mais difíceis de traduzir na poesia contemporânea em língua alemã, especialmente os textos polifônicos, orquestrais, ou que Haroldo de Campos chamaria de barroquizantes.

Dois de seus livros de poemas mais importantes são Tod durch Musen (1966) e Winterglück (1985). Ganhadora em 1991 do prestigioso prêmio Georg Büchner, equivalente ao nosso Prêmio Camões, ela teve seus Poemas Reunidos (Gesammelte Gedichte) publicados pela editora Suhrkamp em 2004.

Friederike Mayröcker é uma personagem já lendária na cidade de Viena. Conhecida por guardar obsessivamente seus papéis, há alguns anos precisou abandonar o primeiro apartamento por este ter sido invadido completamente por livros, manuscritos, cartões postais, papéis por toda parte. Mudou-se então para o apartamento do andar de baixo, deixando o de cima com os papéis. O novo apartamento, habitado há alguns anos, já caminha na mesma direção. Algo isolada, com vida de eremita, abriu sua casa para a diretora  Carmen Tartarotti, que fez das filmagens o documentário Das Schreiben & das Schweigen (A escrita e o silêncio), lançado em 2008.

Traduzi vários poemas seus, mas são todos de sua lírica mais direta, jamais tendo conseguido chegar a versões satisfatórias de seus textos mais complexos. Mas esta lírica é uma das mais belas da literatura contemporânea em língua alemã, e eu celebro hoje o nonagésimo aniversário de Friederike Mayröcker com esta tradução de um de seus mais bonitos poemas. Feliz aniversário, Friederike Mayröcker.

Às vezes por quaisquer movimentos
acidentais
roça minha mão sua mão o dorso de sua mão
ou meu corpo enfiado em roupas encosta-se quase sem saber
um piscar-de-olhos em seu corpo de roupa
estes minúsculos movimentos quase vegetais
seu olhar de ângulos e suas pupilas de propósito
vagam no vazio
sua pergunta logo de início interrompida aonde você
viaja este verão
o que você está lendo
atravessam-me o peito em cheio
e através da garganta como uma doce faca
e eu resseco por completo como um poço num verão escaldante

Poema de Friederike Mayröcker, tradução minha.

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sexta-feira 19.12.2014 | 17:34

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Marília Garcia e um teste de resistores

marília garciaEu me lembro de uma conversa com Marília Garcia certa manhã, em um café de Bruxelas, onde estávamos para participar do festival Europalia, que tinha o Brasil como convidado aquele ano. Ela me contava uma anedota. Ao visitar o poeta francês Emmanuel Hocquard, que Marília Garcia vem traduzindo no Brasil de forma pioneira, ele perguntou a ela quais outros poetas franceses ela apreciava. Quando ela respondeu que lia Nathalie Quintane, que havia sido lançada no Brasil em tradução de Paula Glenadel pela coleção Ás de Colete no volume Começo: autobiografia (SP/RJ: Cosac Naify/7Letras, 2004), o poeta francês respondeu: “Mais ça c’est pas de la poésie” (Mas isto não é poesia). Ficamos ali algum tempo, conversando sobre a declaração de Hocquard, justo dele. Eu ri na hora, e comentei com ela que certa vez, conversando com um poeta brasileiro justamente sobre Hocquard, o brasileiro havia dito a mesma coisa do francês: “Mas isto não é poesia.” Naquela manhã, decidimos que algum dia organizaríamos um volume de ensaios, convidando poetas brasileiros a meditarem sobre isso. O mote seria a história da declaração de Hocquard sobre Quintane, unida à do brasileiro sobre o próprio Hocquard. Mais ça c’est pas de la poésie. Ok. Acabou a discussão?

A pergunta final é algo que sempre me vem à mente quando ouço essa frase, bastante frequente entre poetas sobre outros poetas: “Mas isto não é poesia”, como uma cartada final, um às no colete, um xeque-mate. Eu sempre respondo: Ok, aceitemos por um segundo que não seja poesia. Acabou a discussão? É o quê, então? E o que quer que seja, consequentemente não presta porque não é poesia?

No ano seguinte, Marília Garcia lançou o livro engano geográfico (Rio de Janeiro: 7Letras, 2012), no qual relata sua viagem e seu encontro com Emmanuel Hocquard, mas não a anedota. Ao ler o livro, tive a ideia de que um dia começaria um texto sobre o trabalho de Marília Garcia com a anedota da declaração de Hocquard sobre Quintane.

Em setembro deste ano, Marília Garcia lançou seu mais novo livro, Um teste de resistores (Rio de Janeiro: 7Letras, 2014). Carreguei o livro comigo em minha viagem pelo Brasil, abindo-o na primeira página já com a ideia de escrever sobre ele e resgatar aquela anedota. Qual não foi minha surpresa quando vejo que a história já havia sido incorporada pela própria autora no livro. Na verdade, o livro foi aos poucos desarmando por completo meu discurso crítico, por torná-lo supérfluo. As referências que eu pensava fazer sobre o trabalho da carioca iam surgindo na textura do texto, seu apreço pelo poeta norte-americano Charles Reznikoff (1894-1976), que ela vem traduzindo, pelo artista argentino Guillermo Kuitca (n. 1961), os franceses Henry Deluy (n. 1931) e o próprio Hocquard. O “mas isto não é poesia” se torna o motor do próprio texto de Marília Garcia, uma espécie de desafio, afronta, resposta, fazendo o que para muitos não será poesia. Realmente, todos os dispositivos clássicos da poesia estão ausentes: não há metáfora, não há métrica, não há ritmo constante ou marcado, não há assonância, não há aliteração. Os textos baseiam-se em dispositivos que reconhecemos como estruturais da prosa: a metonímia, a sinédoque.

A autora vinha valendo-se de uma forte narratividade desde seu primeiro livro, 20 poemas para o seu walkman (SP/RJ: Cosac Naify/7Letras, 2007), mas em seu novo livro, como no anterior, ela leva isso ao extremo. A prática não é de todo desconhecida no Brasil. John Cage usa o recurso em todos os seus livros, especialmente em A Year from Monday: New Lectures and Writings (1967) e M: Writings ’67–’72 (1973), mas Cage é autor consagrado. Em um autor mais jovem, aceitar certos riscos é, com o perdão da tautologia, mais arriscado. A prática está presente também, de forma ainda mais clara, no trabalho do norte-americano David Antin e seus talk poems e, no Brasil, poderíamos pensar na prosa porosa de Augusto de Campos e seu O Anticrítico (1986). Mas caio, novamente, nas referências de autoridade.

A verdade é que este texto, como disse, é supérfluo. Gostaria de poder publicar apenas um recado, dizendo: “Leiam Um teste de resistores, de Marília Garcia. O livro diz-se.” Pois se trata de um livro, em minha opinião, que instrumentaliza, arma o leitor para compreendê-lo. O livro diz o que faz e faz o que diz. Se Marília Garcia lança mão da quebra-de-linha, não é para dizer ao leitor “Olá, isso é poesia”, mas porque a noção de corte está presente no livro, a noção da memória e sua narratividade como ilha de edição. Os cortes e os espaços em branco, para aqueles que diriam que se trata “apenas” de prosa entrecortada, ali surgem porque é assim que contamos a nós e a outros nossas histórias: entrecortadas, editadas.

O livro é um exemplo do que venho chamando de “poética de implicações”, e que é um elemento forte no trabalho (por algum motivo que não nos cabe discutir aqui) em sua maioria de mulheres, hoje, no Brasil: Marília Garcia, Juliana Krapp, Veronica Stigger, Érica Zíngano… cada uma à sua maneira. É obra aberta no sentido de dizer algo querendo dizer o que diz, mas também incitando o leitor a pensar nas implicações do que é dito. E, como se trata de textualidade, de linguagem apresentada como texto, incita a pensar nas implicações do que foi dito e feito. A crítica norte-americana Marjorie Perloff falou em “poética da indeterminação”, discutindo Cage e Antin no ensaio “’No More Margins’: John Cage, David Antin, and the Poetry of Performance”, presente no livro The Poetics of Indeterminacy (1983). Trata-se realmente de poesia e performance, já que os textos de Marília Garcia foram escritos para “falas”, como vejo muito aqui na Europa também, entre poetas que apresentam seus trabalhos basicamente em galerias, muitos sem publicar, como os britânicos Hanne Lippard e Tris Vonna-Michell.

Talvez tudo o que eu quero dizer aqui seja apenas: leia o novo livro de Marília Garcia. Se a você parecer que isso não é poesia, deixe-me responder de antemão: Ok. Acabou a discussão?

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sexta-feira 12.12.2014 | 14:56

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Dedo de prosa sobre a prosa de Victor Heringer

Escrevi sobre o trabalho de Victor Heringer pela primeira vez após o lançamento de sua coletânea de poemas Automatógrafo (Rio de Janeiro: 7Letras, 2011), e anunciava no artigo (“Victor Heringer”, revista Modo de Usar & Co., 1/1/12) que o autor trabalhava naquele momento em seu primeiro romance, que viria a ser lançado pela mesma editora no ano seguinte sob o título Glória (Rio de Janeiro: 7Letras, 2012). Nascido no Rio de Janeiro em 1988, ele passou a fazer parte do grupo de jovens autores brasileiros cujo trabalho acompanho com muito interesse, todos nascidos no período de transição democrática pós-ditatorial, como os baianos Rodrigo Damasceno (1985) e Ederval Fernandes (1985), o pernambucano Philippe Wollney (1987), o paulistano William Zeytounlian (1988), e os também cariocas Ismar Tirelli Neto (1985), Luca Argel (1988) e Italo Diblasi (1988). No entanto, de todos esses citados, Heringer é o único que se dedica com a mesma intensidade tanto à prosa quanto à poesia, além de a seu trabalho sonoro, em vídeo e desenho. Mas a história dessa bizarra mutação geracional dos 1980 sob José Sarney é assunto para outra hora.

Picture 5Sempre acreditei que um crítico deva evitar o discurso das carreiras promissoras ao tratar do trabalho de um autor iniciante. Cede-se à tentação como se tomado pela vontade de comprar uma apólice de seguros no hipódromo, caso o cavalo eleito perca a corrida. No Brasil, isso se manifesta na inflação bibliográfica de certos autores que mantêm apenas sua importância histórica no cânone, impedindo que autores marginais, porém de influência entre os escritores mais jovens, sejam mais amplamente discutidos. Um autor deve ser discutido por aquilo que publicou, nem por uma futura possível obra nem por uma obra que pode ter sido importante no passado mas não mantem a mesma qualidade no presente.

Tivesse eu feito a promessa da promessa ao falar de Victor Heringer em 2012, poderia estar me parabenizando agora, e não me refiro apenas ao Prêmio Jabuti que o autor carioca recebeu por seu romance Glória no ano passado. Victor Heringer é um dos autores que leio com maior prazer no cenário brasileiro contemporâneo, e seus textos ganham cada vez mais elegância e estilo. Sua coletânea de estreia trazia belos poemas, sobre os quais me debrucei, como “ode à genética”, “Intervalo comercial entre duas comédias” e “Oração”, e desde então saíram o ótimo Glória, justamente premiado, e mais recentemente o conto-livro Lígia (2014), lançado na coleção Formas breves, dirigida por Carlos Henrique Schroeder. Sua coluna quinzenal Milímetros na revista Pessoa demonstra também, a cada vez, seu talento narrativo, e jamais a deixo de ler.

Isso já vinha prefigurado (deixe-me chamar de promessa uma vez), nos excelentes textos memorialísticos e crônicas que Heringer publicava em sua página pessoal, como “O segredo de Cosme quem sabe é Damião”, “Por uma história universal da perna” e o  ótimo “Terrúa: bilhete para Manuel Bandeira”, um dos textos mais bonitos que li sobre e durante os protestos de junho e julho de 2013.

 

“Manu, ontem eu vi a baleia. Lembra a tua baleia? Aquela tua crônica para o semifinado Jornal do Brasil, “A baleia gigante”. Pois então, ontem a vi. Foi de relance. Eu estava perto do palácio Guanabara, acompanhando um protesto dos moços e moças libertários, quando estourou um coquetel molotóve lá na fileira da tropa de choque e tiro & pedra para tudo quanto foi lado. Corri com a moçada e os jornalistas.” (Victor Heringer, “Terrúa: bilhete para Manuel Bandeira”, in Consideração e aviso, 24/07/2013)

 

Pesquisador obcecado pela história das ruas do Rio de Janeiro e também de Nova Friburgo, de onde vem sua família de imigrantes alemães, Heringer traz a sua prosa um conhecimento das ruas e seu léxico como se vê em poucos autores. Não se trata aqui de apostas canônicas, especialmente porque não acompanho a prosa contemporânea brasileira com a atenção que exijo de mim, como crítico e editor, ao acompanhar a poesia. Mas Glória foi um dos melhores romances brasileiros que li nos últimos tempos, escrito com elegância e inteligência, assim como creio ser um dos únicos trabalhos literários recentes a tratar de um fenômeno pujante da República: a ascenção dos cultos neopentecostais, na figura de uma das personagens da família Costa e Oliveira retratada no romance, o pastor Abel. Eu o chamaria de Aliosha dos trópicos, para referir-me a outra tríade de irmãos, se a personagem criada por Heringer não me parecesse mais perturbadora e despertasse em mim bem menos simpatia que meu irmão favorito no romance de Dostoiévski.

Além disso, ao contrário de certos autores da autopromocionada Geração 90, a cultura digital não comparece no livro apenas através de truques como a mímica de conversas tolas de janela de bate-papo, mas em uma tentativa inteligente de retratar como as redes sociais vêm transformando a maneira como as pessoas se relacionam. E o livro traz ainda vários quitutes para os que se interessam por certas estratégias da ficção contemporânea, como a metaficção, o livro dentro do livro, o autor real e o autor inventado, mas tudo narrado com verdadeiro prazer pelvictor heringera linguagem, que é o que por fim me interessa. Victor Heringer tem verdadeiro talento para o picaresco e satírico, ligando-o a outros autores cariocas, como Manuel Antônio de Almeida (1831-1861) e Lima Barreto (1881-1922). Incluiria ainda o contemporâneo exato de Barreto, João do Rio (1881-1921), se a prosa de Victor Heringer não me parecesse bem mais enxuta que a do dândi carioca.

Seu último trabalho publicado, o conto-livro Lígia volta a esse terreno que mais é fronteira entre o trágico e o cômico, já que todo susto tem um pouco de riso. Os velhos imigrantes. As taras de Copacabana. As taras escondidas de Copacabana, pelas quais só alguns autores perambulam, como Nelson Rodrigues.

 

“O Sr. Mendes diz que não sonha desde que perdeu o olho direito. Era o direito que sabia sonhar. O esquerdo não viu tantas coisas terríveis, ele me disse uma vez. Nunca perguntei que coisas seu olho direito tinha visto. O que o esquerdo viu, eu sei: o Rio de Janeiro, a praia de Copacabana, Lígia.

A TV sempre ligada. Estamos sentados na sala, ele na cadeira de rodas, eu no sofá, assistindo novela. Lá fora, Copacabana vai baixando a noite. A cidade é como os velhos, não tem a sorte de morrer jovem. Vai crescendo, inchando, criando becos, caroços cancerígenos, avenidas, vielas, churrascarias. Uma hora, até os moradores mais antigos se perdem nela, como o Sr. Mendes se perde em mim.” [Victor Heringer, Lígia (e-galáxia, 2014)]

 

Sim, Victor Heringer dá seus sorrisos por nossas taras, escondidas enquando declaramos nossos votos secretos nas redes sociais da República. Foi anunciado há pouco que seu novo livro será outro romance, intitulado O amor dos homens avulsos. Em sua página pessoal, Victor Heringer pede a seus leitores que o informem sobre o nome do primeiro amor de cada um. É para o livro. Respondi há algum tempo, já não me lembro se digitei Erika ou Sara. A quem ainda não leu Glória ou Lígia, espero que este artigo sirva de recomendação entusiasmada. Era minha intenção.

Data

quarta-feira 03.12.2014 | 06:07

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