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Dez anos da Verlagshaus Berlin

No atual sistema literário, em que editoras grandes cada vez mais são guiadas pelas regras do mercado, abandonando parâmetros estéticos e mesmo políticos para suas escolhas, celebrar pequenas editoras independentes, que buscam se manter em meio ao turbilhão decadente dos grandes conglomerados editoriais, é não apenas importante como imprescindível para a sobrevivência de projetos estéticos mais arrojados, tidos como difíceis, não-comercializáveis. Para um poeta, é obviamente uma questão de comunicação ou silêncio, já que casas editoriais grandes cada vez menos se arriscam a publicar poesia e, quando o fazem, recorrem aos nomes já consagrados ou a projetos simplórios de figuras que já alcançaram um público em outros campos, especialmente o do entretenimento, como a comédia ou a música comercial.

verlagshaus

Editores da Verlagshaus Berlin (Foto: divulgação)

Nas próximas semanas, intercalados a resenhas e outros debates neste espaço, procurarei apresentar em textos o trabalho de algumas editoras independentes no Brasil e na Alemanha, que têm nos doado verdadeiros presentes em meio à enxurrada de baboseiras do mercado editorial. Se começo esta série com um retrato de minha editora alemã, não é apenas por questão de lealdade, mas porque me parece uma casa, verdadeira casa para seus autores, que tem causado um impacto na cena poética do país, e com um editor à frente com quem aprendi bastante como escritor. A editora, chamada Verlagshaus Berlin (antes Verlagshaus J. Frank), além disso, comemora esta semana seu décimo aniversário, e lançou-se a uma turnê de dez cidades em três países de língua alemã: Áustria, Alemanha e Suíça, num pequeno ônibus composto pelos editores, designers gráficos e vários dos poetas da casa. Uma experiência, creio, que não é frequente nem no Brasil nem na Alemanha.

Fundada em 2005 pelo escritor Johannes CS Frank e pelos designers gráficos Andrea Schmidt e Dominik Ziller, o trabalho da editora concentra-se em poesia, contos e arte visual, com graphic novels e trabalhos de ilustradores. Não são exatamente os campos mais lucrativos do mercado editorial. Com uma abordagem poética que por vezes tem sido polêmica, a editora mantém um foco claro em trabalhos que se arriscam no atual contexto da literatura alemã, com um claro desejo de intervenção não apenas poética como política, contra o que lhes parece um formalismo e experimentalismo por vezes estéreis na cena literária do país. Há uma antologia do poeta alemão Helmut Heissenbüttel, cujo título talvez ilustre esta preocupação estética e ética: Das Sagbare sagen, ou, dizer o dizível. Isso tem um paralelo interessante com os debates literários brasileiros dos últimos dez anos, em que se discutiu a politização da literatura, se os escritores têm ou não responsabilidades como intelectuais públicos, que usam uma matéria prima que, por sua vez, não é privada, mas comum, comunitária: a língua.

Com escritores de várias gerações, como Eberhard Häfner (1941), Jan Kuhlbrodt (1966), Swantje Lichtenstein (1970) e Max Czollek (1987) [ver meu artigo “Sobre a poesia de Max Czollek”], a editora tem se dedicado a lançar na Alemanha poetas contemporâneos de outros países, como o mexicano Julián Herbert, a indonésia Dorothea Rosa Herliany e a israelense Tal Nitzán (lançada no Brasil em 2013 por outra corajosa editora independente, a Lumme Editor, de São Paulo, no volume O Ponto da Ternura), e a recolocar em circulação trabalhos de poetas consagrados que não haviam ainda sido traduzidos em alemão, como a primeira antologia alemã do inglês Wilfred Owen (1893-1918), poemas do espólio do grego Konstantínos Kaváfis (1863-1933) que haviam ficado de fora de suas obras completas, e ainda uma peça inédita em alemão do russo Vladimir Maiakóvski (1893-1930). Para 2017, a editora planeja lançar a primeira antologia poética de Hilda Hilst (1930-2004) no país.

Por fim, há uma coisa que foi muito importante para mim, como escritor, ao trabalhar com a Verlagshaus Berlin e, especialmente, com o editor Johannes CS Frank – também poeta, que respeito imensamente. Poucas vezes vi meu trabalho tratado com tamanho cuidado no processo de edição do livro. Foram vários encontros nos quais ele discutia certos poemas verso por verso, fazendo perguntas para compreender se as escolhas ali apresentadas vinham da tradutora, Odile Kennel, ou se estavam no original, fazendo sugestões de corte, de mudanças. Nem sempre concordamos, mas a discussão foi uma das mais frutíferas que já tive, algo não muito frequente no Brasil. Trata-se de uma abordagem talvez old school para a função e, por que não?, a arte do editor como editor.

A melhor literatura brasileira e alemã, parece-me, está hoje nas mãos de pequenas editoras independentes, que se arriscam a navegar as águas pouco estéticas do mercado. Com seu trabalho como editores, agentes, divulgadores, realmente apaixonados pela poesia e pela prosa, os três corajosos da Verlagshaus Berlin recebem aqui o meu aplauso por seus dez anos de intrepidez.

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sexta-feira 29.05.2015 | 04:56

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Sprachraum. Lusofonia.

LusofoniaUma de minhas palavras favoritas em alemão é Sprachraum, usada para definir o espaço geográfico de uma determinada língua, literalmente “espaço linguístico”. Trata-se de uma palavra comum em qualquer conversa literária por aqui, em geral usada para se referir ao espaço linguístico germânico, mas não só. Formada pela própria habilidade aglutinante da língua alemã, é bastante apropriada quando pensamos que o espaço linguístico alemão é compacto, separado apenas por fronteiras nacionais, unindo no entanto a Alemanha, a Áustria e Liechtenstein, países onde é a única língua oficial, e parte da Suíça, onde é uma das línguas oficiais com mais falantes, além de ter reconhecimento oficial na Bélgica e em Luxemburgo. Não podemos, é claro, nos esquecer de que o alemão é uma língua regional reconhecida na Namíbia, colonizada pelo Império Alemão, assim como o Império Austro-Húngaro expandiu a sua influência para vastas regiões do Leste Europeu, onde ainda é falada por minorias em países como a Eslovênia e a Hungria. Um dos poetas de língua alemã mais famosos do pós-guerra, Paul Celan, nasceu em Czernowitz, então Romênia, hoje Ucrânia, assim como dois dos mais influentes autores da língua alemã no século 20, Franz Kafka e Rainer Maria Rilke, nasceram em Praga, então uma cidade importante do Império Austro-Húngaro. No entanto, reconhecemos o alemão como uma língua dominante em um espaço geográfico praticamente cerrado, com cercas definidas, dando um significado bastante concreto para Sprachraum, que tem seu caráter abstrato no campo da linguística.

Talvez seja um exercício de brasileiro que vive há tantos anos na Alemanha, mas gosto de traçar paralelos entre os dois espaços. Em português, não temos uma expressão como Sprachraum. Podemos exprimir a ideia, mas recorremos a construções como espaço ou comunidade linguística. Usamos, no entanto, com frequência a expressão lusofonia, para indicar talvez não exatamente o espaço, mas os sons-significantes comuns. Temos a palavra germanofonia em português, eu porém jamais a li ou ouvi em qualquer lugar, ao contrário de francofonia e anglofonia, certamente pela maior influência destas culturas no mundo lusófono. Mas a comparação mais interessante é realmente geográfica, pois o mundo lusófono, ao contrário do germanófono, é completamente disperso, espalhado. Nenhum dos países de expressão portuguesa faz fronteira com outro da comunidade. Estão todos banhados pela água salgada do mar em três oceanos, e separados dos outros por extensões de terra. Somos linguisticamente isolados, com Portugal e Brasil compartilhando a experiência de estarem banhados pelo Atlântico e pela língua castelhana. Isso tem uma influência tanto econômica quanto política na relação entre os países de língua alemã e os países de língua portuguesa.

É mais fácil para um autor de língua alemã e seus livros circularem em seu Sprachraum, compacto. Ainda que os países de língua alemã tenham uma história bélica e um passado comum de violência mútua, a situação é muito distinta da que vemos entre os países de língua portuguesa, com suas histórias de dominação colonial e escravidão. Isso traz outras complicações a nossas relações.

Já tive a experiência, um par de vezes, de presenciar um alemão hesitando antes de se lembrar de que o grande Robert Walser, por exemplo, era suíço, não alemão. Rilke, Kafka, Walser, Freud, Hoffmansthal, Musil são todos escritores que circulam na Alemanha como autores da língua comum. É claro que há especificidades no trabalho de cada, e que os contextos austríaco e suíço, por exemplo, são bastante distintos do alemão, mas a maneira como estes autores circulam em seu Sprachraum seria quase impensável, infelizmente, para autores da comunidade lusófona. Ao menos, ainda, hoje.

No caso de Brasil e Portugal, isto está mudando. Aos poucos. Lentamente. As redes sociais ajudaram bastante, em vários aspectos, pelo simples fato de que há muitos escritores brasileiros e portugueses hoje em contato virtual, recebendo ao menos as notícias das publicações e podendo ler outras em formato digital. Além disso, há o caso de escritores portugueses que viveram ou vivem no Brasil, como Alexandra Lucas Coelho e Matilde Campilho, mantendo um contato forte com o país, assim como há escritores brasileiros que viveram ou vivem em Portugal, como Érica Zíngano e Luca Argel. Pequenas editoras portuguesas, como Mariposa Azual e Douda Correria, vêm lançando livros de poetas brasileiros em pequenas tiragens, como Marília Garcia e Diego Moraes, respectivamente. O livro de estreia de Matilde Campilho, que chegou a sua quarta edição em Portugal pela Editora Tinta-da-china, foi lançado há pouco no Brasil pela Editora 34. Adília Lopes e Gonçalo M. Tavares são portugueses admirados no Brasil. Sei que autores como Luiz Ruffato e Milton Hatoum são editados em Portugal, mas seu alcance é menor. A edição da obra completa de Ruy Belo no Brasil foi uma ótima iniciativa da Editora 7Letras. Quando vamos, no Brasil, começar a ler e amar Mario Cesariny como ele merece, esse poeta que certamente nos seria tão congenial? Os portugueses já decobriram Hilda Hilst e Roberto Piva? Não sei.

No entanto, a situação é muito pior quando pensamos na ausência de autores africanos de expressão lusófona no Brasil. A responsabilidade é nossa, como críticos e editoras. Não se trata apenas de apontar os dedos em riste, mas de trabalharmos juntos para uma maior compreensão entre os países lusófonos. Faço aqui o meu próprio mea culpa: após anos editando a revista Modo de Usar & Co., percebi com um calafrio que apenas no mês passado publiquei, pela primeira, um autor de Cabo Verde na revista, a poeta e prosadora Dina Salústio, após ler seu nome em um texto de Victor Heringer, dedicado ao músico cabo-verdiano António Vicente Lopes, conhecido como Travadinha [“Travadinha”, Revista Pessoa, 22.04.2015]. Fiquei pensando, após ler o texto de Heringer, em qual havia sido meu primeiro contato com a língua portuguesa de Cabo Verde. E lembrei-me de um documentário sobre o país, visto talvez na década de 1990, em que um dos entrevistados citava um poeta cabo-verdiano, que teria escrito: “As cabras nos ensinaram a comer pedras / para que não morrêssemos de fome”. Ou, ao menos, era assim que havia ficado em minha memória. Mas percebo agora, ao buscar pela primeira vez o texto depois de tantos anos, graças à internet, que eu havia abrasileirado os versos em minha cabeça. Na verdade, o poeta escreveu: “As cabras ensinaram-nos a comer pedra / para não perecermos”, e descubro seu nome: Ovídio Martins. Que nome. Nome de poeta lusófono. Nós, separados pelo mar.

Eu acredito que precisamos pensar pós-colonialmente, e mais, de forma descolonizadora, em língua portuguesa. Talvez a relação entre Brasil e Portugal, por exemplo, ainda precise complicar-se antes de facilitar-se. Mas penso nos versos de Carlos Drummond de Andrade, o gigante lusófono, para encerrar com uma nota de possibilidade, pensando nos companheiros da língua comum: “Estou preso à vida e olho meus companheiros / Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças / Entre eles, considero a enorme realidade / O presente é tão grande, não nos afastemos / Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas”.

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sexta-feira 08.05.2015 | 07:01

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O futuro da poesia

Desde o advento da internet, uma das discussões mais frequentes no campo da literatura é o impacto que isso terá sobre a produção de livros, sobre a vida do escritor, sobre a própria natureza da escrita. A coisa não é nova. Discussões parecidas aconteceram com o advento do rádio e da televisão. Previsões sobre o fim da escrita, o fim dos livros, e assim por diante. E no entanto, isso está longe do que realmente ocorreu. Grandes trabalhos literários foram produzidos após o advento do rádio e da televisão. Ao mesmo tempo, seria ingênuo dizer que essas tecnologias não tiveram um efeito sobre a escrita.

Em seu excelente estudo sobre a literatura modernista, The mechanic muse (1987), o crítico canadense Hugh Kenner discutiu como certas inovações tipográficas na escrita de poetas como Ezra Pound provavelmente não teriam ocorrido como ocorreram sem o advento da… máquina de escrever. Quando pensamos no “futuro da escrita”, a discussão gira em torno das transformações, de inovações, do que mudará. Mas nem sempre as novas tecnologias levam, necessariamente, a novas formas. Como temos visto nas últimas décadas, várias novas tecnologias têm permitido que poetas, por exemplo, retornem a tradições milenares da poesia, especialmente as que estão fincadas na oralidade. Conheço pessoas que têm sérios preconceitos contra livros em áudio, mas mesmo eles não são coisa nova, se pensarmos em como é velha a tradição de sentar-se, seja no sofá ou ao redor de uma fogueira, para ouvir um contador de histórias, que por séculos foi o repositório de épicos.

Em junho, participo de uma conferência chamada de “O futuro da poesia” durante o Festival de Poesia de Berlim. Venho preparando o texto de apresentação, e adianto aqui algumas reflexões que tanto têm guiado sua escrita como também complicado-a.

Há alguns anos, a tarefa teria sido mais fácil, mais simples. Quando comecei meu trabalho crítico, tinha uma preocupação e interesse especiais pelas vanguardas históricas, era muito interessado na ideia de inovação das formas. Mas confesso que, com o passar dos anos, minhas leituras foram se distanciando no tempo, resgatando tradições antigas como a dos trovadores, que nós brasileiros nunca privilegiamos muito, mesmo em nossa formação escolar.

Mesmo quando começo a pensar no futuro da poesia, me vejo voltando ao passado dela, e percebo como este passado é ainda um presente muito vivo entre nós, já que em todas as partes do mundo a poesia segue sendo praticada nas mais diversas formas, algumas delas milenares. Ultimamente, mal tenho lido poesia, confesso. Tenho andado quase obcecado com certos campos da antropologia e da arqueologia, ligados ao estudo das línguas e da linguagem, sobre as próprias origens da linguagem, seu desenvolvimento em nossa espécie, e até mesmo a questão se a linguagem havia realmente surgido pela primeira vez com o Homo sapiens, ou se havia vestígios do uso da língua na organização social de outras espécies humanas, como os Neandertais.

Discutir hoje tanto o presente quanto o futuro da poesia e da literatura parece-me exigir um conhecimento menos parcial de sua história e de sua geografia. Uma compreensão das línguas e da linguagem, de seu papel em nossa vida, de seus usos e abusos. É preciso evitar, ainda, a pretensão de querer guiar o desenvolvimento dessas práticas a partir do desenvolvimento histórico e político-cultural do Ocidente. De nossa obsessão por progresso e evolução. Em todas as partes do globo, práticas milenares coexistem com práticas experimentais, ainda que muitas vezes estas práticas experimentais desconheçam seu arcabouço milenar. Assim como práticas milenares, por nosso completo desconhecimento, por vezes nos chocam por sua natureza experimental.

Há tantas formas e tradições vivas. No ano passado, fiquei fascinado pela tradição do landay, poema de 22 sílabas praticado pelas mulheres afegãs, ao assistir a um filme da escritora Eliza Griswold e do fotógrafo Seamus Murphy. Ainda que perseguido, proibido, este poema continua aflorando no Afeganistão, como uma forma de resistência e sobrevivência dessas mulheres:


Você é como a América, meu querido.

Ainda que sua a culpa, é meu o castigo.

§

No pomar, eu quero beijar você. Mas, sem barulho!
Os outros pensarão que há bodes presos no arbusto.

§

Poderia provar até a morte, se provasse a sua língua

Enquanto o via tomar sorvete, ambos crianças ainda.

 
O que direi em Berlim sobre o futuro da poesia? Venho pensando a respeito desde que o convite surgiu. O que posso dizer é que esse futuro requererá um conhecimento do passado, e uma compreensão do presente. E, mesmo que a conferência ocorra em Berlim, sei que este futuro não estará apenas na Europa. Assim como o futuro do próprio Ocidente-Norte está e sempre estará ligado ao passado, presente e futuro do Oriente-Sul.

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quinta-feira 30.04.2015 | 06:33

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Rememorando o genocídio armênio

Neste começo de 2015, temos sido lembrados e relembrados a cada semana do horror particular do século passado. Com as comemorações do fim da Segunda Guerra Mundial aproximando-se, acompanhamos a cada semana os avanços do Exército Vermelho há 70 anos, e as liberações de campos de concentração nazistas como Auschwitz, Bergen-Belsen, Sachsenhausen. Em algumas semanas, nossos jornais e redes sociais discutirão os horrores de Hiroshima e Nagasaki. Estes são nomes já talhados em nossas memórias coletivas e, em muitos casos, ainda pessoais, com sobreviventes e descendentes diretos de sobreviventes ainda entre nós.

0,,18293823_403,00Mas quantos ouviram falar dos horrores na cidade de Van? Das marchas da morte, campos de concentração e valas comuns nas proximidades de Deir ez-Zor?

Este fim de semana, rememoramos o genocídio dos armênios no Império Otomano, que começava há 100 anos, no dia 24 de abril de 1915. Naquela manhã, os poetas armênios Daniel Varoujan e Ruben Sevak, o jornalista Kegham Parseghian, assim como duas centenas de outros poetas, escritores, jornalistas e intelectuais armênios foram presos na cidade que ainda se chamava Constantinopla, e executados nas semanas seguintes. Isso já demonstra o nível de planejamento e organização do genocídio que viria: eliminar da população armênia do território todos aqueles que poderiam erguer suas vozes contra o que estava por vir, ou assumir qualquer tipo de liderança para os armênios. Que ameaça o autor dos versos abaixo poderia representar para o povo turco?

“Campo maduro”
Daniel Varoujan (1884-1915)

A minha terra é dourada…
Parece chama.
O grão se queima
e não se consome.

A minha terra é dourada…
O céu é de fogo,
o solo é imóvel
sob as estrelas.

A minha terra é dourada…
As espigas em quatro filas
revestiram-se
de sombra e sol.

A minha terra é dourada…
Passam como relâmpagos,
no meio das espigas,
as abelhas e os zangões.

A minha terra é dourada…
Do mar, das ondas de ouro
voa o pardal
levado pelo vento.

Dorme, terra dourada,
dorme, campo maduro,
colherei o teu ouro
com a foice de prata.

(Tradução de Carlos Freire, in Babel de Poemas, editora L&PM, 2004)

Nos próximos meses, massacres ao redor da Turquia eliminariam a maior parte da população masculina armênia em idade militar, antes de banir o resto da população (mulheres, crianças, idosos) do território com mentiras de reassentamento na Síria, então ainda sob domínio otomano. Vilas inteiras ao redor de Muş foram incendiadas, e seus habitantes em muitos casos queimados vivos. O reassentamento dos que foram expulsos viria em valas comuns ao redor de Deir ez-Zor, daqueles que sobreviveram aos massacres no caminho, os afogamentos – incluindo barcos cheios de mulheres e crianças afundados no Mar Negro, envenenamentos, estupros de mulheres e meninas. Os horrores de 1915 estão na casa do indizível, como todos os genocídios que viriam no século 20: judeus na Europa, maias na Guatemala, tutsis em Ruanda, bósnios na ex-Iugoslávia. E as técnicas que mais tarde se tornariam praxe na Alemanha nazista e na Guerra da Bósnia, por exemplo: retirar os direitos civis e humanos de uma população específica, separar homens das mulheres, assassinar sob o manto de palavras mentirosas. No dicionário genocida, campo de “trabalho” significa campo de extermínio, “reassentamento” significa vala comum.

E, no entanto, é necessário dizer. Dizer o que é dizível: houve um genocídio, até hoje reconhecido por apenas duas dezenas de países. Estados Unidos e Israel estão entre os que negam o que houve, por suas alianças políticas e militares com a Turquia. E a própria Turquia, obviamente, nega com veemência. Aqui percebemos o poder das palavras: há muitos dispostos a aceitar “crime” e “massacre”, já a palavra “genocídio” agita, no entanto, um horror histórico. Em 2007, o jornalista armênio Hrant Dink foi assassinado em Istambul por um jovem nacionalista turco por lutar justamente por este reconhecimento, por ousar dizer o indizível. Mas, aqui, o “indizível” não é categoria filosófica ou poética, mas política. Temos as palavras, temos o fato. E vale lembrar que foi com o Genocídio Armênio que o jurista polonês Raphael Lemkin começou suas reflexões que levariam à própria criação da palavra genocídio.

O poeta armênio-brasileiro William Zeytounlian escreveu: “Há uma dimensão dupla da história escrita a partir dos depoimentos de um sobrevivente. Certamente é um discurso sobre o passado. Mas antes de tudo, é um discurso sobre o presente, ou antes, um discurso sobre o projeto que o sobrevivente tem sobre o interlocutor. Com um sobrevivente, entramos na vala coletiva do passado com nossas roupagens atuais, como os apóstolos de um quadro renascentista ou dante no inferno”. E encerrou com estes versos:

o alfabeto sobre o escudo
revela a relva, a areia abreviada
nós, devir débil sopro surdo
nós, memória e olvido de uma raça

A impunidade dos criminosos de guerra turcos e a recusa do país em reconhecer os crimes, como já foi sugerido por muitos escritores, serviram de incentivo aos genocídios que viriam. É importante e essencial erguermos nossas vozes, honrar os mortos armênios, como os judeus, e os maias, e os tutsis, e os bósnios, assim como exigir que a Organização das Nações Unidas deixe de ser tão incompetente em impedir crimes tão gigantescos. Décadas depois dos armênios e judeus, a ONU falharia em salvar os tutsis das mãos dos hutus, como no caso horrendo da escola em Kigali, capital de Ruanda, onde centenas de tutsis se refugiaram por ser ali a base de uma força de paz da ONU, enquanto do lado de fora grupos de hutus esperavam com foices e machados. E aquelas centenas de tutsis permaneceram a salvo, até que a ONU decidiu deixar o país. Ou aquela fábrica em Srebrenica, onde milhares de muçulmanos bósnios se refugiaram por ser ali a base de uma força de paz da ONU, até que esta força de paz da ONU, sem receber reforços ou qualquer instrução dos líderes da organização em Genebra, entregou estas pessoas nas mãos do criminoso de guerra Ratko Mladić e seu esquadrão da morte, que os massacrou: uma vez mais separando homens de mulheres, mulheres de suas crianças. Foram 8.372 mortos naquele dia. Quando o presidente sérvio, Tomislav Nikolić, desculpou-se pelo massacre, também ele recusou-se a chamá-lo de genocídio.

Neste exato momento, genocídios organizados estão ocorrendo em Darfur, ao mesmo tempo em que milhares morrem por omissão dos países “civilizados” no Mediterrâneo. Caminha o século 21 nos mesmos passos do século 20? Como as gerações futuras, se as houver, verão nossa omissão sobre o que ocorre hoje na Síria, no Sudão, e com os seus refugiados ao redor e sobre o espelho das águas do Mediterrâneo? E nós, brasileiros, que moral temos ao discutir estes crimes, quando pensamos no que vem ocorrendo há séculos com os guaranis e os iorubás, seus descendentes e sobreviventes em nosso território?

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segunda-feira 27.04.2015 | 10:27

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Jornalismo cultural

mario faustinoA situação do jornalismo cultural no Brasil é um tema frequente entre escritores. Algo que importa, não por uma mera questão de egos querendo ver seus trabalhos discutidos, ainda que isso muitas vezes turve a discussão. Se pensarmos no conceito de “publicação” como “tornar público” ou “entregar ao público”, independentemente do suporte usado – algo que se transforma ao longo dos tempos, o papel da imprensa e dos críticos que nela trabalham assume sua verdadeira importância comunitária.

Já perguntei entre amigos se a situação realmente piorou, ou se antes éramos jovens e despreparados demais para perceber a falta de qualidade nas discussões. Mas invariavelmente chegamos à conclusão de que a situação piorou, e muito. Não é necessário sequer voltarmos a tempos antigos, quando as discussões de grupos como o Noigandres (cerne do Movimento da Poesia Concreta, com Décio Pignatari, Haroldo e Augusto de Campos) e o Neoconcreto (com Ferreira Gullar e artistas como Lygia Clark e Hélio Oiticica) davam-se nas páginas de publicações como o Jornal do Brasil, ao mesmo tempo que um jovem poeta como Mario Faustino podia manter, no mesmo jornal, uma coluna como “Poesia-Experiência”, na qual discutia autores como Ezra Pound, Antonin Artaud e Eugenio Montale, tudo isso em uma época na qual os jornais brasileiros já contavam com a colaboração de críticos como Otto Maria Carpeaux, Sérgio Buarque de Holanda, Augusto Meyer e Alceu Amoroso Lima. Eu ainda me lembro dos tempos, não tão distantes, em que um jornal como a Folha de S. Paulo trazia, mensalmente, o Jornal de resenhas, e discussões inteligentes podiam acontecer nas páginas do Mais!.

Antes de discutir a questão propriamente jornalística, vale dizer algo sobre a crítica. Nos últimos tempos, tenho soltado às vezes o desabafo: “Ai, que saudades da crítica impressionista!”, daqueles autores que assumiam o desafio de levar a um público mais amplo o trabalho muitas vezes difícil de autores contemporâneos e do passado. Com a profissionalização e especialização do trabalho crítico, ele passou a encastelar-se na universidade, e sua aversão a um trabalho mais didático (unida a suas ilusões cientificistas), acabou transformando grande parte dos esforços da crítica em uma série de achaques incompreensíveis para a maior parte do público. Não estou dizendo que os melhores trabalhos acontecendo na universidade não são importantíssimos. Mas falta a este ensaísmo muitas vezes aquela habilidade de equilibrar-se entre a profundidade e a leveza, como encontramos com mais frequência em grandes autores, como Otto Maria Carpeaux e Sérgio Buarque de Holanda. Há, obviamente, algumas exceções, mas que comparecem muito pouco nos jornais.

E aqui entra a responsabilidade dos meios de comunicação. Grandes jornais, como a Folha de S. Paulo e o Estado de S. Paulo, minguaram por completo suas discussões culturais, caídos na mentalidade mesquinha das novidades, dos assuntos, dos bate-bocas e daquela coisa perniciosa para a cultura que é a necessidade do gancho, transformando suas páginas de cultura em meras extensões dos comunicados de imprensa das grandes editoras, caídas elas mesmas em seus interesses meramente comerciais e inconscientes de suas responsabilidades também comunitárias. É difícil encontrar hoje no Brasil um editor do naipe de Ênio Silveira, que pôde fazer um trabalho de tanta importância política e comunitária à frente da Civilização Brasileira. Restam os corajosos independentes, que levam adiante o trabalho de outros corajosos do passado, como Massao Ohno e Roswitha Kempf, responsáveis pelos livros de Roberto Piva, Hilda Hilst e Orides Fontela muito antes que fossem recebidos por editoras maiores, já consagrados, à porta da morte. Entre os resistentes corajosos de hoje, menciono Vanderley Mendonça, à frente do Selo Demônio Negro.

A situação é mais triste ainda ao percebermos o despreparo dos jornalistas dos cadernos culturais de hoje, com artigos que são muitas vezes paráfrases do que os escritores disseram em entrevistas ou do que já foi dito sobre eles em outros artigos, quando não são cópias do que a editora enviou à redação.

Assim, de um lado, a profundidade de uns torna-se apenas impenetrabilidade, do outro, o que poderia ser leveza é só ligeireza e preguiça. As exceções vão se tornando pequenos oásis, como a página de poesia mensal que Carlito Azevedo prepara para o “Prosa & Verso” d’O Globo, o trabalho de Schneider Carpeggiani no Suplemento Pernambuco, ou o Suplemento Literário de Minas Gerais, que segue resistindo. Por mais críticas que eu tenha a um jornal como O Globo, é necessário dizer que ao menos nele ainda é possível encontrar surpresas. Não me esqueço do choque, de passagem pelo Rio de Janeiro, ao abrir o jornal e topar com um belo artigo sobre o poeta franco-egípcio Edmond Jabès, que acabava de ser lançado no Brasil pela pequena editora Lumme. Um autor desconhecido no país, lançado por uma pequena editora, mas que merecia justamente por isso um trabalho jornalístico decente. E o jornal conta por vezes com a colaboração de escritores, como Laura Erber e Juliana Krapp. Apesar de os jornais paulistas trazerem colunas de escritores em suas páginas, estes parecem mais dedicados a fazer pequenas crônicas de suas vidas do que discutir literatura. São Paulo parece ter-se tornado o reino dos intelectuais engraçadinhos.

Talvez algum dia apenas na internet seja possível encontrar vida inteligente, onde as exigências financeiras são outras, e o número de vendas não seja argumento para dar espaço a um artefato cultural. Não sei se os jornais brasileiros estão preparados ou dispostos a mudar algo nesta questão. Ao ler certas resenhas e artigos sobre literatura contemporânea, tenho a impressão de que contrataram alguém que parou em Picasso e Matisse para discutir as artes visuais de hoje, para fazer uma analogia recorrendo a outro campo. Enquanto os cadernos culturais não contarem com um quadro realmente preparado para discutir cada arte e não se livrarem da ânsia novidadeira e da necessidade exclusiva do gancho, será difícil ver mudanças. Estou convencido de que os cadernos culturais exigem a disposição de se lançar a um jornalismo que deveria ter as mesmas ambições investigativas dos que escrevem para o caderno de política. Encontrar o equilíbrio entre profundidade e leveza, não impenetrabilidade e ligeireza. Todos os que lidamos com literatura, cuja matéria prima é a língua, um bem comum, precisamos rever nossas responsabilidades comunitárias, especialmente neste momento em que certas forças obscurantistas parecem ter tomado todos os canais de comunicação.

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sexta-feira 17.04.2015 | 12:53

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