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Angélica Freitas e a crítica de amadores

angelica freitas

Em texto publicado na revista Musa Rara no dia 8 de agosto deste ano, o crítico e professor Amador Ribeiro Neto faz vários ataques ao trabalho da escritora gaúcha Angélica Freitas, num tom não apenas violento como cheio de misoginia. Em tom jocoso, refere-se à autora como “poetisa” – expressão que a própria satiriza em seus textos e que a maioria das pessoas sabe ter caído em desuso no Brasil há pelo menos duas décadas, e chega a apropriar-se de versos seus em frases com implicações que me parecem asquerosas, como no trecho: “Então, por que abre a boca, menina? Oras, ‘esquece este papo’. E não reclame se enfio-lhe ‘os talheres’.” Em um país civilizado, o autor, assim como Edson Cruz, editor da revista, seriam chamados a desculpar-se em público.

Uma das mais lidas e polêmicas autoras da nova produção, seu trabalho tem gerado não poucos mal-entendidos. A crítica nacional, presa muitas vezes a pensar a produção brasileira dentro de um sistema literário nacional, acaba fazendo comparações apenas ao poema-piada dos primeiros modernistas, e às paródias da poesia escrita na década de 70. Mas a tradição da poesia satírica, tanto nacional como internacional, é muito mais ampla. Na Idade Média, perambulavam pela Europa os poetas que ficaram conhecidos como Goliardos. Membros do clero, eram uma trupe desbocada, bêbada e licenciosa, que escrevia poemas satíricos e eróticos em latim, atacando a hipocrisia da Igreja e dos governantes. Entre eles estava Hugo Primas e o mais famoso, conhecido apenas como Arquipoeta Goliardo, que escreveu os versos: “Meu propósito é morrer nalgum boteco, / Para que eu tenha vinho perto da boca. / Assim os anjos cantarão bem bonachos: / Que Deus tenha piedade desse borracho.”

À mesma época, havia na França a prática das fatras e fatrasies, pequenas canções que são os antecedentes da poesia do nonsense de ingleses como Edward Lear e alemães como Christian Morgenstern. No século XX, o nonsense e a sátira formaram grande parte da excelente produção poética de alemães como Hans Arp e Kurt Schwitters. Dentro da tradição brasileira, podemos pensar nos poemas de Bernardo Guimarães, Sapateiro Silva e Qorpo-Santo.

Para criticar a poesia satírica contemporânea, espera-se que um crítico conheça esta tradição e se refira a ela em sua crítica. Assim como a de mulheres como Nathalie Quintane ou Harryette Mullen, que têm usado estas práticas para denunciar tanto a misoginia quanto o racismo, como nos versos de Mullen: “não se canse diretoria / dê prática à sua teoria / ela pergunta se é coisa de homem / ou coisa de pronome // desejando a ele sorte / deu-lhe os limões que chupa / disse-lhe benzinho ao cangote / melhore sua embocadura”.

Poemas de Angélica Freitas como “Sereia a sério” e “Rilke shake”, publicados em seu livro de estreia, a ligam a esta tradição. Um poeta deveria ser julgado por aquilo que faz, não aquilo que não faz ou até mesmo se recusa a fazer. Além disso, é importante pensar no que escreveu Ezra Pound, autor que é tão macaqueado por críticos contemporâneos: “Tristeza e solenidade estão completamente fora de lugar até mesmo no mais rigoroso estudo de uma arte originalmente destinada a alegrar o coração humano”.

Alguns críticos se vestem de um tom autoritário e sacerdotal para tratar de uma arte que se originou e foi destinada aos aspectos mais lúdicos do espírito humano. Mas nosso crítico em questão, aparentemente investido da função de proteger a poesia,  diz categórico: “poesia não é playground.

Adeus, jogos de linguagem que nos deram tanto prazer, prazer simples, aquele que alegra apenas pelo texto, tantas vezes pelo puro nonsense.

Não se invoca um poeta de uma tradição para criticar outra tradição. É ridículo que um crítico invoque Arnaut Daniel e John Donne para criticar poemas satíricos. São poesias com propósitos distintos. Como comparar John Donne e Kurt Schwitters? Na poesia medieval dos provençais, havia três práticas: o trobar leu, composições leves destinadas a um público amplo, o trobar ric, composições mais sofisticadas destinadas a um público mais especializado, e o trobar clus, estilo hermético geralmente usado em textos de poetas para poetas. Havia saúde nisso. Se a crítica anseia apenas pelo trobar clus, o estilo hermético, é óbvio que não haverá um público amplo para a poesia. É importante que haja composições para todos os públicos.

Rilke shake

salta um rilke shake
com amor & ovomaltine
quando passo a noite insone
e não há nada que ilumine
eu peço um rilke shake
e como um toasted blake
sunny side para cima
quando estou triste
& sozinha enquanto
o amor não cega
bebo um rilke shake
e roço um toasted blake
na epiderme da manteiga

nada bate um rilke shake
no quesito anti-heartache
nada supera a batida
de um rilke com sorvete
por mais que você se deite
se deleite e se divirta
tem noites que a lua é fraca
as estrelas somem no piche
e aí quando não há cigarro
não há cerveja que preste
eu peço um rilke shake
engulo um toasted blake
e danço que nem dervixe

Não é necessário conhecer a tradição satírica, a do Arquipoeta Goliardo, de Sapateiro Silva ou Kurt Schwitters para entender este poema. As centenas de pessoas que esgotaram as tiragens dos livros de Angélica Freitas não têm esta obrigação, e não precisam dela. Há uma busca pela graça de linguagem, não apenas graça como humor.

Quem tem, no entanto, obrigação de conhecer esta tradição é aquele se propõe a provar que o poema acima não presta, não tem valor algum, e o faz com tamanha impostura e desonestidade intelectual, como o fez Amador Ribeiro Neto em sua crítica.

Seja ou não central, seja ou não menor, essa tradição existe e é muito saudável para a literatura de um país. A meu ver, Angélica Freitas tem sucesso na empreitada, fazendo-o com rimas inteligentes, e em sua fusão, por vezes, de estruturas da poesia satírica e da lírica, com recurso ao humor autodepreciativo. É eficiente e emociona.

Quanto ao segundo livro da poeta, Um útero é do tamanho de um punho (2012), mais uma vez o crítico falha miseravelmente em julgar o trabalho por aquilo a que se propôs. Uma das estratégias, não apenas literárias mas de linguagem até mesmo de rua, em grupos que têm sido violentamente oprimidos ao longo dos séculos, é o de apropriar-se da linguagem do opressor para subvertê-la em seus valores. Os textos de Angélica Freitas no segundo livro, como os da série “uma mulher”, propõem-se a isso, e devem ser julgados nesta empreitada. Como é possível que o crítico pensasse que ela estava querendo “emocionar” com estes textos? É completamente absurdo.

uma mulher sóbria
é uma mulher limpa
uma mulher ébria
é uma mulher suja

dos animais deste mundo
com unhas ou sem unhas
é da mulher ébria e suja
que tudo se aproveita

as orelhas o focinho
a barriga os joelhos
até o rabo em parafuso
os mindinhos os artelhos

Isto é o que a poesia satírica faz há tempos, é a sua tradição, pensemos aqui em Sapateiro Silva, Kurt Schwitters ou, no pós-guerra, Dieter Roth.  É legítimo que um crítico prefira a poesia “séria”. Ele pode e deve saber mesmo diferenciar estas tradições. Isso, no entanto, requer um ato muitíssimo delicado do espírito: discernimento. Quando o crítico passa a querer hierarquizar estas tradições em linguagem pseudo-científica, percebemos de imediato que ele não possui capacidade para este delicado ato do espírito. A misoginia raivosa com que Amador Ribeiro Neto compôs seu texto apenas nos demonstra, mais uma vez, como o trabalho de Angélica Freitas, e de outras mulheres escrevendo no Brasil, segue sendo não apenas importante, como necessário.

Mas não devemos nos irritar em demasia. Eu, por exemplo, aprendi muito com este poema de Angélica Freitas, com o qual encerro este texto, por achá-lo tão apropriado para a ocasião:

às vezes nos reveses
penso em voltar para a england
dos deuses
mas até as inglesas sangram
todos os meses
e mandam her royal highness
à puta que a pariu.
digo: agüenta com altivez
segura o abacaxi com as duas mãos
doura tua tez
sob o sol dos trópicos e talvez
aprenderás a ser feliz
como as pombas da praça matriz
que voam alto
sagazes
e nos alvejam
com suas fezes
às vezes nos reveses

Data

terça-feira 12.08.2014 | 12:18

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Primeiras impressões sobre o documentário “Outro Sertão”

Graças à generosidade de Adriana Jacobsen, que descobri ser minha vizinha no bairro de Prenzlauer Berg em Berlim, e de sua parceira Soraia Vilela, pude assistir ontem ao documentário Outro Sertão (2013), que retrata o escritor João Guimarães Rosa em sua passagem pela Alemanha Nazista como vice-cônsul brasileiro em Hamburgo, entre 1938 e 1942. O documentário tem sido bastante elogiado e recebeu o prêmio especial do júri por seu trabalho de pesquisa no 46º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro.

João Guimarães Rosa é um dos escritores mais misteriosos da Literatura Brasileira. De certa forma, ele raramente parece incitar incursões biográficas. Com sua escrita densa, dá trabalho suficiente aos exegetas estritamente literários. É claro que isso se dá também num país que tem tradição algo exígua no que diz respeito a biografias. Há pouco tempo, o trabalho de pesquisa de Benjamin Moser causou alvoroço com sua bela e  fundamentada biografia de Clarice Lispector, contemporânea de Guimarães Rosa, tendo ambos estreado em livro no mesmo período. Há quase nenhuma cena em movimento do escritor mineiro, e a entrevista inédita que as diretoras descobriram e incluíram no documentário certamente tem um valor especial para saciar esta curiosidade. O documentário ilumina um aspecto desconhecido da biografia de Rosa, e é compreensível que esteja sendo recebido com entusiasmo e, creio, especialmente carinho pela crítica nacional.

Eu precisaria, no entanto, apontar algumas discordâncias críticas. Assisti ao filme em Berlim, com dois amigos estrangeiros, um deles diretor francês de teatro e cinema. Houvesse visto o filme no Brasil, é possível que minha impressão tivesse sido outra, levado também pelo carinho e, especialmente, por estar entre pessoas que não necessitam de certa contextualização. Sabem quem foi o escritor João Guimarães Rosa e estão felizes por ter iluminada certa parte de sua vida, uma parte que tem ainda contornos tão heroicos e bonitos. Vi, no entanto, como disse, o filme em Berlim, com dois estrangeiros que não tinham o menor conhecimento sobre quem era João Guimarães Rosa. O escritor teve seu momento de fama na Alemanha, graças aos esforços de seu tradutor à época, Curt Meyer-Clason (1910 – 2012). O chamado Boom Latino-Americano também favoreceu alguns escritores brasileiros, como Guimarães Rosa e Jorge Amado. Hoje, porém, Guimarães Rosa é um ilustre desconhecido na Alemanha, o que se espera mude, quando for lançada a nova tradução de Berthold Zilly para Grande Sertão: Veredas.

Portanto, vendo o filme com estes amigos, creio que minha visão acabou sendo mais fria e crítica, analisando-o como documentário, para além do carinho e da curiosidade daquele que já tem informações. Neste aspecto, a julgar por meus dois companheiros de sessão, o filme, didaticamente, falha. Meus amigos comentaram ter saído do filme sem realmente saber quem era aquele homem, ou sua importância. Ainda que o documentário toque em sua obra literária, o faz de forma extremamente tangencial. Volta à sua vida escolar para nos relatar suas notas em alemão, tentanto criar certa simpatia, mas a cena parece não caber no filme, sem mencionar o salto estranho que faz ao passado. Neste aspecto, a montagem está certamente entre os maiores problemas do documentário. Salta de 1939 a 1941, retorna a 39, volta a 38, vai para o passado escolar do escritor, não segue uma cronologia consistente. É extremamente confusa a montagem. Não vejo a função cinematográfica desta escolha.

O filme parece depender, esteticamente, em demasia de nosso carinho e curiosidade pelo escritor, mas não informa muito. O material é certamente rico, mas saí do filme com a sensação de que o que foi mostrado em 70 minutos poderia ter sido mostrado com mais força em muito menos tempo, com uma montagem mais concisa. Quantas imagens de arquivo de Hamburgo precisamos ver? Quando o filme, já no final, mostra-nos um desenho de Guimarães Rosa e corta para cenas em um jardim zoológico, fiquei perplexo. Qual a função desta cena, ainda mais naquele momento do filme? O valor das imagens inéditas? Por que ali? Parecia quase inapropriado, seguindo em sequência as imagens que seguia. Cinematograficamente, além disso, a escolha de filmar textos e ter sua narração, ao mesmo tempo, é questionável.

O filme avança teses literárias, como a influência do período sobre a escrita de Grande Sertão: Veredas, mas não as prova ou, ao menos, desenvolve. Não há  leituras de passagens do livro, comparações com outros textos do período. A declaração fica perdida. É apenas uma asserção.

Quanto a uma contextualização do período entre Brasil e Alemanha, as tentativas são também tímidas, perdidas. É mostrado que o Brasil tentou evitar a imigração de judeus, mas ela comparece para intensificar o aspecto verdadeiramente heroico de Rosa. O nome de Getúlio Vargas, por exemplo, sequer é citado. Em 1938, quando Guimarães Rosa segue para a Alemanha, vivia-se o auge do Estado Novo, implantado no ano anterior. A violência de caráter étnico que Guimarães Rosa encontra na Alemanha daquele período estava também no país. Se a belicosidade e o racismo alemães influem na percepção política de Rosa, teria sido frutífero pensar nas violências e belicosidades brasileiras da época. A ideologia eugênica da Europa havia deixado suas manchas na política e história do Brasil. Basta pensarmos em Os Sertões, de Euclides da Cunha, se estamos falando de Outro Sertão. Entre 1938 e 1940, terminava o ciclo histórico do cangaço, com a morte de Virgolino Ferreira da Silva, o Lampião, e sua mulher Marina Bonita, e a exibição de suas cabeças degoladas na escadaria da prefeitura de Piranhas, em Alagoas. Com a morte em 1940 de Cristino Cleto, o Corisco, há um arco que retrocede à Guerra Total que foi Canudos, entre a República brasileira e sua dissidência. As perseguições políticas dentro do Brasil no período ficam invisíveis no filme. As próprias perseguições étnicas brasileiras não comparecem, quando sabemos que, em 1938, o candomblé ainda era proibido por lei do Estado Novo, e sambistas do Rio precisavam subir o morro, fugindo da polícia, enquanto os de São Paulo nem morro tinham para subir. Não se trata de equiparar o que houve na Alemanha nazista e no Brasil estadonovista. Não é equiparar, nem querer equivaler. Trata-se de uma contextualização. Qual é o outro deste Outro do título?

O filme depende em demasiado de conhecimento prévio e de carinho para sua recepção. Mesmo a entrevista de Rosa na televisão alemã depende desta curiosidade carinhosa pois, como entrevista em si, não tem grande interesse, é bem possível que por culpa do entrevistador. Não é como a de Clarice Lispector, em 1977, cheia de declarações marcantes e poderosas da escritora, com interesse que vai além de nosso carinho e curiosidade por ela. A entrevista de Rosa é simplesmente… como dizer isso? Bem, chata. Talvez seja a coisa mineira de esconder o ouro.

Tal como foi editado, acredito que o filme poderia ser muito mais curto sem perder força, pelo contrário, ganhando-a. Em todos estes aspectos, o documentário me parece tímido. Vi o filme com entusiasmo genuíno, mas infelizmente saí dele com a sensação de ter acabado de testemunhar uma oportunidade, não diria perdida, mas não aproveitada em todas as suas implicações possíveis.

Data

sexta-feira 08.08.2014 | 15:10

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Elogio do pai

baptismEste não será ainda o texto que eu hei-de dedicar ao senhor, João Domeneck. Eu ainda estranho a morte do senhor, a morte do senhor é uma notícia sem corpo, uma mensagem sem voz, aqui deste lado do Charco que eles chamam de Atlântico. Mas é a notícia que faz da nossa ausência mútua algo mais escuro. Quantos caracteres, quantos signos foram necessários para anunciar a morte do senhor? Tão poucos. Mas quantos dariam conta da enormidade dessa novidade absurda? Ao mensageiro que lhe trouxe a notícia da morte de Saul, Davi caiu-se por sobre ele com a espada. Mas a mensageira era minha irmã, João Domeneck, aquela que o senhor criou como se fosse sua. E o era menos, por não ter saído das suas coxas?

Duas décadas depois de ter deixado a casa do senhor e da mãe, é como se cada dia devesse ter sido um preparo para estes, imediatamente posteriores à morte do senhor, mas nunca são. Que frase louca me veio à cabeça agora, João Domeneck, “a morte nunca é sã.” O senhor riria? Meus irmãos têm todos feito suas homenagens, expressado o descorçoo da perda, e sinto essa voz acusatória, dirigindo-se não a mim, mas ao senhor, “E o teu filho metido a escritor, João Domeneck, não vai dizer nada, não vai abrir aquela bocarra cheia de opiniões?” Me deixem quieto no meu canto, sobre a morte do senhor eu não tenho opinião, só susto. É, este não será ainda o texto que eu hei-de dedicar ao senhor, João Domeneck. Este é apenas o primeiro registro do susto.

Eu me lembro da morte da mãe do senhor, aquela italianona ruiva do Molise, aquela avó de coração de romã, numa véspera de véspera de Natal, e a sua viagem à sua cidade natal, ao velho cemitério de Taiaçú, no interior do interior de São Paulo, para buscar os ossos do pai do senhor, que também se chamava João Domeneck, não, não se chamava João Domeneck, é hora de corrigir os erros de imigração, da nossa imigração, o pai do senhor, João Domeneck, chamava-se Joan Domènech, eu sei. Ou, como o senhor sempre se lembrava, o Jão Catalão, como era chamado pelos brasileiros, o povo da terra que escolheu, os sitiantes vizinhos, antes de morrer, quando o senhor tinha apenas 12 anos e teve então que cuidar de mãe e irmão menor. Naquele natal, após enterrar sua mãe italiana e colocar sobre o caixão dela os ossos do seu pai catalão, o almoço foi uma coisa silenciosa, pesada e chuvosa, e eu me lembro de ficar observando-o ali, cabeça da mesa, calado, inescrutável como sempre fora, me perguntando: “O que está passando pela cabeça desse homem, meu Deus?” Hoje, todo lido e viajado, moleque metido a besta – como o senhor diria, eu poderia vir com citações sublimes, dizer que por sua cabeça passava uma lamentação identificável por qualquer homem e mulher e cabra carcomidos pelo sal do Mediterrâneo, mas o que sabia eu naquele tempo? E o que sei eu hoje?

Será que o senhor algum dia leu um dos meus poemas? Não sei, João Domeneck, e peço já perdão por não ser Drummond algum, é pouco provável que eu um dia possa dedicar ao senhor e à sua mesa, que o senhor sempre manteve cheia, abastada, com fartura de tudo (ainda que não faltassem as admoestações a que não acabássemos com o iogurte em um só dia, e que não se come só mistura), algum poema como “A Mesa.” Com a filiação agora pela metade, resta essa senhora cansada, trabalhadora, com os cabelos que já nem mais perde tempo em tingir, e essa minha vontade de poder fazer como Drummond, apenas “pedir à mãe que cosa, / mais do que nossa camisa, / nossa alma frouxa, rasgada.”

Não era sempre fácil, pai, e note que só agora, neste parágrafo, dirijo-me ao senhor assim, João Domeneck. Como se aprende a ser o filho obediente e honrar pai e mãe quando se discorda de tanta coisa no campo político, religioso, e nessa mistura louca dos dois em nossa República? Como se aprende a ser o filho que nem sequer pior que a encomenda saiu, mas cresceu com aquela sensação de ter sido entregue com defeito de fábrica? E nós nunca tivemos essa conversa, João Domeneck, nunca falamos abertamente disso, pai. Não pude jamais contar ao senhor quem eu realmente era, a quem amava, e quando as dores dos pés na bunda vieram, nunca chorei no seu ombro. Havia um acordo tácito, um pacto de silêncio, mas nutrido por aquela certeza, agora eu sei, agora, neste susto grande, de que o amor fala muito alto, o amor tem garganta de ouro (piscadela, aqui, a meus irmãos, que entenderão a citação), o amor cala bispos e senadores, cala tudo o que não vem da terra, e o que vem da terra é uma compreensão total entre tudo o que ama, sofre e morre, mas sobretudo morre, como diria aquele outro católico, Miguel de Unamuno, que o senhor teria certamente aprovado, da mesma forma como se pôs sorridente quando me flagrou lendo Santo Agostinho e suas Confissões. Mas não disse nada.

Não, aquela conversa não houve, e sabemos que a História tem uma preferência obsessiva por tudo o que houve, e o que não houve é relegado aos casos de memória curta das famílias. E isso nos serve bem, pois éramos e somos gente pequena. E a gente pequena é aquela dos segredos inconfessáveis, que vão sendo comunicados num estranho tipo de morse, como um agitar de bandeiras ao alto e abaixo entre dois barcos de papel numa poça d’água, evitando a língua, da mesma forma como não se põe colher de boca no doce, para não azedar o pudim. Lição que aprendi com o senhor, que no entanto até do leite que coalhava sabia aproveitar para a fartura da mesa.

Não, este não foi, é ou será ainda o texto que eu hei-de dedicar ao senhor, João Domeneck. Mas tendo-o chamado de “elogio” no título, cabe-me agora dizer ao senhor que busquei, sim, um elogio nestes últimos dias, não o do gênero literário, mas como compreendemos a palavra no interior, e posso dizer a todos, ao aproximar-me do final deste texto, isto: que foi com o senhor e a mãe, quando eu ainda era muito criança, que aprendi o que significava a palavra “cafuné.” E não creio que se possa fazer maior elogio a um pai e mãe.

Quanta gente morreu este ano, das causas que têm sido as causas pelos séculos dos séculos, velhice, doença e guerra, pai, muita guerra. Não faz uma semana que descrevi este 2014 como um “ano de perdas irreparáveis” ao falar da morte de outro artista que respeitava, porque têm morrido muitos, pai, da profissão desse filho – metido a besta – do senhor. Só não esperava que o ano me faria pagar tão caro pelo uso daquele adjetivo.

R.I.P. João Domeneck Filho (1932 – 2014).

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terça-feira 05.08.2014 | 11:20

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Flip 2014

SorókinAbriu ontem em Paraty a Flip 2014, décima-segunda edição do evento. Desde sua fundação em 2003, a festa literária foi alvo de inúmeras críticas, mas firmou-se como a mais conhecida no país. Há dois anos, eu próprio uni-me ao coro dos críticos, em um artigo para a Deutsche Welle Brasil no qual discutia o parquíssimo número de autoras no evento desde sua criação, refletido ainda na escolha dos homenageados, entre os quais apenas Clarice Lispector (1920 – 1977) compareceu até a presente data. O número de escritoras no evento jamais chegou a uma dezena, entre mais de 40 convidados a cada ano. O que seria um escândalo em várias partes do mundo, no Brasil parece não incomodar muita gente.

Este ano não é diferente: entre os 47 convidados principais, há 8 mulheres. Não são todas escritoras ligadas à literatura: o evento de 2014 traz a fotógrafa Claudia Andujar, a atriz Fernanda Torres, e nomes ligados ao jornalismo, como a brasileira Eliane Brum e a argentina Graciela Mochkofsky. Como o homenageado deste ano é Millôr Fernandes (1923 – 2012), escritor que construiu sua carreira dentro da imprensa brasileira, o evento, que invariavelmente conta com jornalistas como curadores, tem uma presença forte de autores ligados à imprensa entre os convidados.

Duas das ficcionistas presentes são jovens que alcançaram renome em seus países ganhando prêmios importantes, como a canadense Eleanor Catton, ganhadora do Man Booker Prize, e Jhumpa Lahiri, britânica filha de imigrantes indianos, ganhadora do Pulitzer. Neste aspecto, a festa tem sido generosa com autores jovens, contando a cada ano com alguns escritores que iniciaram há pouco suas carreiras. Este ano, a festa traz o suíço Joël Dicker (n. 1985) – que tem sido celebrado por suas vendas mundiais, e ainda o paquistanês Mohsin Hamid (n. 1971) e o peruano Daniel Alarcón (n. 1979). Há que se notar ainda que, com frequência, os nomes aparentemente vindos de fora do âmbito cultural EUA-Europa são filhos de imigrantes ou autores que produziram sua obra nos Estados Unidos ou Europa, escrevendo em inglês. Estas são questões que serão vistas por alguns leitores deste texto, tenho certeza, como meramente políticas e portanto, na mentalidade ainda reinante em grande parte do Brasil, extraliterárias.

Mas em um evento que tem com frequência se furtado ao que outros veriam como responsabilidades, é importante destacar a presença do escritor ianomâmi Davi Kopenawa e do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro em Paraty este ano, especialmente em meio à intensificação das perseguições e assassinatos de líderes indígenas no país, com uma violência crescente sob a mudez e a conivência do Palácio do Planalto e do Ministério Público. Na edição do evento no ano em que são lembrados os 50 anos do golpe de 64, há uma presença forte de autores ligados ao questionamento político da época, e ainda mesas de discussão, como a que reúne Bernardo Kucinski, Marcelo Rubens Paiva e Persio Arida, chamada “Memórias do cárcere: 50 anos do golpe”. Num ano como este, não apenas pela data histórica, mas pelos acontecimentos atuais em torno dos protestos, isso é mais que benvindo.

Nomes importantes na festa deste ano incluem o cultuado autor português Almeida Faria (n. 1943), autor de A Paixão (1965); o russo Vladímir Sorókin (n. 1955) [foto acima], autor de A Fila (1984) – obra central da literatura conceitual e pós-moderna em seu país, que faz dele herdeiro e o liga à ala mais experimental da prosa e poesia russas no pós-guerra, como a de Dmitri Prígov (1940 – 2007); e ainda o chileno Jorge Edwards (n. 1931), ganhador em 1999 do Prêmio Cervantes.

A festa deste ano traz uma gama bastante variada de nomes ligados ao jornalismo, à arquitetura, à sociologia e à ciência. São muitas as estantes nas livrarias precisando de atenção. Quanto à poesia, talvez esta seja a curadoria mais fraca da história do evento, com apenas dois autores, Charles Peixoto, e outro carioca, o jovem Gregorio Duvivier, cuja carreira tem sido alavancada por sua fama como comediante. Estes autores têm obras que certamente merecem seu espaço e atenção, mas estão longe de ser as expressões mais inovadoras da poesia brasileira contemporânea.

É provável que seja ocioso reprisar as críticas à Flip. Festa do mercado editorial, já sabemos da influência que as grandes editoras têm sobre a curadoria do evento. A escolha invariável de jornalistas para a curadoria também demonstra certa tendência. Talvez não se possa esperar grande ousadia de um evento editorial, ligado portanto às regras do mercado. Para dar um exemplo do campo da música, seria muito frutífero ver no Brasil um festival literário de grande porte que fizesse o que faz o excelente festival londrino Meltdown, que convida para a curadoria sempre os nomes mais expressivos, experimentais e respeitados da cena musical. Patti Smith, David Bowie, Scott Walker, Yoko Ono e Antony Hegarty já foram curadores do evento. Um festival como este mantém a cena musical inglesa em contato anual com o que há de experimental acontecendo no mundo.

No que toca à Flip, o país pode contar a cada ano talvez apenas com um ou dois nomes mais ousados, como é o caso de Vladímir Sorókin este ano, para ter contato com expressões inovadoras em outras línguas. Quiçá os escritores brasileiros jovens presentes no evento possam desfrutar desta oportunidade. Mas, com os custos ligados à visita ao evento, seu esconderijo idílico na apropriadamente colonial Paraty e a presença marcante de autores que, de qualquer forma, já têm grande espaço na imprensa, temo que a Flip seguirá sendo, em grande parte, apenas uma celebração do status quo.

Data

quinta-feira 31.07.2014 | 11:25

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São Paulo, o profundo

Talvez seja a idade que avança, o escritor começa a querer recompor a merencória infância. Nós nunca fomos muito prudentes na hora de seguir os conselhos de Drummond. Afinal, nem ele o foi. A morte de Suassuna e a reflexão sobre o seu papel na cultura brasileira talvez tenham também intensificado isso, e os textos e mensagens recentes de colegas cariocas que se exilaram em São Paulo, como Victor Heringer e Marília Garcia. Quiçá tudo não passe de sentimentalismo de exilado, como comentou minha colega luso-berlinense Adelaide Ivánova. Houve ainda a morte recente de meu tio, Douglas Domeneck, e o pensamento em meu pai, entrevado na cama após seguidos derrames no interior de São Paulo, quando em minha memória ainda o vejo saindo de casa, todo enérgico, para fazer cooper, como dizia, ou gritando os preços de leitoas e frangos assados nos leilões que dirigia para as quermesses da cidade natal. Soará como paroquialismo esse texto?

Uma cena desenrolada na cantina da Faculdade de Filosofia da USP, lá pelos idos de 1998, quando eu já havia deixado o interior de São Paulo e vivia na Desvairada: o poeta Érico Nogueira, meu amigo e também paulista do interior, vira-se e diz: “O paulista é um povo sem metafísica.” De qualquer forma, nessas conversas, eu tomava o cuidado de enrolar o R que trazia arrastado desde os tempos das poRtas veRdes do interioR. Essa aproximante retroflexa que ainda se debate se é influência do tupi-guarani dos indígenas ou do português do Minho.

Quando leio os textos de Pier Paolo Pasolini, o poeta da pequena Casarsa, sobre a destruição cultural que a massificação e industrialização (sem metafísica) trouxeram à Itália, penso às vezes na devastação cultural e metafísica do interior de São Paulo, irradiando da capital. Cresci em uma década na qual ainda sobreviviam resquícios da cultural popular do interior do estado. O povo ainda ouvia as modas de viola. Em algum rincão escondido do país, vivia ainda Helena Meirelles, obscura. As procissões ainda passavam pela rua, e havia aquele dia do ano em que a Bandeira dos Santos Reis vinha para ser beijada. As senhoras da rua se reuniam às terças-feiras para rezar o terço, e quando era o tempo da novena, o vozerio das ladainhas invadiam qualquer casa, especialmente a minha, que ficava a dois portões da reunião. Criança, eu ficava com a cara grudada na grade, olhando as velhinhas, ouvindo hipnotizado aquele som ritmado. Era o mistério.

E quando perguntei a minha avó, a Vó, que viu lobisomem duas vezes, por que não havia mais assombração, ela disse: “É culpa da eletricidade, meu fio. Assombração e lobisomem têm medo quando tem muita gente, só vêm no escuro do sítio.” Era a matriarca e minha primeira experiência com o poder narrativo da palavra, suas mil estórias, como em sua versão da Gata Borralheira – que vivia numa fazenda e ganhava da Fada, em primeiro lugar, uma vaca. A vaca, que era (é claro) mágica e falava, era morta pela madrasta, mas não antes de instruir a borralheira a abrir suas tripas mais tarde, com uma faca, pois encontraria em seus intestinos um vara verde, mágica. O resto é Disney, com a exceção do príncipe, que na verdade era apenas o filho mais velho e mais bonito do sitiante mais rico da região.

Hoje, as festas juninas são aquele espetáculo deprimente em escolas particulares. Os rapazes são agroboys, sua música é o country. Do mistério das manifestações religiosas, resta apenas o conservadorismo beato. Da devoção, o zelo vazio. Do localismo, que pode estimular de forma tão criativa a cultura de um país, resta o provincianismo. Por onde andam Os Parceiros do Rio Bonito? Cururu não há mais.

O embate entre o Brasil rural e o urbano segue. Sua estrutura se repete nas batalhas dentro das cidades. Higienópolis de costas dadas a Pinheirinho. O esvaziamento cultural de São Paulo é o que aguarda o Brasil como um todo, se a elite mais obtusa do mundo, a brasileira, não for detida em sua vulgaridade pseudo-modernizadora.

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terça-feira 29.07.2014 | 10:35

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