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Literatura e Segunda Guerra

Esta semana foi o aniversário de 75 anos da invasão da Polônia pela Alemanha, em 1° de setembro de 1939, dando início à Segunda Guerra Mundial, ou, como querem alguns historiadores, a segunda prestação da Grande Guerra. O conflito mais definidor do último século, ainda vivemos em muitos aspectos sob suas consequências. O mundo que emergiu da Primeira não era o mesmo, e certamente não era este o que por sua vez emergiu da Segunda. Suas marcas estão também na Literatura, tanto a que foi produzida no período, como a que se seguiu.

Não haveria espaço aqui para tratar da miríade de obras que estão, direta ou indiretamente, ligadas à Segunda Guerra Mundial. O que apresento aqui são notas muito pessoais sobre algumas obras, oriundas dela, que mais me causaram impacto, e que gostaria de recomendar, caso haja alguma surpresa no que se segue.

A escrita dos campos

amérySeria necessário um ensaio denso apenas para falar sobre a escrita dos sobreviventes dos campos, ou o que se convencionou chamar de Literatura do Holocausto. Já se falou muito sobre a invectiva de Theodor W. Adorno, a de que, após Auschwitz, escrever poesia seria um ato de barbárie. Talvez a resposta mais célebre seja a obra do poeta romeno de língua alemã Paul Celan, seu gesto constante de dar voz aos mortos. É importante lembrar, no entanto, que o próprio Celan fala em um de seus poucos textos em prosa sobre o horror que lhe causava ler escritores que seguiram produzindo textos como se nada estivesse acontecendo (ou houvesse acontecido), retomando sua escrita ciosa da Grande Beleza, sem debruçar-se sobre o abismo da Catástrofe. Daí, a fratura da santíssima sintaxe alemã que vemos na obra de Celan. Em seu poema mais famoso, Celan escreve (a tradução é minha):

Leite negro da madrugada nós te bebemos à noite

nós te bebemos de manhã e ao meio-dia nós te bebemos à tardinha

nós bebemos e bebemos

Certo homem habita a casa e brinca com víboras que escreve

que escreve quando escurece à Alemanha teu cabelo doirado Margarete

Teu cabelo cinzento Sulamita nós cavamos nos ares uma cova onde espreguiçar-nos

Ele grita pás mais fundo no miolo da terra vós e vós cantai e tocai

ele alcança o ferro na cintura agita-o nos ares seus olhos são azuis

mais fundo com as pás mais alto com os violinos chacoalhemos os esqueletos

(Paul Celan, “Fuga da morte”, excerto.Tradução de Ricardo Domeneck)

Na prosa, um dos grandes nomes dentre os escritores sobreviventes daquele horror é o de Primo Levi, que sobreviveu a Auschwitz. Seu livro de memórias É isso um homem? (Se questo è un uomo, 1947) foi um dos primeiros textos sobre as trevas dos campos, no mesmo ano de publicação de A espécie humana (L’espèce humaine), de Robert Antelme, que sobrevivera a Buchenwald. Muitos outros viriam, como Além da culpa e expiação  (Jenseits von Schuld und Sühne, 1964), de Jean Améry, que passara também por Auschwitz e Buchenwald, sendo libertado em 1945 em Bergen-Belsen. Améry tem uma das citações mais marcantes (e, de certa forma, condenadora de toda a nossa noção de civilização) sobre a experiência dos campos:

“Uma leve pressão na mão que segura os instrumentos da tortura basta para transformar o outro, juntamente com sua cabeça, na qual estejam talvez armazenados Kant e Hegel, e todas as nove sinfonias, e O Mundo Como Vontade e Representação– em um histérico leitão guinchante no abatedouro. O próprio torturador pode então, quando tenha executado tudo, extinguindo o que restava de espírito na vítima, fumar um cigarro ou tomar o café da manhã, ou, se tiver vontade, ensimesmar-se com a leitura de O Mundo Como Vontade e Representação.” — Jean Améry.

De Primo Levi, eu recomendo especialmente o excelente Se não agora, quando? (Se non ora, quando?, 1982), que conta a história pouco conhecida dos judeus que pegaram em armas e se uniram aos partisans na resistência antinazista.

Um autor que era pouco conhecido no Brasil, mas que passa agora a ser traduzido, é o franco-egípcio Edmond Jabès. A Lumme Editor lançou no ano passado um volume traduzido por Eclair Antonio Almeida Filho e Amanda Mendes Casal, e promete lançar toda a obra de Jabès no Brasil até 2017.

Jabès é um escritor fascinante, e é muito interessante pensá-lo ao lado de Celan. Suas obras são muito distintas, mas é como ver duas pontes paralelas sobre o abismo. Cultuado na França e nos Estados Unidos, tem um dos projetos literários mais belos da língua francesa, e também mais estranhos e difíceis, desde Francis Ponge. Ainda que tenha publicado também volumes de poemas, seus livros mais misteriosos são de difícil classificação, séries de diálogos entre rabinos imaginários que buscam a recuperação da autoridade do Livro. É uma leitura essencial, não apenas para poetas ou pessoas interessadas na história da Segunda Guerra e da Shoah, mas por seu comovente trabalho de salvação da e através da linguagem.

Por fim, sinto-me impelido a falar de um dos meus poetas favoritos, que não sobreviveu aos campos: o húngaro Miklós Radnóti (1909 – 1944). Autor de poemas luminosos antes da Guerra, tradutor de poetas franceses como Rimbaud, Mallarmé e Apollinaire, seus últimos poemas são documentos literais do massacre. Forçado a unir-se ao regimento judeu do exército húngaro, mas desarmado (por ser judeu), acabou na minas de Bor. Com o avanço do exército de Tito, foi forçado a uma das infames marchas da morte. Escrevia seus últimos poemas numa caderneta, lutando ao mesmo tempo pela sobrevivência na marcha. Segundo testemunhas, foi executado por um miliciano bêbado, no início de novembro de 1944, por “ficar escrevinhando.” Seu corpo foi mais tarde reconhecido, ao ser exumado em uma vala comum, por encontrarem no bolso do seu casaco a caderneta com seus últimos poemas.

Prosa e poesia de guerra

keith douglasO número de trabalhos em prosa baseados na Guerra é muito grande. Vou me referir a dois autores, especificamente: o norte-americano Joseph Heller e o russo Vasily Grossman. O primeiro, Heller, deu-nos uma das obras mais estranhas e singulares do pós-guerra: o romance Catch-22 (1961), no qual expõe, de forma satírica e inteligentíssima, os próprios absurdos da mentalidade militarista, da máquina de guerra. O segundo, Grossman, foi correspondente de guerra para jornais soviéticos e deixou-nos alguns dos relatos mais marcantes sobre o dia a dia das batalhas. Tem excelentes contos, mas o romance que fincou seu nome no imaginário mundial é Vida e destino, escrito na década de 50 mas só publicado na década de 80. Grossman morreu acreditando que o livro havia sido destruído pelos censores do Kremlin, e o livro sobreviveu por ter sido levado para fora do país em microfilmes pelo poeta Semyon Lipkin.

Quanto à poesia, no aniversário do início da Primeira Guerra, escrevi para a Deutsche Welle Brasil um artigo em que discutia a literatura produzida durante o conflito de 1914 – 1918, intitulado “A literatura na Primeira Guerra Mundial”, publicado no caderno de cultura da Deutsche Welle Brasil no dia 2 de maio deste ano. Ali discuto como a relação de poetas com a guerra muda a partir dos massacres da Primeira. Muitos escreveram com fervor patriótico ainda naquele momento, talvez ainda tomados pela tradição épica da poesia europeia. Com a Segunda Guerra, a mudança já havia sido completada. Poetas entregam-se ao lamento sobre os despojos e a sátira contra seus Governos. Um exemplo é o britânico Keith Douglas (1920 – 1944), morto durante uma batalha, mas não sem antes deixar poemas extremamente sardônicos e impactantes sobre a vida nas trincheiras.

Segunda Guerra Mundial e o Brasil

murilo mendesO Brasil de Getúlio Vargas, relutantemente, entrou na Segunda Guerra em 1942, quando submarinos alemães afundaram navios brasileiros no Atlântico, acredita-se que em represália à adesão do Brasil aos compromissos da “Carta do Atlântico”, o que encerrava a suposta neutralidade brasileira no conflito. Um contingente de 25.000 soldados brasileiros foram enviados para os campos de batalha na Itália.

A guerra não deixou marcas na prosa brasileira, mas afetou intensamente o espírito e a produção de três grandes poetas modernistas: Oswald de Andrade, Murilo Mendes e Carlos Drummond de Andrade.

O belíssimo “Cântico dos cânticos para flauta e violão” (1945), de Oswald, traz para o seu foro íntimo a tragédia mundial. Em um ensaio, Haroldo de Campos chega a traçar paralelos entre esta lírica engajada de Oswald de Andrade e a de outros poetas internacionais, como o alemão Bertolt Brecht e o russo Vladimir Maiakóvski. Em seu A Rosa do Povo, também de 1945, Carlos Drummond de Andrade publicou poemas como “Com o russo em Berlim”, “Carta a Stalingrado”, “Visão 1944” e “Telegrama de Moscou”.

Já Murilo Mendes, com sua dicção característica, publicou em 1947 um de seus livros mais importantes, Poesia Liberdade, que se encerra com um dos melhores poemas da modernidade brasileira, “Janela do caos”, com sua linguagem fragmentária e assustadora, sobre a tragédia que se abatia no mundo.

Cai das sombras das pirâmides
Este desejo de obscuridade.
Enigma, inocência bárbara,
Pássaros galopando elementos.
Do fundo céu
Irrompem nuvens eqüestres.
Onde estão os braços comunicantes
E os pára-quedistas da justiça?
Vultos encouraçados presidem
À sabotagem das harpas.

(Murilo Mendes, “Janela do caos”, excerto)

O pós-guerra, sempre anteguerra

Se disse no início deste texto que a sombra da Segunda Guerra ainda paira sobre nós, com consequências que se acumulam, se entrelaçam, talvez o mais eloquente escritor desta sombra seja o alemão W.G. Sebald. Ainda não me recuperei da leitura, feita há dois anos, de seu livro Os Anéis de Saturno (Die Ringe des Saturn, 1995). Em minha opinião o maior prosador dos últimos 25 anos, ao lado de Roberto Bolaño, o alemão começou a  publicar tarde, e seus poucos livros antes de sua morte prematura são o testemunho de nossa vida sob a sombra da guerra, escondendo-nos do sol escaldante da verdade de nossa conivência cotidiana com os muitos massacres que nasceram com ela.

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quinta-feira 04.09.2014 | 14:45

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Escrever em outra língua

beckettFiz esta semana uma leitura em Berlim, numa série dedicada aos escritores de língua estrangeira da cidade, mas basicamente formada pela cena literária anglófona. Como a maior parte do público não fala nem português nem alemão, fui convidado a ler em inglês. Não havendo muitas traduções de meus poemas para a língua, decidi ler basicamente os textos que eu havia escrito originalmente em inglês. A experiência me levou a pensar em várias coisas que poderia comentar aqui neste espaço.

Em primeiro lugar, a cena literária internacional em Berlim: sabemos que a cidade atraiu muitos escritores à época da República de Weimar. Paris não monopolizou a atenção literária europeia no entreguerras, mesmo que o tenha feito antes da Grande Guerra. Na década de 20, poetas e prosadores como os ingleses W.H. Auden e Christopher Isherwood passaram por aqui, assim como muitos exilados russos após a vitória bolchevique na Guerra Civil. Um deles, o grande crítico Viktor Chklovsky, escreveu em Berlim um de meus livros favoritos, Zoo, ou Cartas Não de Amor (1922), no qual fala muito sobre a cena de émigrés russos na cidade. Na década de 20, havia dezenas de editoras dedicadas à literatura em língua russa na cidade. Além de Chklovsky, autores como Vladimir Nabokov, Andrey Bely, Marina Tsvetáieva, Vladislav Khodasevich e Nina Berberova viveram em Berlim.

A cena literária internacional hoje, em Berlim, é dominada pela língua inglesa. Mas há pequenas comunidades de autores hispano-americanos, brasileiros e russos, entre muitos outros. No momento, estou organizando uma antologia dedicada a esta cena internacional com textos de autores de diversos países, como Cia Rinne, Hanne Lippard, Travis Jeppesen, John Holten, Christian Hawkey, Pontus Ahlkvist, Luke Troynar, Stine Omar, Pär Thörn, Shane Anderson, Maya Kuperman, Érica Zíngano e vários outros. São poetas de diversos países e línguas. As cenas não se encontram, não há tantas conexões como deveria haver. Alemães não frequentam tanto os americanos, que por sua vez não frequentam os hispânicos, e assim por diante. Ao contrário da cena das artes visuais, que prescinde mais facilmente da língua, os escritores ainda se organizam tribalmente por idioma. O que talvez seja normal, ainda que não necessário.

Mas a segunda coisa que gostaria de comentar, e que dá título a este texto, é o fato de também compor textos em inglês, além do português. Paulo Leminski dizia (e às vezes menciono isso em leituras aqui em Berlim) que “em termos planetários, escrever em português e ficar calado é mais ou menos a mesma coisa.” Quando primeiro cheguei a Berlim, escrever em inglês foi uma necessidade, primeiramente por ter sido convidado por artistas visuais alemães para colaborações, como o fotógrafo Heinz Peter Knes, com quem colaborei algumas vezes, ou o jovem artista visual Philip Zach e, hoje em dia, o músico Markus Nikolaus. Eles precisavam entender o texto, portanto em vez de recorrer a traduções, decidi escrever diretamente em inglês. É claro que estes textos acabam por ser muito diferentes do meu trabalho em português, no qual tenho tanta experiência emocional, mas toda língua é uma caixa de ferramentas diferente, e posso em inglês fazer certos jogos de linguagem que são distintos em português. De certa forma, esta experiência não é muito distinta daquela que tiveram os poetas viajantes da Idade Média, os trovadores, que por viajarem de corte em corte para ganhar seu pão, compunham suas canções (alguns deles) em várias línguas. Isso tudo se deu antes da ascendência da noção de tradição nacional, que se tornou hegemônica especialmente após os românticos. Os poucos textos que compus em espanhol, por exemplo, foram feitos especialmente para performances na Argentina e na Espanha.

No “trovadorismo contemporâneo”, com os poetas-cantores de hoje, é normal que estrangeiros componham em inglês para alcançar um público maior. Ninguém se espanta que Björk ou Karin Dreijer Andersson (The Knife/Fever Ray) escrevam suas letras em inglês, e não islandês ou sueco, respectivamente. Na literatura, apesar da história da literatura do século 20, com autores que trocaram de língua, como Nabokov, ou escreveram seus textos em duas línguas, como Beckett, ainda causa certo estranhamento para algumas pessoas que um escritor trabalhe em mais de uma língua. Mas isso vem se tornando cada vez mais frequente. Pode-se lamentar que a língua do Império, o inglês, se torne ainda mais hegemônica por conta disso, mas um poeta hoje viaja, como há tantos séculos, para ganhar seu pão em cortes distintas, com línguas e públicos distintos. Talvez haja também ganho nisso.

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segunda-feira 01.09.2014 | 08:33

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Alguns tradutores brasileiros, hoje

1107-20140730163959No último texto que publiquei neste espaço, comento o trabalho de alguns tradutores estrangeiros que vêm contribuindo para uma maior divulgação da literatura brasileira no exterior.  Parece-me importante completar este comentário com a menção a alguns tradutores brasileiros que nos últimos anos têm feito tanto pelo pensamento literário no Brasil.

A tradução tem sido uma constante no trabalho de escritores nacionais. Sabemos que Machado de Assis traduziu, entre outros, um autor como Edgar Allan Poe, assim como a obra de Proust recebeu no Brasil a atenção de gente como Mario Quintana, Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira, de quem o volume de sua poesia completa, Estrela da Vida Inteira, traz traduções do inglês, francês, espanhol e alemão. De Drummond, a Cosac Naify lançou há pouco tempo o volume Poesia Traduzida, com poemas também de várias línguas. Mas é interessante que raramente vemos os nomes destes autores ligados ao trabalho da tradução. Não é com frequência que lemos: „O poeta e tradutor Manuel Bandeira…“

A grande mudança se dá, certamente, com os poetas do Grupo Noigandres. O trabalho tradutório de Haroldo de Campos, por exemplo, é inseparável de sua obra poética e crítica. Foi o homem, é claro, que nos deu o conceito e prática da transcriação como parte integrante do trabalho criativo de um escritor. Lição tomada certamente de Ezra Pound, sobre o qual a crítica norte-americana Marjorie Perloff escreve, em seu The Dance of the Intellect: Studies in the Poetry of the Pound Tradition (1996), que o pensamento tradutório do norte-americano segue sendo uma de suas grandes influências sobre a poesia contemporânea.

Pound acreditava que todo período de grande criação era precedido de um período de intensa tradução, e ele próprio considerava um livro de traduções,  As Metamorfoses de Ovídio por Arthur Golding, o mais belo da língua inglesa.

Não posso pensar hoje no trabalho contemporâneo de transcriar sem que me venha à mente a antologia de André Vallias dedicada à obra de Heinrich Heine – Heine, Hein? Poeta dos Contrários (São Paulo: Perspectiva, 2011), um dos grandes livros de poesia da língua portuguesa dos últimos anos. Há hoje gente muito séria dedicando-se à criação tradutória. Na cidade de Curitiba, por exemplo, vivem hoje dois exemplos marcantes: Caetano W. Galindo e Guilherme Gontijo Flores. O primeiro deu-nos a celebrada tradução de nada menos que o Ulysses, de James Joyce (São Paulo: Companhia das Letras, 2012) e dedica-se no momento à recepção lusófona de outro catatau de dificuldades, o Infinite Jest, de David Foster Wallace. Guilherme Gontijo Flores publicou sua premiada tradução de Anatomy of Melancholy, de Robert Burton (Curitiba: Editora UFPR, 2013), em 4 volumes, e acaba de lançar sua tradução para as Elegias de Sexto Propércio (Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2014).

Screen Shot 2014-08-22 at 16.26.19Os últimos anos foram de grande esforço tradutório. Ainda no campo da poesia clássica, Érico Nogueira publicou traduções para todos os Idílios de Teócrito, a partir de sua tese Contenda, Verdade e Poesia nos Idílios de Teócrito (São Paulo: É, 2013). São autores que seguem o caminho do grande João Angelo Oliva Neto entre nós, tradutor de Catulo e Marcial. Dirceu Villa, por sua vez, traduziu e comentou todo o Lustra, do já citado Ezra Pound (São Paulo: Selo Demônio Negro, 2011), e, recentemente, o poeta gaúcho Marcus Fabiano Gonçalves me deu a conhecer o excelente trabalho tradutório de Bruno Palma para poetas francófonos como Saint-John Perse e François Cheng. Também considero o volume Poesia Alheia (São Paulo: Imago, 1998), de Nelson Ascher, e Céu Vazio: 63 Poetas Eslavos, de Aleksandar Jovanovic, todos livros importantes para a formação de um jovem poeta no Brasil. Trata-se de gente que não brinca em serviço.

Além destes, e são muitos outros, para meu próprio trabalho foram muito importantes as traduções de Geraldo Holanda Cavalcanti de herméticos italianos como Eugenio Montale e Salvatore Quasimodo, as de Maurício Santana Dias para Cesare Pavese e seu Trabalhar Cansa (SP/RJ: Cosac Naify/7Letras, 2009), e agradecimentos seriam pouco para o trabalho de pessoas como Josely Vianna Baptista, Douglas Diegues, Pedro Niemeyer e Bruna Franchetto com a poesia ameríndia, assim como o Popol Vuh de Sérgio Medeiros. Se Pound estiver certo em sua equação tradução/criação, precisamos celebrar estes tradutores-criadores com mais afinco. Devemos muito a eles.

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segunda-feira 25.08.2014 | 09:41

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A importância de tradutores estrangeiros para um país

Quando penso na importância que uma única pessoa capaz e interessada na literatura brasileira pode fazer e, em muitos casos, já fez pela divulgação de nossos escritores em outros países, chego a ter vertigem com as possibilidades se houvesse maior compreensão e apoio por parte do governo para estes artistas da linguagem, os tradutores. A bolsa de tradução da Biblioteca Nacional é sem dúvida uma das melhores notícias que a literatura brasileira teve na última década, mas ela é mais pensada para as editoras que para os tradutores. Há outros programas, mas seria importante expandí-los, incentivar a vinda ao Brasil de jovens tradutores, assim como daqueles que já vêm desenvolvendo excelentes trabalhos tradutórios.

Aqui na Alemanha, já não está mais apenas nas mãos de uma única pessoa a recepção germânica de brasileiros, como há algumas décadas estava com o dínamo Curt Meyer-Clason, que traduziu João Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto, entre tantos outros. Os brasileiros hoje, na Alemanha, estão em boas e várias mãos. Aquele que parece ter tomado de Meyer-Clason a tocha é Berthold Zilly, que traduziu autores difíceis como Machado de Assis (Memorial de Aires), Euclides da Cunha (Os Sertões) e Raduan Nassar (Lavoura Arcaica), e dedica-se no momento à tradução da obra-prima de João Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas.

euclides da cunha alemão

A editora Schöffling & Co. está relançando em alemão toda a obra de Clarice Lispector, tendo começado a empreitada com Perto do Coração Selvagem, O Lustre e a biografia de Benjamin Moser. Karin von Schweder-Schreiner tem se dedicado ao trabalho de Bernardo Carvalho e a novas traduções de Jorge Amado, com os relançamentos da editora S. Fischer Verlag incentivados pelo centenário do autor, que foi entre os anos 40 e 80 o brasileiro mais lido por aqui. Michael Kegler vem traduzindo autores diversos como Moacyr Scliar e Luiz Ruffato, além do angolano José Eduardo Agualusa, hoje residente no Rio de Janeiro. Maria Hummitzsch traduziu autoras como Beatriz Bracher e Carola Saavedra. Niki Graça traduziu, entre outros trabalhos, a correspondência entre Olga Benário e Luiz Carlos Prestes.

Quanto à poesia, ela parece estar hoje nas mãos de uma pessoa: Odile Kennel. A poeta e romancista já verteu para o alemão livros de Angélica Freitas e Érica Zíngano, assim como poemas esparsos de Carlito Azevedo, Arnaldo Antunes e Douglas Diegues. Para o próximo ano, seu projeto é uma ótima notícia: a primeira antologia de Hilda Hilst em alemão. É importante mencionarmos também Timo Berger, tradutor de Laura Erber e co-organizador do Festival de Poesia Latino-Americana, que já trouxe a Berlim poetas como Chacal e Carlito Azevedo.

Nos Estados Unidos, tivemos em Benjamin Moser um exemplo do que a paixão de uma pessoa por um autor brasileiro pode fazer com sua recepção em um país. Graças ao americano, Clarice Lispector tornou-se hoje um nome amplamente conhecido entre os leitores norte-americanos, assim como incontornável para uma discussão da literatura estrangeira do século 20 naquele país. Desde então, o interesse pelo Brasil nos Estados Unidos já levou à tradução para o inglês do grande romance de Hilda Hilst, A Obscena Senhora D., por Nathanaël e Rachel Gontijo Araújo. O professor Gregory Rabassa dedicou-se a verter para o inglês os grandes romances de Machado de Assis, como Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881) e Quincas Borba (1890), que levaram nosso grande mestre a se tornar autor favorito de intelectuais tão diferentes entre si como Susan Sontag, Woody Allen e Harold Bloom. A poesia brasileira nos Estados Unidos, por sua vez, encontrou em Chris Daniels e Charles A. Perrone tradutores dedicados.

hilda hilst english

Em países de língua espanhola, temos contado com alguns milagreiros  individuais. Na Espanha, hoje, um deles tem sido Aníbal Cristobo. Com sua editora Kriller71 Ediciones, vem lançando poetas brasileiros como Paulo Leminski e Marcos Siscar ao lado de importantes autores estrangeiros como o norte-americano Charles Bernstein e o canadense Robert Bringhurst. Se a Espanha é um dos países que mais traduz na Europa, e é sempre possível encontrar em suas melhores livrarias os romances de Machado de Assis e Clarice Lispector, é importantíssimo o trabalho que Aníbal Cristobo vem desenvolvendo para o diálogo entre hispânicos e luso-brasileiros contemporâneos.

Na Argentina, contamos com os esforços de Cristian De Nápoli, que no volume Terriblemente Felices – Nueva Narrativa Brasileña, traduziu contos de autores como Sérgio Sant’Anna, Marcelino Freire, Jorge Mautner, Marçal Aquino, Milton Hatoum, Nelson de Oliveira e João Gilberto Noll, entre outros, e ainda, para o importante Diário de Poesía de Buenos Aires, preparou um dossiê sobre a poesia brasileira contemporânea com textos de Ricardo Aleixo, Carlito Azevedo, Marcos Siscar, Joca Reiners Terron, Marília Garcia e Juliana Krapp, entre outros. Sua seleção e tradução de poemas de Vinícius de Moraes foi premiada na Argentina e o poeta trabalha hoje em sua tradução de Nelson Rodrigues.

Por fim, não poderia deixar de mencionar a poeta e tradutora mexicana Paula Abramo, que traduziu para o espanhol, além do Poema Sujo de Ferreira Gullar, também o fenomenal romance de Raul Pompeia, O Ateneu, lançado pela prestigiosa editora da UNAM. Abramo tem dedicado uma atenção especial a este grande autor brasileiro, por quem também nutro admiração confessa e intensa, traduzindo ainda textos de Pompeia para a imprensa brasileira do século 19 e divulgando seu trabalho entre latino-americanos.

São alguns exemplos de indivíduos apaixonados por autores brasileiros, que têm feito contribuições excelentes à divulgação de nossa literatura no exterior. Está longe, muito longe de ser uma listagem completa destes santos milagreiros. Concentrei-me neste texto em algumas línguas que domino, cujas cenas literárias acompanho e posso, portanto, conhecer um pouco melhor. Mas um texto futuro deveria certamente cuidar, por exemplo, do trabalho de Marcia Schuback na Suécia, de Bart Vonck nos Países Baixos, ou de Jacques Donguy e Patrick Quillier na França, certamente entre outros, em países mais distantes.

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terça-feira 19.08.2014 | 08:45

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As mortes, e a de Nicolau Sevcenko

Há pouco tempo, conversando com um estranho que me perguntara o que eu fazia, respondi com uma piada triste: “Trabalho na seção de obituários de um jornal.” O rapaz sorriu amarelo, parecendo acreditar, e provavelmente pensando: “Que trabalhinho triste.” Estava com um humor do cão de rua naquela noite, havia escrito nas últimas semanas basicamente textos ocasionados por mortes, a de João Ubaldo Ribeiro, a de Ariano Suassuna, e, por fim, a do meu próprio pai no primeiro dia de agosto, mês de desgosto. Com as novas adições à lista de mortos de 2014, este ano bizarro, tem se tornado difícil não começar a semana com a pergunta: “Quem será o próximo? Serei eu?”

Foi com esta pergunta na cabeça que liguei o computador, para ter respondida a pergunta, logo de cara, com a notícia da morte do historiador Nicolau Sevcenko (1952 – 2014). Se a morte chegada na casa dos 80 não pode nos surpreender demais, perder um homem da importância de Sevcenko com apenas 61 anos de idade é um choque verdadeiro.

Filho de russos da Ucrânia que se exilaram no Brasil por seu avô ter lutado ao lado do Exército Branco contra os bolcheviques durante a Guerra Civil Russa, a primeira língua de Sevcenko foi o russo. Ele conta em uma entrevista à Revista de História, em 2006, que ao ser mandado para a escola, no Brasil onde nasceu, não entendeu nada. Ao reclamar para os pais que eles o haviam mandado para uma escola de estrangeiros, a mãe retrucou: “Os estrangeiros somos nós.” Segundo ele, sua família acreditava poder um dia voltar à Rússia, e não terminava de se fixar devidamente no novo país.

Ainda está por ser discutida mais amplamente a influência das novas ondas migratórias do século 20 sobre a literatura brasileira, com a chegada dos Lispector, Leminski e Hilst, junto dos Sevcenko, a uma cultura que vinha marcada cultural e linguisticamente pela ascendência lusófona dos Andrade e Guimarães.

A primeira vez que ouvi falar de Sevcenko deve ter sido entre 1998 e 1999, meus anos na Faculdade de Filosofia da USP. Tomando todas as minhas matérias optativas na Faculdade de Letras, comentava com uma amiga sobre minha decepção com o nível das aulas e do interesse dos alunos, ali, por literatura. Sua resposta foi: “Você precisa tentar fazer alguma aula do Nicolau Sevcenko na Faculdade de História.” Isso acabou não acontecendo, tendo abandonado o curso após dois anos para vir para a Alemanha. O que houve foi a leitura de seus textos, admirando sua capacidade de conjugar áreas cada vez mais separadas nestes tempos de especializações. Duas das grandes contribuições de Nicolau Sevcenko a uma junção inteligente dos pensamentos histórico, político e literário brasileiros estão nos seus livros Literatura como Missão (1983) e Orfeu Extático na Metrópole (1992).

nicolau

Escrito como tese de doutorado durante a Ditadura Militar (1964 – 1985), Sevcenko parte em Literatura como Missão da escrita de Euclides da Cunha e Lima Barreto para contemplar a história política e das ideias do início do século 20. Num momento de embates políticos duais, entre direita e esquerda, resistência ou adesão ao ideário militar-desenvolvimentista do regime, a escolha de olhar para a realidade por meio da ficção não deixou de causar polêmica. No entanto, com homens como Sérgio Buarque de Holanda e Boris Schnaidermann na banca, Nicolau Sevcenko não apenas convenceu como gerou repercussão e admiração pela ousadia. Na entrevista já citada, ele comenta:

“Acho que a razão pela qual o livro teve uma repercussão tão grande e tão imediata foi a necessidade, naquele momento da abertura, de o país ter um projeto de futuro, que de alguma forma trouxesse consigo, como ideia dominante, a do resgate da dívida social brasileira. Era essa a questão que a ditadura tinha tirado de circulação. Ela colocou a questão do desenvolvimento a qualquer custo, da integração do país ao mercado internacional independente das condições específicas características da sociedade brasileira – a última grande sociedade escravocrata do mundo ocidental. Um erro. A dimensão da divida social brasileira é tão exponencial que ela tem de ser pleiteada em qualquer projeto político.”

Meu interesse pessoal pelo trabalho de Sevcenko vem também, especial e justamente por minha admiração pelos intelectuais brasileiros do final do século 19, a chamada geração de 1870, passando por Machado de Assis, Joaquim Nabuco e Capistrano de Abreu, os primeiros autores a lidarem com os dilemas políticos da transição entre o Império e a República, cujos projetos alimentariam as ideias e obras de Euclides da Cunha e Lima Barreto, sobre os quais Nicolau Sevcenko debruça-se admirável e admiradamente em seu livro mais conhecido, Literatura como Missão.

Numa visão ampla de uma geração ativa especificamente nas duas últimas décadas do século 19, podemos pensar ainda nos embates com estas questões por autores como Joaquim de Sousândrade, Raul Pompeia e Cruz e Sousa, que expuseram cada um à sua maneira as mazelas e inviabilidades da sociedade brasileira para além da atitude por vezes ingenuamente celebratória do Grupo de 1922. A louca tentativa de inserção do Brasil em um sistema do capital internacional sem um pensamento detido sobre as características culturais específicas do país, a gigantesca dívida social cujo balanço é sempre postergado e a violência inerente da sociedade brasileira (racista e sexista, nascida de um genocídio), que vemos encarnar-se do “Inferno de Wall Street” a O Ateneu, passando pela “Litania dos pobres”, assim como em toda a obra de Machado de Assis, mestre de todos, chegando ao século 20 de Os Sertões e Triste Fim de Policarpo Quaresma.

É uma geração admirável, e é uma pena que certos preconceitos  (imposturas típicas e talvez compreensíveis das chamadas fases heroicas de um movimento literário) herdados dos nossos modernistas ainda turvem nossa visão quando olhamos para nossos modernos. Considero a expressão “pré-modernismo” uma verdadeira aberração crítica.

Orfeu Extático na Metrópole retorna à São Paulo dos anos 1920, iniciando sua narrativa em 1919, para traçar através dos jornais da época o espírito reinante na cidade, numa releitura inteligente do movimento modernista, captando o espírito de desenraizamento de milhares de imigrantes, como a própria família do autor logo seria, imigrantes cujos filhos, em um par de décadas, começariam a transformar a cultura nacional.

O fato do nome de Nicolau Sevcenko não comparecer com mais frequência entre os nomes dos grandes críticos literários brasileiros dos últimos 30 anos talvez seja apenas outro sintoma da separação pseudo-especializada dos campos do conhecimento. Seu trabalho é a prova de que uma pluralidade de interesses não precisa levar ao mero diletantismo. Seu desaparecimento é outra perda debilitante para o pensamento no país. O que podemos fazer, e o que eu pretendo sem dúvida fazer nos próximos tempos, é retornar aos textos de Nicolau Sevcenko.

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domingo 17.08.2014 | 06:00

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