Sobre “Uns contos”, de Ettore Bottini
Com sua morte prematura em dezembro de 2013, durante uma cirurgia cardiovascular, sabíamos que, com Ettore Bottini, o país perdia um de seus melhores artistas gráficos, um profissional competente e apaixonado dos bastidores da literatura. Visível, mas invisível, como tantos profissionais excelentes de bastidores na labuta de fazer os grandes textos chegarem a seus leitores.
Luiz Schwarcz, editor da Companhia das Letras, lamentou a morte do colega em texto que o chamava de um dos grandes e primeiros responsáveis pelo aspecto visual dos livros da editora. Bottini projetou para a Companhia das Letras, entre dezenas de outras editoras, capas de volumes dos brasileiros Alfredo Bosi, José Paulo Paes e Decio de Almeida Prado, assim como dos estrangeiros Jean Starobinski, Edmund Wilson, Roger Bastide e Gérard Lebrun, entre inúmeros outros. Seus projetos de capa para as redescobertas de grandes livros, como Lavoura Arcaica e Um Copo de Cólera, de Raduan Nassar, são emblemáticas de seu estilo limpo, legível, elegante. Sem firulas ou fuzuê, alguém diria lá pelas bandas onde nasci, ainda que o meu próprio uso dessas palavras possa parecer firula e fuzuê. Mas, se faço uso dessas palavras, é por motivo que elaboro adiante.
A publicação póstuma de Uns contos (São Paulo: Cosac Naify, 2014), volume com 11 narrativas curtas de Bottini, seguidas de sete “aparas”, ou começos de contos, mostra-nos que perdêramos em 2013 não apenas um excelente artista gráfico, mas também um impecável artista textual, um escritor de verdade escondido em meio aos celebrados incapazes. E que nos deixou alguns dos melhores contos da literatura brasileira deste novo século. O escritor cuiabense Joca Reiners Terron o diz de maneira clara e direta no título de sua resenha: Livro Uns Contos, de Ettore Bottini, já nasce clássico [Folha de S. Paulo, 22.03.14]. Não poderia estar mais de acordo. Terron fala ainda da “linguagem de talhe clássico, da minúcia vocabular com predileção por expressões incomuns (’embarafustou para a rua’, lê-se em Todos os Medos) e o jargão de ambientes que ressurgem no entremear das histórias, como o do turfe, da marinha e da pesca fluvial, e em muito bem-vindas paisagens rurais que destoam da onipresença urbana no conto brasileiro contemporâneo”.
Bottini nasceu em Blumenau, Santa Catarina, em 1948. Estudou na Marinha de Guerra e chegou a iniciar a faculdade de Arquitetura antes de dedicar-se à arte gráfica, trabalhando para várias editoras e projetando centenas de livros. Sua passagem pela Marinha nos demonstra a origem de seu uso seguro do vocabulário e certa rotina do mar para um conto como Irmãos de Armas, sobre marujos brasileiros em um navio atracado em Montevidéu, onde perambulam pela cidade. O mar retorna em Material para a um Conto, que nos leva ao policiamento britânico dos mares após o Aberdeen Act de 1845 – entre a Rainha Vitória, da Inglaterra, e Pedro 2º, do Brasil –, num texto que ressuscita de forma convincente, em plena literatura brasileira, a narrativa sobre piratas.
Nas palavras de Terron, as paisagens “rurais” de Bottini, talvez resultem de uma vida iniciada neste espaço cultural algo indefinido, que atravessa diversas fronteiras estaduais. Um espaço geográfico a que geralmente damos o nome de “interior” e que perpassa torrões de terra de Goiás e Minas Gerais a Paraná e Santa Catarina, longe dos litorais e capitais, passando por cidadezinhas de São Paulo e Mato Grosso. Mudam-se as comidas e os sotaques, mas permanece uma certa modorra de verões gastos em pescarias à beira de rios e lagos, onde decisões familiares importantes são tomadas em churrascos em meio a perrengues sob a sombra de mangueiras.
Senti um reconhecimento desse ambiente cultural interiorano, tendo nascido nas terras caipiras de São Paulo, em contos como As Provisões do Tempo, sobre um dono envelhecido da mercearia de uma cidadezinha que se recusou a crescer; e Hey, Joe, sobre o neto matador de aluguel de uma família próspera de fazenda. Há ainda O Mesmo Rio, sobre a reunião dos membros de uma família na terra natal antes do retorno à capital.
Em sua escrita, está presente a mesma elegância e legibilidade de suas capas. Sim, há contos de “talhe clássico”, nos quais Bottini recusa epifanias construídas. Não há revelações repentinas, não há catástrofes surpreendentes. Não há estrela cadente, sem aviso: há a descoberta de que o cometa Halley passará em 14 anos. Tudo à espera, até o maravilhoso e extraordinário tem anúncio. Nada fora dos eixos, ainda que os eixos sejam tortos. A espera do próprio destino, igual ao do amigo velho, enquanto se observa o desenrolar das decepções da velhice. Há o luto lento em um conto tão bonito como Mundo Natural, no qual um homem, após viajar milhares de quilômetros da capital ao interior, onde enterrou o pai, e então de volta à sua casa, chega à descoberta do que é a dor da perda de forma gradual, como anestesia que perde o efeito lentamente, observando uma mariposa presa em sua cozinha.
Ainda que algumas de suas expressões possam parecer incomuns, seu vocabulário sempre parece adequado ao ambiente em que surgem para definir, nomear, e, num tom baixo, sem gritaria, louvar. A um leitor da cidade grande, talvez pareça estranho ler “coaxar” se há anos não vê um sapo. Se lê “brim”, dentro de seus jeans, sem jamais ter visto um daqueles velhos senhores em suas calças de brim. Para certos leitores, um lambari será sem dúvida coisa raríssima, e capim é só algo que se vê bordeando rodovias. Por que haveria de aparecer com frequência na literatura? Estamos preocupados com coisas maiores. Não, não vejo firulas nem fuzuê, tudo o que vejo é precisão.
Bottini parece-me um grande observador da alma humana, mas não cai jamais na tentação de criar situações inusitadas e fora do comum para desentranhar verdades escondidas sob as ilusões de si mesmos, que talvez pudessem enovelar suas personagens. Sua tática parece ser simplesmente a de olhar com calma, dar-lhes tempo para que se revelem. Encarar essas pessoas como se escondido atrás de uma cortina puída, deixando-as em seus ambientes naturais, para que no minuto em que mais se sintam protegidas dos olhos de todos, suas naturezas saltem à pele e a pipoquem, façam-se visíveis. E tudo isso no espaço exíguo do conto.
Sim, seus contos, tão poucos, fazem muito. Há os que possuem realmente o talhe clássico de que falou Terron. Teriam sido grandes textos entre os nossos modernistas e são grandes textos entre nós, hoje. Perenes. Mas que dizem muito de um mundo que persiste por trás das grandes notícias das grandes cidades, ainda que desapareçam cada vez mais, inundados por barragens para gerar eletricidade para as grandes notícias destas mesmas capitais. Histórias pequenas, mas grandes, de gente pequena, mas grande, perdidas na pequenez crônica do interior. Unem-se a contos que ficarão para sempre como clássicos em minha cabeça, como alguns de Mário de Andrade e Otto Lara Resende, para citar dois com os quais vejo afinidades estilísticas em Bottini.
Por fim vale dizer que, sob sua sutileza, há no livro contos que apontam sim caminhos novos e possíveis para a produção contemporânea, como aqueles exemplares Um Turno de Serviço, que retoma o episódio do Gólgota sob perspectivas bastante singulares, ou Material para um Conto, entremeando história e ficção. O Brasil tem certa obsessão por celebrar apenas os grandes autores de grandes obras, as que possam ocupar mil páginas ou cinco volumes em capa dura e papel-bíblia. Com isso, muitas vezes perde o prazer intenso de escritores discretos como Ettore Bottini, autor de um dos clássicos do século 21 neste Uns Contos. Tento contribuir aqui para que seus contos alcancem capitais e interiores.
Literatura desaparecida: 40 anos do Golpe Militar na Argentina
“Escribe mientras sea posible. Escribe cuando sea imposible. Ama el silencio.”
— Miguel Ángel Bustos, desaparecido em 1976
Há 40 anos, ocorria o Golpe Militar na Argentina, que deixaria ainda mais mortos e desaparecidos pelo continente latino-americano. No Brasil, estávamos no décimo-segundo ano da ditadura militar – aquela que alguns no país hoje ainda insistem em tratar com nostalgia. Aquelas imagens das Mães da Praça de Maio permanecem como alguns dos atos de coragem e desobediência civil exemplares em nosso continente.
Há alguns dias, descobri o trabalho do fotógrafo argentino Gustavo Germano. Em sua série “Ausencias”, com uma estratégia ético-estética simples e eficiente em seu soco na boca de nosso estômago, o fotógrafo refaz fotos de amigos e famílias dos anos 1960 e 70, deixando vago o local onde seus entes queridos desaparecidos deveriam estar, não tivessem sido sequestrados por um regime assassino.
Sendo este um blog dedicado à literatura, gostaria de tomar o dia de hoje, no entanto, para chamar a atenção dos leitores a um outo projeto bastante comovente em nosso país vizinho, capitaneado pelo poeta e jurista Julián Axat, nascido em Buenos Aires naquele fatídico ano de 1976. Ele próprio filho de desaparecidos, tem se dedicado com afinco em manter viva a memória das milhares de vítimas da Junta Militar argentina. Em sua coleção “Detectives Salvajes”, que toma o título do romance de Roberto Bolaño (1953-2003), Axat vem publicando a literatura deixada por escritores que desapareceram pelas valas comuns, desertos e o oceano que banha nossa parte do mundo-cão.
A ditadura tocou vários escritores do país, como o grande Juan Gelman, que passou anos em busca da neta. Em 1995, quase uma década antes de poder finalmente abraçá-la, escreveu uma carta que começava assim: “Dentro de seis meses cumplirás 19 años. Habrás nacido algún día de octubre de 1976 en un campo de concentración.” É a história de tantas famílias latino-americanas.
Graças aos esforços de Julián Axat, pude descobrir dois jovens escritores que desapareceram na noite escura do continente: Miguel Ángel Bustos, desaparecido em 1976, e Carlos Aiub, desaparecido em 1977, o ano em que nasci. Abro este pequeno texto em homenagem a todos os desaparecidos e sobreviventes do país vizinho com uma citação de Bustos. Permitam-me encerrá-lo com alguns versos de Aiub, sussurrando que sim, alguns de nós nos lembramos e, ao mesmo tempo, NUNCA MAIS.
“temer el dolor como cuando siempre
la forma del dolor y de la muerte empezás
también a imaginarla y temés
temés también tu olvido
o algo así
el qué pensarán de vos
si te recordarán
si tu nombre bautizará algo o servirá para algo
temer el final que no te deje ver el final
la victoria viste
las cosas nuevas que buscás
el nuevo sueño chiquitín continuado
temer todo eso y entonces si temer la muerte
que se puede venir y no la deseás
y te aferrás a la vida con todo
porque querés vivir simplemente para ver
cuando al final la vida viva
el nuevo dolor lo pensás más tarde.”
(Carlos Aiub, desaparecido em 1977)
Quando o Brasil for o que acredita que é
Este texto ia ter outro título e partir por outro caminho. Como dar conta das notícias absurdas que se empilham diante da porta, vindas do Brasil? Uma das saídas tem sido a comicidade, o riso. Afinal, uma das únicas fontes de notícias no país, hoje, que poderíamos chamar de imparcial é a publicação satírica O Sensacionalista. Quando foi publicado o texto do depoimento do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva à Polícia Federal durante sua condução coercitiva, com aqueles detalhes cômicos sobre café e misto-quente, o escritor Victor Heringer comentou que se um grupo de teatro decidisse encenar o texto, seria uma perfeita peça de Harold Pinter. O Nobel de 2005 trabalhava com o absurdo em sua dramaturgia, tendo seu estilo sido chamado de “Comedy of Menace”, algo como comédia da ameaça. Minha resposta a ele, no mesmo clima de absurdismo, era que após análise filológica me parecia mais provável que a autoria da peça fosse de Qorpo-Santo, o “louco” brasileiro do século 19 que já foi chamado tanto de precursor do Teatro do Absurdo como do surrealismo. O próprio Heringer comentou hoje: “Solidariedade aos confrades cronistas que estão com o Word aberto neste momento pensando ‘Não sei nem por onde começar’. Obrigado, Heringer. Nem sei por onde começar.
Uma das saídas para aqueles se sentem impotentes para além do comando dos próprios cérebros e bocas tem sido o humor. E no meio do caos de quarta-feira, 16.03, devo ter gargalhado algumas vezes, alto, com comentários da esquerda verdadeira no país. Não tenho contatos suficientes à direita para saber se têm o mesmo humor. Duvido. São melhores no batuque de panela. Mesmo o artigo sobre a situação do país no jornal alemão Die Zeit, do jornalista Thomas Fischermann, brincou com a trama da série norte-americana em meio à nossa crise política. Escrito no Rio de Janeiro, tenho certeza de que o jornalista alemão pegou a piada com brasileiros. No país das novelas, parecemos estar diante de outra, porém um tanto mais trágica e farsesca que o normal. E qual seria o horário mais apropriado para esta? Com certeza, após as 10 da noite. O poeta paulista Marco Catalão comentou: “A dramaturgia está sensacional, com reviravoltas a cada minuto. O problema é o preço do ingresso.”
Já o poeta carioca Italo Diblasi criou sua personagem fictícia Simão Sinésio em um dos melhores textos que li nesta bagunça toda, encerrando-o assim:
“E aqui nos encontramos, ao estágio do mito-brasil descrito por Simão em que as massas se dividem. Há quem consulte os relógios e os bancos; há quem consulte a bolsa de valores ou o próprio estômago. Há os que olham para a televisão, para o horizonte e para o céus. Há os que olham para o mar à espera do rei. Enquanto isso, Lula, cognominado ‘A Jararaca do rabo partido’, declara guerra e reúne as tropas. O baralho de ouros se agita e também estende as garras. Não faltam acusações e há farsas. Os acusadores bradam a aletheia, a verdade. A imprensa defende o seu naipe, e instiga: Bandido ou Herói? E também isso Simão Sinésio, o Bardo, o que perambulou pregando, já havia respondido: em matéria de Brasil, Os dois!” [Italo Diblasi, “Um Cordel Perdido ou O Mito-Brasil“, Modo de Usar & Co., 9-3.16]
Ao trazer Qorpo-Santo à baila, busquei textos seus, mas acabei descobrindo outro poeta no processo, o modernista gaúcho Tyrteu Rocha Vianna (1898-1963), autor de um único livro, Saco de viagem (1928), no qual encontrei os versos:
Trapo nem verde nem amarelo nem mais nada
Meu Pai respondente
Sentado me dizia
É o regime econômico vaca magra
Das tetudas economias invisíveis
Do dinheiro municipal calotíssimo
Desde Gregório de Matos, o primeiro grande poeta brasileiro lusófono, é a sátira que nos redime, talvez um pouquinho. E como permanecem atuais os textos de Gregório de Matos, de Sapateiro Silva, de Qorpo-Santo, de Luiz Gama, de Oswald de Andrade, de Tyrteu Rocha Vianna.
Mas chegou um momento quarta à noite, em meio ao circo televisionado pelo Jornal Nacional, em que precisei parar tudo e ouvir Pixinguinha. Para me lembrar de que o país poderia ser muito mais do que um mero circo de quinta categoria em chamas. Depois, li um poema de Manuel Bandeira. Olhei algumas pinturas de Tarsila do Amaral. Este país poderia ser tanto mais do que um picadeiro de palhaços furiosos. Eu só queria que o Brasil fosse como Pixinguinha, como Manuel Bandeira. Não é pedir demais. Eles já vieram e apontaram o caminho. Não estou pedindo Bach e Shakespeare. Só Pixinguinha e Bandeira.
É. Se alguém me perguntasse o que eu esperava do Brasil, o que eu gostaria que ele se tornasse, responderia simplesmente: que o Brasil se torne aquilo que acredita que já é. Que o Brasil se torne aquilo que me disseram que era, quando criança. Que conto de fadas lindo era aquele! Que fábula! Como é bonito o Brasil imaginário! Então, voltando ao texto de Italo Diblasi, digo: em matéria de Brasil, aquele outro!
Ave Maria, mulheres!
No Brasil, Maria Valéria Rezende desbanca machos famosos e recebe o Prêmio Jabuti por seu romance Quarentas dias (Rio de Janeiro: Alfaguara, 2015). A excelente Márcia Denser reúne seus textos jornalísticos no volume DesEstórias (Curitiba: Kotter Editorial, 2016). Poetas como Angélica Freitas e Ana Martins Marques seguem sendo os poetas lidos com maior paixão dentre os da minha geração, recebendo no ano passado a companhia da portuguesa quase brasileira Matilde Campilho. Os curadores da FLIP, famosos por ignorar o trabalho de mulheres, anunciam que Ana Cristina Cesar (1952-1983) será a homenageada em 2016, a segunda mulher a receber a honraria na história do evento, após Clarice Lispector em 2005. Não entraremos aqui na questão de Ana Cristina Cesar ter tido sua obra lançada recentemente pela Companhia das Letras como motivo. Influência de uma grande editora sobre as decisões do evento? Ao menos escolheram homenagear uma mulher, finalmente.
No âmbito anglófono, discute-se com fervor Clarice Lispector e a tradutora de seus Contos Completos, Katrina Dodson, recebe um prêmio importante da organização PEN. A tradutora americana de Angélica Freitas, Hilary Kaplan, concorria ao prêmio na categoria de poesia. Desde as suas primeiras traduções para o inglês, Hilda Hilst vem angariando seus fãs nos Estados Unidos, também. Em uma mesa redonda em 2014, cuja discussão pode ser lida na revista Music and Literature, tradutores e críticos discutem com paixão a obra da escritora nascida em Jaú e exilada na Casa do Sol, morta 10 anos antes. E tanto Clarice Lispector quanto Hilda Hilst são escritoras que contradizem o que o Norte espera da literatura do Sul. Stephanie Sauer diz na mesa redonda: “Tenho confiança de que o trabalho de Hilst, em especial, tem o poder de desafiar as noções de seu novo público (o norte-americano) do que é a escrita vinda do Brasil, de um Sul imaginado.”
Li ontem um artigo de Daniel Gigena no jornal argentino La Nación mencionando o maravilhoso trabalho de Veronica Stigger [“Mujeres que (se) escriben”, La Nación, 6.3.2016]. Na Espanha, Marília Garcia é traduzida. Na Alemanha, Érica Zíngano. Na França, durante o Salão do Livro de Paris, a imprensa quer saber é de Conceição Evaristo. Em Portugal, nossos conlíngues vão lendo Nina Rizzi, Carla Diacov, Adelaide Ivánova. Do pó de sebos, do escuro de gavetas, da miopia crítica de universidades e jornais, vão ressurgindo as obras de Patrícia Galvão, Henriqueta Lisboa, Maura Lopes Cançado, Carolina Maria de Jesus, Stela do Patrocínio, Hilda Machado, graças aos esforços de uns loucos apaixonados.
Como falar sobre a Literatura Brasileira Contemporânea sem mencionar prosadoras como Zulmira Ribeiro Tavares e Ana Maria Gonçalves? Poetas como Elisabeth Veiga e Lu Menezes? Os trabalhos cruzando fronteiras entre gêneros, como os de Laura Erber, Fabiana Faleiros e Luísa Nóbrega? Não há poeta de minha geração de quem eu espere textos com mais avidez do que Juliana Krapp. São estes alguns dos nomes que comandam minha atenção quando penso na produção literária do país.
Já se foram os dias em que o país se espantava com a obra de uma mulher como Francisca Júlia e insinuava nos jornais que aquilo não poderia ter sido escrito por uma mulher, que só podia ser coisa de homem, era bom demais. Francisca Júlia casou-se, calou-se, e jamais saberemos os motivos. Suicidou-se em 1920 e Deus sabe o que se fez de seus papeis, se os havia. Cecília Meireles segue sendo nossa poeta mais famosa, ao menos o era enquanto eu crescia, ainda que sua obra não seja tão mencionada nos dias de hoje. Mas a concretude e música áspera de seus melhores poemas ainda estão entre nossas melhores tentativas de redenção neste país de assassinos.
Desenho
Cecília Meireles
Pescador tão entretido
numa pedra ao sol,
esperando o peixe ferido
pelo teu anzol,
há um fio do céu descido
sobre o teu coração:
de longe estás sendo ferido
por outra mão.
Quantos escritores brasileiros se arriscaram mais do que Clarice Lispector em A Maçã no Escuro (1951)? Do que Hilda Hilst em Qadós (1973)? Neste Dia Internacional, celebro estas mulheres que têm me ensinado a pensar sem que me esquecer que o pensamento apenas pode ocorrer em um corpo. As matriarcas mortas e, principalmente, as guerreiras vivas. As de agora. Aquelas com quem compartilho oxigênio, cidadania, e nossa falta de oxigênio e falta de cidadania. Obrigado, Maria Valéria Rezende e Ana Maria Gonçalves. Zulmira Ribeiro Tavares e Lygia Fagundes Telles. Márcia Denser e Miriam Alves. Conceição Evaristo e Veronica Stigger. Lu Menezes e Elisabeth Veiga. Marília Garcia e Érica Zíngano. Angélica Freitas e Luísa Nóbrega. Obrigado.
atributos
Juliana Krapp
Gostaria de ser uma mulher
que soubesse identificar um brocado
uma cerzidura um carmesim um
adorno
em matelassê
No comércio
a palavra aviamentos me lembra
de que há todo um reino de malícias
que desconheço
– penso
não em ilhós
mas em aves aquáticas
artefatos explosivos
Gostaria
de poder dizer: vamos desenlaçar
o cordão do meu quimono vamos
providenciar castanhas doces
para o grande banquete
e nos deitar sob o dossel à espreita
das comissuras
que ardem na pele
Porém
eu estou atada
ao mundo da sonolência
e das cintilações breves
da louça quebradiça e da mixórdia
– ao lugar
das mulheres e bichos
que se espatifam n’água
Tradutora de Clarice Lispector recebe o Prêmio PEN de Tradução 2016
Foi anunciado nesta terça-feira (01/03) que a tradutora dos contos completos de Clarice Lispector para o inglês, Katrina Dodson, é a ganhadora do Prêmio PEN de Tradução 2016. The Complete Stories foi o volume lançado nos Estados Unidos pela New Directions e, no Reino Unido, pela Penguin, na coleção Modern Classics. A decisão foi unânime, disseram os jurados. Os outros concorrentes incluíam tradutores dos russos Fiódor Dostoiévski e Vladímir Sorókin, do búlgaro Georgi Gospodinov e da italiana Viola Di Grado.
O anúncio coroa um ano em que a autora brasileira esteve entre os escritores estrangeiros mais discutidos no âmbito da língua inglesa. O volume de contos recebeu resenhas de Los Angeles a Sydney, foi capa do New York Times, e trouxe Dodson a um time de tradutores que, capitaneado por Benjamin Moser (tradutor de A Hora da Estrela), incluía já Idra Novey (A Paixão segundo GH), Alison Entrekin (Perto do Coração Selvagem) Stefan Tobler (Água Viva) e Johnny Lorenz (Um Sopro de Vida). Talvez já se possa dizer que Clarice Lispector é hoje a escritora brasileira mais conhecida pelo público mundial, em posição que já foi ocupada de forma respeitável por Jorge Amado e, menos respeitável, a meu ver, por Paulo Coelho.
Na categoria para traduções de poesia, evidenciando um período em que a literatura brasileira vem experimentando repercussão nos Estados Unidos como há algum tempo não se via, concorria ainda Hilary Kaplan, tradutora do volume de estreia de Angélica Freitas no Brasil, Rilke shake, tradução lançada no país pela Phoneme Books. O prêmio foi dado a Sawako Nakayasu, tradutora dos poemas reunidos da modernista japonesa Chika Sagawa (1911-1935).
Em língua inglesa, o público recebeu nos últimos anos, por mãos da Penguin, novas traduções para livros de Jorge Amado (como a primeira tradução para o inglês, de Gregory Rabassa, para A Descoberta da América pelos Turcos), de Lima Barreto e Euclides da Cunha.
Nos Estados Unidos, de forma mais discreta, Hilda Hilst vem angariando também seus admiradores internacionais. Esta repercussão se deve, em primeiro lugar, aos esforços de tradutores apaixonados que encamparam batalhas para divulgar os autores brasileiros que respeitam em seus respectivos países, como é o caso também de Paula Abramo no México, Aníbal Cristobo na Espanha, Cristian De Nápoli e Florencia Garramuño na Argentina.
Na Alemanha, alguns tradutores que vêm se dedicando à literatura brasileira incluem Berthold Zilly, Odile Kennel, Maria Hummitzsch, Luis Ruby e Michael Kegler. Acaba de ser lançada pela editora alemã Schöffling & Co. a tradução de Luis Ruby para A Hora da Estrela, com o título Der große Augenblick.
E assim Clarice Lispector vai se tornando livro de cabeceira não apenas de lusófonos. É capaz agora de perturbar também o sono de estrangeiros.
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