O desacordo ortográfico
Sobre língua não se legisla. Quando isso ocorre, é sempre um ato de cima para baixo, ordens do topo da pirâmide para o povo na areia escaldante, e ocorre com frequência num contexto de dominação e incompreensão das diferenças que enriquecem nossa fala.
Um dos primeiros atos dessa natureza no Brasil foi o do Marquês de Pombal, que baniu em 1758 a língua geral paulista, derivada do tupi e que se falava em São Paulo, por exemplo, tornando a língua portuguesa obrigatória na colônia. O nheengatu é a única das línguas crioulas que sobreviveu, sendo falada ainda hoje no norte do país.
Não, este não é um texto de um Policarpo Quaresma, que gostaria de ver o tupi como língua oficial do país. Eu certamente teria gostado muito de ter crescido bilíngue, falando o português e o tupi ou uma das línguas crioulas derivadas deste, como a língua geral paulista ou o nheengatu. Como teria sido nossa relação com a terra e com os povos nativos que nos formaram se isso tivesse ocorrido? Talvez a pergunta de Oswald de Andrade siga válida: “Tupy or not tupy, that is the question.”
Estou certo de que muitos gostam de pensar que não há outros escritores que amem a língua portuguesa tanto quanto ele ou ela. Eu tenho um prazer imenso em falá-la. Quando faço leituras públicas dos meus textos, algumas pessoas já disseram que elas estranham a forma como leio, por articular demais as sílabas. Eu articulo mesmo. Gosto de cada som, de ir do alto ao baixo na língua – tanto neste conjunto de signos como com o órgão que escondo entre os dentes.
Na linda canção Língua, Caetano Veloso o diz bem: “Gosto de sentir a minha língua roçar a língua de Luís de Camões / Gosto de ser e de estar / E quero me dedicar a criar confusões de prosódia / E uma profusão de paródias / Que encurtem dores / E furtem cores como camaleões / Gosto do Pessoa na pessoa / Da rosa no Rosa / E sei que a poesia está para a prosa / Assim como o amor está para a amizade / E quem há de negar que esta lhe é superior? / E deixe os Portugais morrerem à míngua /’Minha pátria é minha língua’ / Fala, Mangueira! Fala!”
A relação do brasileiro com a língua portuguesa me parece bastante única dentro do contexto pós-colonial. Não sei como é isso em países como Angola e Moçambique, onde as guerras de independência ainda estão frescas na memória. Queria ouvir todos. Sim. Fala, Mangueira. Fala, Mooca. Mas falem conosco também, Alfama e Baixa. Falem conosco, Kikolo e Panguila. Precisamos de todos.
Meu primeiro contato com acordos ortográficos foi em volumes antigos de poetas como Carlos Drummond de Andrade e Cecília Meireles – aquelas primeiras edições da Nova Aguilar de suas obras completas, em capa dura e papel-bíblia. Aquelas “flôres” e “fôrmas”, “seqüências” e “ungüentos”, assim mesmo, com tils e tremas. Lembro-me de, ainda criança, ter perguntado a um adulto, já não me lembro quem, por que não tínhamos K, Y e W na língua portuguesa. A explicação me pareceu bastante plausível: porque o C, o I e o V já cumpriam as mesmas funções fonográficas e não tínhamos um som específico para aquelas.
Precisamos realmente de outro acordo ortográfico, e os motivos para esse novo acordo são plausíveis? Algum leitor brasileiro algum dia teve problemas ao ler edições portuguesas de poetas como Fernando Pessoa e Mário Cesariny? E o que fazer com os poemas de Mário de Andrade, por exemplo? Pessoalmente, não acho que o acordo seja uma tragédia. Mas temo os problemas maiores neste campo mesmo da escrita, onde ainda há tanto racismo, ignorância e mentalidade colonialista. Parece-me simplesmente um desperdício de energia e recursos, uma demonstração de incompreensão da língua justamente por aqueles que querem legislar sobre ela.
Uma ortografia unificada não vai mudar nossas diferenças sintáticas e nossos vocabulários cheios de marcadores históricos – lembretes de quanto sangue e quanto sofrimento esta língua linda custou às colônias. E ainda assim a amamos. E quanto. Cheguei a ler que acreditam que este acordo unificando as línguas trará mais prestígio internacional a ela. Quanta baboseira, vendo a maneira como tratam a literatura em nossos países. Prestígio à língua portuguesa traz a reputação internacional de Fernando Pessoa. A febre que os livros de Clarice Lispector estão causando no mundo anglófono – mundo que, por sinal, não tem um acordo ortográfico unificando-o.
A briga sobre o mais recente acordo ortográfico vai continuar e, infelizmente, em muitos casos pelos piores motivos. Li textos a respeito que apenas pingavam de racismo velado e aquela velharia da mentalidade colonialista. Não precisamos de puristas, e vejo purismo por vezes tanto nos que defendem e atacam o novo acordo. Portugueses vão continuar não lendo brasileiros, brasileiros vão continuar não lendo moçambicanos, e assim por diante. Acreditar que um acordo ortográfico vá mudar isso ou que seja realmente um primeiro passo necessário mostra que continuamos sendo regidos por bacharéis.
Porque acordo ortográfico nenhum vai ajudar um leitor brasileiro a entender o que um poeta angolano quer dizer com “mulemba” ou um leitor português a entender o que um poeta brasileiro quer dizer com “macambira”, assim como eu próprio levei tempo para descobrir o que eram “osgas” nos poemas de Adília Lopes, e, ao descobrir, enriqueci minha lusofonia. Entretanto, é necessário ter acesso à língua comum, mas diferente.
Estes dias peguei-me perguntando o que Elomar Figueira Mello quer dizer com “futuca a tuia” em uma de suas canções. E que tristeza é abrir uma edição recente de Mensagem, de Fernando Pessoa, e ver que corrigiram sua ortografia propositalmente antiga! Enlouqueceram, bacharéis? Que baixaria. Vão querer me corrigir ao pedir “a bença” para a minha vó morta? Precisamos deixar de ignorãça, meu povo. Cadê, quedê ou onde é o encontro anual entre escritores lusófonos? Um ano em Lisboa, outro em Luanda, depois em Maputo, e no Rio de Janeiro, passando por Bissau e aquela capital de lindo nome, Praia.
Os esforços não seriam muito mais válidos para nos unir? Por que a tal comunidade não começa a publicar e distribuir gratuitamente volumes de poetas de cada país lusófono em cada um dos países lusófonos? Ou é tudo apenas para ajudar editoras a vender seus xaropes? Ora, sem saber o que exatamente quero dizer, mas confiando no poeta, conclamo os falantes da língua portuguesa: “futuca a tuia, pega o catadô, vâmu plantá feijão no pó.”
Natal e o suicídio de Raul Pompeia
Neste 25 de dezembro, o Brasil estava ocupado, como todo ano, em enfeitar árvores de plástico e gastar energia elétrica com iluminações que fingem ser neve. Em shoppings, homens suavam sob a fantasia de um Papai Noel ártico sob o sol dos trópicos, como um pinguim perdido em Ipanema. Famílias e amigos estavam reunidos, e é natural que qualquer outro aniversário além deste do Cristo passasse despercebido. Pois, naquele dia, completavam-se também 120 anos do suicídio de Raul Pompeia no Rio de Janeiro, com sua mãe presenciando a cena. É difícil não ver a escolha da data como simbólica, um suicídio no Natal.
“Talvez seja amolecimento cerebral, pois que Raul Pompeia masturba-se, e gosta de, altas horas da noite, numa cama fresca, à meia luz de veilleuse mortiça, recordar, amoroso e sensual, todas as beldades que viu durante o seu dia, contando em seguida as tábuas do teto onde elas vaporosamente valsam.” São palavras de Olavo Bilac, em artigo de 1892, no jornal O Combate. Não se trata exatamente de um momento alto no debate intelectual brasileiro.
A polêmica entre os dois escritores centrava-se na figura do presidente Floriano Peixoto, o “marechal de ferro”, que começava a reprimir de forma violenta as forças opositoras a seu Governo. Uma delas foi a Revolta da Armada, que tivera início já em março de 1892, quando treze generais enviaram uma carta-manifesto a Peixoto, que exercia então o cargo de Presidente da República após a renúncia de Deodoro da Fonseca, na qual exigiam a convocação de novas eleições presidenciais. Pela Constituição de 1891, estavam previstas novas eleições caso o presidente eleito desocupasse o cargo antes da metade do mandato, mas Floriano Peixoto, alegando que a primeira eleição após o Governo Provisório não fora direta, prendeu os generais e os desterrou para a região amazônica, como faria com outros opositores.
Raul Pompeia, republicano convicto, ligado aos líderes abolicionistas, com vários momentos que nos levam a admirar sua biografia, mostrava-se um dos mais ferrenhos defensores do ferrenho marechal, vendo em Peixoto o epíteto de Consolidador da República que ainda lhe é atribuído. Lembramos que o quase fanatismo dos florianistas seria satirizado por Lima Barreto em Triste Fim de Policarpo Quaresma, publicado como folhetim ao longo de 1911, assim como também saiu em folhetim ao longo de 1888 a obra-prima de Raul Pompeia, O Ateneu, ainda em tempos monárquicos.
Eu tenho uma grande admiração pela geração de intelectuais brasileiros das duas últimas décadas do século 19. Trata-se de um período fulcral para a cultura do país, no qual alguns dos nossos melhores escritores se mostravam críticos mordazes das contradições tanto do Império como da infante República, nascida de um golpe de Estado e sem base popular. Em um ensaio intitulado “Elogio dos modernos em oposição aos modernistas”, escrevi que, comparados “com esta geração das duas últimas décadas do século XIX, a ânsia celebratória do Grupo de 22 me parece por vezes incrivelmente infantil. Seria importante comparar as atitudes críticas perante o País, que chegam às tentativas de criação de mitos fundadores, mesmo que críticos, em Macunaíma e Cobra Norato, vinda dos relatos findadores que são Os Sertões, Esaú e Jacó e O Ateneu. Pois, enquanto o Grupo de 22 por vezes se entregava a celebrar, esta geração anterior atacava muito mais impiedosamente. Contra os mitos de fundação (impulso épico) dos Modernistas, nossos Modernos, em seu impulso antiépico, davam-nos seus relatos de findação, ou, como gosto de chamar os textos de Luiz Gama, Qorpo-Santo, Sapateiro Silva, Machado de Assis, Raul Pompeia, Sousândrade e Cruz e Sousa: não mitos da fundação, mas crônicas do afundanço.”
Raul Pompeia não ocupa em nosso imaginário uma posição particularmente alta, nem pode-se dizer que tenha a mesma importância de um gênio como Machado de Assis. Lido em geral quando somos bastante jovens, ainda na escola ou em período de vestibular, não é um escritor que revisitamos ao longo da vida como o próprio Machado ou Lima Barreto. Seu único livro importante é mesmo O Ateneu, e a qualidade de seu estilo não é unanimidade. Chamado às vezes de “impressionista”, com uma escrita que pode parecer camp (se me permitem o anacronismo) a outros, não está entre nossos “escritores magros”, como diria José Lins do Rego, os da elegância minimalista. Sua escrita é violenta, exuberante, como nos trabalhos de Lúcio Cardoso e Roberto Piva. A escolha de mencionar estes autores não é acidental.
Eu ainda me lembro quando, adolescente, li num manual de História da Literatura Brasileira sobre a suposta homossexualidade de Raul Pompeia. Aquilo imediatamente o marcou como um heroi em meu romantismo juvenil, mesmo que eu hoje saiba que não se pode afirmar com qualquer certeza qual a sexualidade do autor, e que o manual escolar seguira as fofocas da época, caracterizando-o ainda como “hipersensível, um homem com nervos à flor da pele.” Há aí, eu diria, ainda hoje um ataque e condenação, mesmo que velados, uma forma de desrespeito que segue ainda entre nós.
Se há em sua linguagem por vezes algo que denuncia a época, e que poderia ser chamado de “datado” especialmente quando pensamos na atualidade da escrita de Machado de Assis, jamais esqueci a violência de certas passagens memoráveis de O Ateneu, e a presciência do autor em trazer a sexualidade humana para o centro da sua crítica política e cultural, as repressões e violências latentes, mais de uma década antes de Sigmund Freud tomar o mundo de assalto com A Interpretação dos Sonhos (1901). Há algo em Raul Pompeia que sempre me pareceu ligá-lo neste aspecto ao austríaco Arthur Schnitzler, seu contemporâneo exato, ainda que este tenha vivido muito mais e tenha tido tempo para polir sua forma.
A cena do banho, em que um estudante quer se vingar dos outros com cacos de vidro na piscina, naquela ameaça de banho de hormônios e sangue, ou a violência de fim de mundo com que o escritor termina sua alegoria do Império, indo aos ares em chamas, me impressionou muito quando li o romance. Suicidando-se aos 32 anos de idade, com um tiro no peito em pleno natal carioca de 1895, Pompeia entra para o rol de escritores brasileiros que nos deixaram um obra pequena, mas que ainda podem suscitar discussões entre nós. Falar sobre o que teriam feito se tivessem vivido mais é pura conjectura. Pessoalmente, com O Ateneu, Raul Pompeia ainda permanece em meu imaginário, como parte de uma certa linhagem intelectual brasileira, a dos intransigentes e inconformados, violentos em sua negação das hipocrisias do país. Machado de Assis e Clarice Lispector, também violentos, escolheram caminhos muito mais sutis, seria possível argumentar.
Ainda que Décio Pignatari tenha escrito que alguém precisava ser medula e osso na geleia geral brasileira, escritores como Machado, Clarice, Lima Barreto ou Graciliano Ramos, para citar alguns, vinham cumprindo já esta função, à qual se uniram, com certeza, o próprio Décio Pignatari e Augusto de Campos. Mas quando penso no estilo exuberantemente violento de homens e mulheres como o Sousândrade de “O Inferno de Wall Street”, o Euclides da Cunha de Os Sertões, o Lúcio Cardoso de Crônica da Casa Assassinada, a Hilda Hilst de Qadós, ou o Roberto Piva de Piazzas, com, é claro, o incendiário Raul Pompeia de O Ateneu, pergunto-me que papel quiseram cumprir na geleia geral brasileira. Intuo que o de lança-chamas. Sinto-me em casa com eles.
Medo dessa gente
Neste fim de semana, pessoas tomaram as ruas para pedir a impugnação de Dilma Rousseff. Outra vez. É seu direito em uma democracia, com uma Constituição que defende a democracia direta através de protestos. O movimento foi um fracasso, com muito menos gente do que os organizadores esperavam. É claro, também, que são as mesmas pessoas que esperam que a polícia militar, herança do Regime que muitos deles defenderam e defendem, desça o cassetete sobre os protestos contrários a suas ideias.
Dialogar com eles seria difícil, se não impossível. Tentar argumentar que o processo não tem base jurídica, como vários juristas apontaram nas últimas semanas, e que há a contradição de apoiarem um processo encampado por Eduardo Cunha, ele próprio acusado de fraudes e corrupção, contra o qual há provas abundantes enquanto nada há contra a presidente eleita (que eu não apoio), seria um desperdício. Há entre eles um número considerável de gente que nunca quis Dilma Rousseff ou o PT no poder. A impugnação deste mandato é sua última carta na manga para reverter o resultado das eleições de 2014, que não aceitam.
Esta nova fase da operação Lava Jato, com a Catilinária, que levou a cabo seu mandado de busca e apreensão nas residências do deputado Eduardo Cunha, talvez aponte para a saída da fase partidária das investigações e traga revelações da sujeira toda e completa. Todos os culpados, não importa qual o partido, se situação ou oposição, precisam ser julgados. O nome da operação refere-se aos discursos de Cícero contra Catilina. O primeiro deles foi recitado no Templo de Júpiter em 8 de Novembro de 63 a.C., para onde havia sido convocado o Senado de Roma. A ocasião fora a conspiração contra o Senado dirigida por Lúcio Sérgio Catilina, candidato vencido ao cargo de cônsul nas eleições de Julho de 64 a.C. assim como nas do ano anterior. Chefe da conspiração, tinha conseguido até aí não ser incriminado. Tudo isso soa familiar? Não deixa de surpreender o humor da Polícia Federal. Quem será nosso Catilina? Qual seu candidato preferido a Catilina dos Bruzundangas? O discurso de Cícero começa assim:
“Até quando, ó Catilina, abusarás da nossa paciência? Por quanto tempo ainda há-de zombar de nós essa tua loucura? A que extremos se há-de precipitar a tua audácia sem freio? Nem a guarda do Palatino, nem a ronda nocturna da cidade, nem os temores do povo, nem a afluência de todos os homens de bem, nem este local tão bem protegido para a reunião do Senado, nem o olhar e o aspecto destes senadores, nada disto conseguiu perturbar-te? Não sentes que os teus planos estão à vista de todos? Não vês que a tua conspiração a têm já dominada todos estes que a conhecem? Quem, de entre nós, pensas tu que ignora o que fizeste na noite passada e na precedente, em que local estiveste, a quem convocaste, que deliberações foram as tuas?” (tradução de Pe. Antonio Joaquim, Orações principaes de M. T. Cicero, 3 vols., Lisboa, Regia Off. Typ., 1779-1780).
Em meio a isso tudo, assisto a vídeos das manifestações no Rio de Janeiro, nas quais um grupo de jovens negros que fazia sua celebração anual do esporte de longboard é escurraçado da praia por dar medo na gente branca de bem que lá protestava. Em outro vídeo, que me causou náusea, um menino negro é atacado por senhoras e senhores brancos de bem, que o acusavam de roubo. Já nas mãos da Polícia Civil (o que deveria bastar), vemos senhoras e senhores brancos de bem tentando agarrar o menino pelos cabelos, tentando dar socos em sua cabeça. Dando socos em sua cabeça. Enquanto isso, gritavam com ódio. Uma moça bem vestida, certamente diplomada, que pode entrar em qualquer restaurante, dizia que o menino devia ser metralhado, devia levar um tiro na cabeça. Incitação à violência clara. A polícia deveria ter dado voz de prisão a ela imediatamente. A gente branca de bem gritava: cadê os direitos humanos? É. Cadê os direitos humanos?
Eu tenho medo é dessa gente branca de bem – bem pensante, bem vestida – que se acha no direito de dar socos na cabeça de um menino de não mais de 12 anos, em plena praia, gritando “tem que metralhar! nesses tem que dar é tiro na cabeça!”, os diplominhas chacoalhando de seus pescoços, as carteirinhas de clube de campo feito penduricalhos em seus lóbulos, enquanto bradam pela decência na República. O ódio em seus olhos. Eu tenho medo é dessa gente.
Alguns amigos disseram que não se deveria temê-los. Mas eu temo. Como escreveu Ricardo Aleixo, conheço essa gente “pelo cheiro, // pelas roupas, / pelos carros, // pelos aneis e, / é claro, // por seu amor / ao dinheiro”. Olho para a História do país e vejo do que esta gente já foi capaz, do que esta gente ainda é capaz. É a gente branca de bem que saiu às ruas pela Tradição, Família e Propriedade, que foi a base popular do Regime Militar. Que ama a herança da ditadura, o fato de que a sociedade civil brasileira ainda é policiada por militares.
Muitos têm se referido ao “ovo da serpente” por certos acontecimentos na República, mas falar em ovo é enganador, pois leva a crer que a serpente não chocou, que não quebrou ainda as paredes brancas do ovo. Pois a serpente está entre nós, sempre esteve entre nós, enrola-se entre nossas pernas. Há séculos? Há décadas? Os fascistas brasileiros, que certamente não são todos que estavam ali naquela praia carioca, mais estão para um urso, um urso ainda que sarnento, um urso que hiberna e acorda a intervalos regulares, sempre que estamos prestes a chegar à primavera.
Esse medo, com náusea, é o que deve nos manter alertas, é o que deve nos lembrar que esta gente não se subestima. Subestimar do que é capaz esta gente é um erro. Chegou a hora dessa gente bronzeada mostrar seu valor? Diante dos últimos acontecimentos, preferiria que não.
Sobre o “movimento”, encerro com um poema de Paulo Colina (1950-1999).
Algum Conceito de Movimento
Paulo Colina
A troca rápida e precisa de máscaras
atendendo a situação da cena,
não é, companheiro, um movimento.
A impulsão nos braços fraternos
para um salto vertical, em busca do poder ao nada,
menos é, companheiro, um movimento.
O sibilar da língua bifurcada da serpente,
prefaciando uma canção dolorida e amarga,
tampouco é, meu irmão, um movimento.
A demolição das casas da mente,
antes que se trabalhe a massa e o concreto,
muito menos é, companheiro, um movimento.
Ao que me consta, meu irmão,
movimento é:
logo ao primeiro encontro,
ao primeiro aperto de mão,
um sorrir sorrindo claro e aberto
com todos os dentes dos dedos
e do peito;
um mergulhar nessa angústia
que te disseca
e sairmos prenhes da mais pura
esperança, aos tropeços, pela cidade;
os soluços calmos do suicídio
no vórtice em fogo
entre as raízes das coxas
da mulher que te completa;
a liberdade do pensamento aflito
de esquadrinhar todos, mas todos todos
os quadrantes do firmamento.
Por isso, mano velho, companheiro em luta,
continuo ao passo do meu coração armado.
Notícias da República
Ano de Nossa Senhora da Catástrofe 515
Conversando com a fotógrafa e escritora brasileira Adelaide Ivánova em minha cozinha, falávamos sobre o massacre incessante dos cidadãos negros da República. Tantos meninos. A foto daquele pai negro chorando. O massacre de índios, mulheres, homossexuais. Falamos do número de tiros contra aqueles cinco garotos desarmados. 111. Cento e onze tiros. Quando disse o número em voz alta, percebi o que não havia percebido antes ao ler o número: é o mesmo número de mortos do Carandiru. Pensei: a simetria do terror no Brasil.
Quando passavam imagens do Carandiru ou de outro presídio na televisão, minha mãe sempre repetia a mesma frase: “Isso aí é lugar onde filho chora e mãe não ouve”. A imagem daquele pai negro em pranto, pai negro de um menino negro morto com 111 tiros enquanto celebrava seu primeiro salário. O Brasil é o lugar onde mãe chora e filho não ouve mais. Fui para a cama com este número na cabeça.
1 mais 1 mais 1.
Não.
1 menos 1 menos 1.
Como naquela passagem de Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, na qual a personagem principal imaginava:
“… um velho diabo, sentado entre dous sacos, o da vida e o da morte, a tirar as moedas da vida para dá-las à morte, e a contá-las assim:
— Outra de menos…
— Outra de menos…
— Outra de menos…
— Outra de menos…”
Este velho diabo será muito mais nosso Estado, que jamais se descolonizou em suas estruturas e ideologias, apenas trocou o passaporte do gerente da máquina de moer gente. O velho diabo não conta moedas, senta-se entre dous sacos, o da vida e o da morte, a tirar negros, índios, mulheres e homossexuais da vida para dá-los à morte, e a contá-los assim:
— Outro de menos…
— Outro de menos…
— Outro de menos…
— Outro de menos…
Enquanto isso, as atenções de todos – em meio a uma catástrofe ambiental em Minas Gerais e a tragédia anunciada de Belo Monte, em meio ao fuzilamento de jovens negros e vídeos da Polícia Militar abordando cidadãos negros nas ruas com uma arrogância e violência que cidadão branco nenhum admitiria se as experimentasse – é distraída pelo baixo clero do Legislativo, que coordena sua conspiração contra a Presidente em total irresponsabilidade e desrespeito à Constituição. Não há dúvidas de que estes senhores não perdem um único episódio da série americana House of Cards, na qual um membro inescrupuloso do baixo clero do Congresso norte-americano conspira para chegar à presidência.
E, no entanto, como é difícil defender um governo que demonstrou tanto desespeito à Constituição em se tratando dos direitos dos povos indígenas. Mas quem, entre estas pessoas pedindo a impunação de Dilma Rousseff, está se lixando ao menos um tiquinho para os direitos dos povos indígenas? A maioria quer apenas reverter o resultado das urnas, e, tendo a vitória da atual presidente sido tão apertada, qual a dificuldade real de usar a insatisfação difusa da população para reverter o processo?
Michel Temer, vice-presidente, eminência parda e poeta medíocre, escreveu uma carta a Rousseff acusando-a de jamais ter confiado nele ou no PMDB. Quem, em sã consciência, confiaria no PMDB?
Ah! Um poema! Um poema de Michel Temer! Diz-nos tanto!
Embarque
Michel Temer
Embarquei na tua nau
Sem rumo. Eu e tu.
Tu, porque não sabias
Para onde querias ir.
Eu, porque já tomei muitos rumos
Sem chegar a lugar nenhum.
Foi extraído de seu livrinho, cujo título vem também a calhar neste momento de cartinhas: Anônima Intimidade [Topbooks, 2012]. Oh! Atente, ó leitor, para a maneira como o vice-presidente do confiável PMDB usa o adjetivo antes do substantivo, assim, como quem diz, “caso você não tenha percebido, isso aqui é poético”.
O deputado federal Jean Wyllys analisou bem a “carta”, toda ela em estilo de bombástico comunicado de imprensa: “O vice-presidente, um velho operador político do PMDB que estes anos todos foi muito bem pago pelo poder público para atuar como garantia da coligação desse partido com o PT (coligação cujo custo o PT está pagando), acha que ninguém vai perceber que, se o problema dele fosse a ‘desconfiança’ da chefe Dilma com relação a ele e ao PMDB, seu partido, ele deveria ter enviado essa carta há uns bons anos, né não? Ela está chegando muito atrasada porque tem, na verdade, outro objetivo: deixar bem claro que Temer está disposto a assumir a Presidência. É uma mensagem para a bancada do PMDB no Congresso, para a oposição de direita que poderia compor um governo de transição com ele, para os jornais, para os mercados e, talvez, para o próprio PT, que entenderá que o preço para evitar tudo isso será caro, muito mais caro ainda do que foi, até agora, a ‘lealdade’ dos seus supostos aliados”.
§
A notícia do fechamento da Cosac Naify segue gerando reações, paralelos com a economia e assim por diante. Peguei-me pensando estes dias em duas editoras que jamais descuidam do trabalho gráfico, editando belos, importantes e premiados livros: o Selo Demônio Negro e a Editora Autêntica. Vanderley Mendonça, que está à frente do Demônio Negro, postou há pouco este desabafo nas redes sociais:
“Muitas pessoas têm nos perguntado por que não encontram os livros dos selos que editamos em livrarias pelo país. A resposta é simples: porque as livrarias não nos pagam! Sim, temos que ficar cobrando! E as que pagam, quando pagam, é em 90 dias. Para uma microeditora isso é um custo muito maior que o sacrifício de editar poesia e boa prosa. Nos três últimos anos, tivemos três vencedores do Prêmio Jabuti consecutivamente, nas categorias Poesia e Contos, além de outros autores finalistas. Também tivemos um livro vencedor do prêmio Fundação Biblioteca Nacional 2015 (Sem vista para o mar, de Caroline Rodrigues). Juntamente, outras microeditoras também ganharam prêmios em diversas categorias. Tal reconhecimento, além de dar visibilidade aos autores que editamos, tem levado pessoas e livrarias a procurar cada vez mais nossos livros. Porém, os problemas com a distribuição continuam, isto é, os calotes das livrarias.” [trecho de “Carta aos Leitores dos Selos Demônio Negro e Edith”, do editor Vanderley Mendonça]
Depois não adianta reclamar que editora fecha.
Vamos encerrar com uma boa notícia e uma sugestão importante às editoras do país. A editora Hedra acaba de anunciar o lançamento de outra edição dos poemas completos de Orides Fontela. E que bela capa! Tenho a edição da coleção Claro Enigma e da Cosac Naify. Vou querer ter esta também. Este fim de semana mesmo carreguei uma delas para a mata, em retiro de escrita, lendo enquanto caçava pássaros no ar. Já escrevi com admiração sobre seus pequenos cubos de energia concentrada, que explodem em luz se os lê com atenção de pássaro pousado. Em meu artiguinho na Modo de Usar & Co., digo: “Seus poemas têm, em minha opinião, apesar da superfície polida de cristal, uma violência sem muitos paralelos na poesia do pós-guerra no Brasil. O mesmo tormento possa talvez ser sentido na prosa e poesia de Hilda Hilst, mas nesta outra mística a solução era o escárnio e a exuberância do dilúvio, enquanto em Orides Fontela o desértico, daquele que jamais possuiu coisa alguma, era preferível”. [“Orides Fontela”, Modo de Usar & Co., 15.04.2008]
Mas preciso reagir ao anúncio da Hedra: o que significa dizer que “Orides Fontela se revelaria a poeta mais importante de sua geração — que reúne nomes como Hilda Hilst, Adélia Prado, Roberto Piva e Paulo Leminski”? Entendemos o que é linguagem de “comunicado de imprensa” (Michel Temer deu-nos outro bom exemplo), mas quem edita poesia deveria ter mais cuidado com estas coisas. Hilst, Piva, Fróes, Torquato… aquela foi uma geração extremamente plural e importante. Não ajuda a batalha espalhar este tipo de bravata. É muito bonito, sim, ver as obras destes poetas todos começando a ser reunidas em volumes únicos. Ajuda-nos muito. Por fim, e talvez ainda em tempo, como pergunta e desafio às editoras Hedra, e Editora 34, e Editora 7Letras, e Companhia Das Letras, entre outras: quem vai reunir em livro as obras poéticas de Adão Ventura e Paulo Colina? Está na hora. Ainda é hora. Seria um momento importantíssimo para um ato desta coragem e visão.
Nota sobre música contemporânea alemã, a partir do duo Lea Porcelain
A comunidade artística de que faço parte em Berlim é composta de forma majoritária por músicos. Mesmo os poetas que a compõem são mais conhecidos por seus trabalhos como performers. Ellison Glenn, poeta norte-americano, é mais conhecido por seu trabalho como Black Cracker, seu codinome como performer. O mesmo pode ser dito da britânica Annika Henderson, mais conhecida como Anika, ou a norueguesa Hanne Lippard, escritora nomeada há pouco por uma revista europeia como uma das melhores artistas do continente, por apresentar seu trabalho em vocalizações e performances em galerias e museus, mais que em festivais de literatura. É o mesmo tipo de trabalho vocal feito, por exemplo, pela sueca Cia Rinne ou os austríacos Max Oravin e Oskar May.
Eu acompanho bem a cena musical alemã, em especial a berlinense, também por ter estado à frente, por sete anos (2005-2012) da programação musical às quartas-feiras do clube Neue Berliner Initiative (NBI). O clube fez história na década de 90, pois foi lá onde começaram a se apresentar produtores de música eletrônica importantes como T.Raumschmiere (Marco Haas) ou Apparat (Sascha Ring). E sempre conversava com amigos da cena sobre o porquê de Berlim ou a Alemanha em geral não terem realmente produzido música pop de alcance internacional, com algumas exceções, como o duo Stereo Total. A Alemanha continua conhecida em grande parte por sua produção de música eletrônica, na qual poucos países a igualam ou superam.
O artista pop de maior renome ligado a Berlim é uma canadense, a grande Peaches (Merrill Nisker), que fez e ainda faz história, desde os primórdios da cena do electroclash em Berlim, de onde saíram ainda as Chicks On Speed, por exemplo. Não sei se haveria hoje um alemão com este nível de renome e influência no mundo da música pop. É claro que a própria definição de pop seria difícil e polêmica. Em certos círculos, a própria noção de pop será vista como inferior e desimportante. Mas isto me parece cegueira. Há coisas de extrema qualidade. Falemos então, de forma genérica e abrangente, da ideia de cancioneiro popular. Minha teoria é a de que o pop, neste aspecto, sempre estará ligado ao folk, influenciando a partir daí várias divisões, do pop ao punk e ao rock em suas encarnações instrumentais. Os Estados Unidos, com sua tradição forte do folk, gerou importantes artistas no pop, no punk, no rock. Em termos musicais, o que sempre complicou as coisas na Alemanha foi uma questão política. A instrumentalização que os nazistas fizeram da cultura popular alemã, ligando-a a uma noção de nacionalismo, interditou esta tradição para os músicos alemães no pós-guerra. Daí a necessidade de uma tabula rasa musical, que levaria à grande inventividade alemã na música eletrônica, com grupos como Kraftwerk, Tangerine Dream, Faust, Amon Düül e Can, que ficariam conhecidos como o movimento do Krautrock.
O que me interessa, como amante da música popular e como poeta, é a maneira como países com tradição trovadoresca, como Portugal, Espanha e França, mantiveram uma forte tradição de poesia cantada, mas a Alemanha, que teve seus trovadores na figura dos Minnesänger (Walther von der Vogelweide, Wolfram von Eschenbach e Oswald von Wolkenstein estão entre os mais conhecidos), também teria forte influência na poesia lírica, como nas Lieder (canções) de Heinrich Heine, e, eu diria, influenciaria outra tradição forte alemã: a do cabaré. Aqui, pensamos nas maravilhosas colaborações entre Bertolt Brecht e Kurt Weill, que, eu ousaria dizer, fazem parte de uma tradição popular que vai desaguar no trabalho dos melhores cantautores alemães, como Rio Reiser (1950 – 1996) e Wolf Biermann (n. 1936). São os alemães que se aproximam da tradição que deu aos Estados Unidos, por exemplo, Bob Dylan, e, ao Brasil, Caetano Veloso e Chico Buarque. O cabaré informaria ainda o rock e o punk alemães, sua música industrial e a geração da NO Wave, com bandas como Malaria!, Palais Schaumburg e Grauzone, até chegar a este século, no punk, por exemplo, de bandas como Surf Nazis Must Die e Herpes, ambas capitaneadas por Florian Pühs.
São aproximações. Talvez apenas uma teoria tresloucada minha. Berlim continua sediando vários projetos de música pop internacional, como Planningtorock, rRoxymore ou Oni Ayhun, o projeto solo de Olof Freijer, do duo The Knife, além da própria Peaches. No cenário alemão, vêms urgindo projetos como Born in Flamez, Sizarr e o mais recente, o duo Lea Porcelain, do cantor Markus Nikolaus e do produtor Julien Bracht, que já havia feito um nome na cena de techno de Frankfurt.
Lea Porcelain parece beber de todas estas tradições, do cabaré, do Krautrock, da NO Wave e música industrial dos anos 80, do espírito punk alemão, trazendo-nos em seu EP de estreia canções com excelentes letras e um som árido, trilha sonora para estes nossos tempos difíceis. Com aparições frequentes em rádios inglesas ligadas à BBC em Londres, resenhas prestes a sair em revistas alemãs como Spex e Intro, o duo vem-se mostrando como a maior promessa berlinense de entrar nas paradas do que chamamos, internacionalmente, de pop. Abaixo, você pode ouvir o EP de estreia do duo.
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