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Paula Ludwig: uma austríaca exilada no Brasil

Exílio, substantivo masculino. Ação ou efeito de exilar. Que foi retirado de seu próprio país ou que dele saiu voluntariamente. Local em que habita o exilado. Região desabitada; lugar distante; local solitário. Que se excluiu do convívio em sociedade; solidão. Do latim: exilium.

Na literatura, surge nos trabalhos de tantos poetas e romancistas produzidos longe de seus países. Banidos por imperadores, reis, chanceleres, ditadores. Na literatura alemã, podemos pensar em Heinrich Heine, exilado em Paris. Mas o conceito de Exilliteratur refere-se com mais força aos últimos exílios forçados, durante a ditadura nazista. Escritores como Bertolt Brecht, Hermann Broch, Alfred Döblin, Hilde Domin, Siegfried Kracauer, Nelly Sachs (Nobel de 1966), Heinrich Mann, Klaus Mann, Thomas Mann e Anna Seghers, todos se exilaram. Talvez os trabalhos mais conhecidos neste aspecto sejam os poemas de Bertolt Brecht escritos em Los Angeles. Entre nós, o autor mais conhecido dentre os exilados germânicos é o austríaco Stefan Zweig, por ter vivido em Petrópolis, onde cometeria suicídio em 1942.

Não temos este conceito de forma específica na historiografia literária brasileira, ainda que pudéssemos pensar, nestes termos, em trabalhos como o Poema Sujo (1976), de Ferreira Gullar, escrito em Buenos Aires durante seu exílio da Ditadura Civil-Militar (1964-1985), em todo um cancioneiro produzido no período por Caetano Veloso, Gilberto Gil e Chico Buarque, e em figuras como Augusto Boal e Glauber Rocha.

O Brasil, como os Estados Unidos e outros países das Américas, beneficiou-se imensamente com as mentes de autores fugindo do horror nazista. A chegada de um homem como Otto Maria Carpeaux foi importantíssima para a abertura crítica de nosso país. Figura genial e fascinante, em pouco tempo o austríaco dominaria a língua portuguesa, conheceria intimamente a literatura brasileira e se tornaria um de nossos melhores críticos literários, com textos essenciais sobre Carlos Drummond de Andrade, João Guimarães Rosa e Cecília Meireles, entre tantos outros. Outras figuras importantes e conhecidas foram o crítico teatral alemão Anatol R$_35osenfeld, o compositor alemão Hans-Joachim Koellreutter e o tradutor húngaro Paulo Rónai. Suas contribuições para nossa cultura são inestimáveis. Desconhecidos em seus países de origem, são vistos como brasileiros.

Neste pequeno artigo, gostaria de somar uma outra figura a esta história, obscura tanto no ambiente germânico como no luso-brasileiro, que descobri há pouco tempo: a poeta e pintora austríaca Paula Ludwig. Nascida em Feldkirch em 1900, foi contemporânea exata de Cecília Meireles e Henriqueta Lisboa. Mudou-se para a Alemanha por volta de 1920, onde se tornou amiga dos irmãos Klaus e Erika Mann, e passou a circular entre os autores e artistas ligados ao expressionismo. Em Berlim, estabeleceria contato com Bertolt Brecht, Kurt Tucholsky, Carl Zuckmayer e Joachim Ringelnatz, começaria a publicar em revistas e teria um dos encontros mais marcantes e definidores de sua vida: o início de seu relacionamento com Yvan Goll. O triângulo amoroso entre Paula Ludwig, Yvan Goll e Claire Goll revela seus contornos trágicos na correspondência entre os três, editado por Claire, ainda que se acredite que esta tenha destruído muitas cartas.

Crítica do regime, Paula Ludwig viria para o Brasil em 1940, onde sua irmã já vivia, estabelecendo-se no Rio de Janeiro e São Paulo, onde permaneceria até 1953. Diferentemente de Carpeaux, Rosenfeld e Rónai, no entanto, a autora jamais se adaptaria ao país ou adotaria nossa língua. Mas encontraria entre nós uma paixão e consolo na arte de Antônio Francisco Lisboa: “Tu meu grande consolo nesta terra / Único rastro-irmão que aqui me emperra”, como diz a autora nos dois primeiros versos do poema “Aleijadinho”, aqui em tradução de Douglas Pompeu e Christiane Quandt.

Ao retornar à Áustria, primeiramente não teve sua cidadania reconhecida, ainda que mais tarde viessem reconhecimentos importantes como o Prêmio Georg Trakl em 1962 e o da União dos Escritores Austríacos (Preis des Österreichischen Schriftstellerverbandes) em 1972. Seus livros incluem, em poesia, Die selige Spur (1919), Der himmlische Spiegel (1927) e o importante Dem dunklen Gott. Ein Jahresgedicht der Liebe (1932), gerado e marcado por suas agruras amorosas com Yvan Goll. Em prosa, viriam os livros de memória Buch des Lebens (1936) e Träume. Aufzeichnungen aus den Jahren zwischen 1920-1960 (1962).

Quando seu primeiro livro após o retorno à Europa seria publicado, Paula Ludwig escreveu à editora: “Por favor, evitem notas biográficas. Minha vida foi relativamente excepcional demais para que eu possa resumi-la. Nascida: 5.1.1900; doravante morta centenas de vezes! Fuga de Berlim 1933! Fuga do Tirol 1938! Fuga de Paris 1940! 13 anos no Brasil; 1953, volta ao lar – fatal! -”

Seu livro documentando poeticamente a relação turbulenta com Yvan Goll, Dem dunklen Gott, um belo, belo livro, é o mais fácil de ser encontrado, mas seus poemas foram reunidos, e a memória da autora vem retornando à cultura germânica. Mereceria ser lida também por nós. Ainda que sua passagem pelo Brasil não tenha deixado marcas no país, algo do país parece ter deixado marcas na autora, como o belo poema dedicado a nosso grande arquiteto e escultor demonstra.

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terça-feira 23.02.2016 | 11:36

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“Famosa na sua cabeça”, antologia de Mairéad Byrne

O poeta norte-americano Ezra Pound escreveu que toda grande época de criação literária é precedida por uma época de intensa tradução. Uma literatura que cai na ilusão da autossuficiência acaba condenando-se ao provincianismo, à atrofia. Ao tédio também, por fim. Mesmo as mais prestigiadas no mundo vivem em comunicação constante. Precisamos traduzir, traduzir e traduzir. No entanto, é inescapável aceitar que nossos recursos são limitados. Financeiros, ou simplesmente de tempo. O que traduzir? O que é preciso? Quando se chega à conclusão de que é hora de recepcionar um autor em português, no Brasil? Quando se trata de prosa, ao menos não precisamos esperar que certos autores sejam premiados com o Nobel. Ou morram. Ou tenham o Nobel e morram. Penso sempre naquele poema de Carlos Drummond de Andrade, em que ele escreve: “Preciso de todos.” Eu creio também que precisemos, em certos casos, especialmente dos vivos.

Livro de ByrneEm se tratando de poesia, a coisa fica especialmente complicada em termos de morte como pré-requisito para a publicação. A Nobel polonesa Wislawa Szymborska foi editada um ano antes de morrer, pela Companhia das Letras, em 2011, 15 anos após receber o prêmio, em 1996. Sem tanto espalhafato midiático, poetas precisam esperar acumular mais selos de prestígio.

É por estes motivos que me alegra uma coleção como a “Passagens”, coordenada por Álvaro Faleiros para a editora Dobra Editorial. Já discuti aqui o volume Cores Desinventadas (São Paulo: Dobra Editorial, 2014), a tradução de Lauro Maia Amorim de uma pequena antologia da norte-americana Harryette Mullen. Já saíram também pela coleção os autores vivíssimos Paol Keineg com Mojennoù gwir / Histórias verídicas, em tradução Ruy Proença; Minha vida, de Lyn Hejinian, em tradução de Mauricio Salles Vasconcelos; e o próprio Álvaro Faleiros organizou o volume Mário Laranjeira: poeta da tradução. A coleção agora nos traz dois novos volumes: Instante após o tempo, do catalão Carles Camps Mundó, em tradução de Ronald Polito; e Famosa na sua cabeça, da irlandesa Mairéad Byrne, em tradução de Dirceu Villa e com posfácio de Leonardo Fróes.

É este último livro que eu gostaria de comentar aqui. Trata-se de um pequenino volume precioso. Em primeiro lugar, a tradução de Dirceu Villa, sem a qual esta irlandesa permaneceria desconhecida entre nós por mais tempo. O paulistano já provou sua capacidade e talento exemplares na arte da tradução com seu volume de Ezra Pound, Lustra (São Paulo: Selo Demônio Negro, 2014). Mairéad Byrne certamente oferece desafios distintos, mas um autor acostumado às máscaras poéticas do norte-americano pode enfrentar os vários engenhos da irlandesa. Pois nesta pequena amostragem do trabalho de Byrne, encontramos epigramas, poemas concretos, textos longos, narrativos, prosa, poemas conceituais tirados de outros contextos, paródias e experimentação linguística entre o inglês e o gaélico. O livro pode parecer pequeno, mas é como um canivete suíço. Em uma página, encontramos um texto como “Na cidade”, em sua linguagem direta, eficiente:

Ninguém que queira evitar.

Nem quero ver ninguém.

Tive meus grandes amores.

Eles me tiveram também.

 Logo à próxima página, encontramos o longo e sofisticado “The Pillar”, repleto de referências históricas, com aquele início cheio de sons trovejando na boca, aqui na tradução de Villa:

Nuvens vão, e mais, em céu cinzento e, sim,

gaivotas guincham indo à baía e, acho, ao fim

da garganta do rio, e o céu desprende

cortinas de chuva, granizo, neve, escuras sementes

(…)”

Em textos como “Na cidade”, Byrne lembra-nos alguns dos poetas brasileiros da década de 70, como Isabel Câmara, assim como no epigrama “Pequena escultura 1”:

A família toda no sofá

Com cintos de segurança.

 Ao mesmo tempo, um poema como “O Pilar” demonstra confiança na tradição e controle de suas técnicas, mas totalmente consciente de seu lugar e hora, como provam os vários poemas críticos da política externa norte-americana, onde a autora vive, e suas sátiras da vida literária e de uma sociedade lobotomizada pelo consumo.

Nascida em Dublin em 1957, Mairéad Byrne lançou Nelson and the Huruburu Bird (2003), Vivas (2005), An Educated Heart (2005), SOS Poetry (2007), Talk Poetry (2007), The Best Of (What’s Left of Heaven) (2009) e Lucky (2011). Escreveu ainda um estudo de seu conterrâneo em James Joyce – a clew (1981), e sua última publicação foi uma antologia poética com textos de seus vários livros, trazendo poemas inéditos: You Have to Laugh: New and Selected Poems (2013). Este pequeno volume da Dobra Editorial é um cartão de visitas.

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segunda-feira 15.02.2016 | 12:44

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100 anos do Cabaret Voltaire e do dadaísmo

Há 100 anos, na noite de 5 de fevereiro de 1916, um grupo de refugiados de guerra dava início à primeira sessão do Cabaret Voltaire, no mesmo prédio do Kneipe (boteco) conhecido como Meierei, em Zurique. À época, a cidade suíça estava repleta de exilados e refugiados. Lênin, por exemplo, vivia na mesma rua do Cabaret Voltaire, a Spiegelgasse. Dentro de alguns meses, o Cabaret Voltaire se desdobrou na revista Dada e num dos movimentos de vanguarda mais influentes do século 20 – grupo que estudaríamos décadas mais tarde em manuais de literatura como dadaísmo.

cabaret

Cartaz apresenta o Cabaret Voltaire

Iniciado pelo casal alemão Hugo Ball e Emmy Hennings, o Cabaret Voltaire contaria ainda com a participação dos romenos Tristan Tzara e Marcel Janco, do alemão Richard Huelsenbeck e do casal Hans Arp, nascido na Alsácia, e Sophie Taeuber, a única suíça do grupo. A ideia inicial que os movia era rebelar-se contra a mentalidade militarista e nacionalista que lançara o continente europeu na Primeira Guerra Mundial. Mas o casal Ball e Hennings também precisava de dinheiro. Nada melhor, portanto, do que iniciar um cabaré na pacata Zurique, na neutra Suíça.

A Grande Guerra entrava em seu terceiro ano. De cada lado, rei, kaiser e tzar da mesma família – George V, do Reino Unido; Wilhelm II, da Alemanha; e Nícolas II, da Rússia, eram primos. E imbuídos de uma mentalidade imperialista do século 19, lançavam homens jovens e civis em meio a bombas e canhões do século 20. Vários escritores do início do século morreriam naqueles campos de batalha, como os britânicos Wilfred Owen e Isaac Rosenberg ou o alemão August Stramm. Em decorrência da guerra, perderíamos ainda o austríaco Georg Trakl e o francês Guillaume Apollinaire. Em julho de 1916, com o Cabaret Voltaire ainda em atividade, viria a batalha do Somme, na qual dezenas de milhares de soldados morriam a cada dia.

Era este o contexto do Cabaret Voltaire. Não se pode falar dessa vanguarda histórica sem mencionar contra o que se rebelavam. Pois não se tratava simplesmente do novo pelo novo ou de apenas chocar os burgueses. Esses poetas e artistas pacifistas, contra a mentalidade belicista prussiana comandando seu lado da guerra, queriam deter a maquinaria de moer gente. Suas escolhas tinham sim um caráter de choque, quase de agitprop, como se veria depois entre os artistas ligados à Revolução Russa. Mas, ao escolher um cabaré como plataforma de exposição, ao proferir poemas sonoros sem sentido linguístico decodificável, ao fazer seu teatro de marionetes, suas máscaras de papelão, estes homens e mulheres iam contra tudo o que se considerava arte séria naquele momento e tinham um inimigo claro e poderoso à frente, que vinha matando há anos.

O Cabaret Voltaire duraria apenas alguns meses. Logo, despreocupados em garantir que a empreitada fosse rentável, não conseguiram mais pagar o aluguel do boteco. Mas o grupo seguiria editando a revista Dada, escrevendo seus manifestos e exportando o movimento para outras cidades.

Em Berlim, como de praxe, o movimento se tornaria explicitamente político nas mãos e mentes de Raoul Hausmann, Hannah Höch, John Heartfield e Johannes Baader. A eles se uniria George Grosz, já conhecido desde os tempos do expressionismo. Não aceito pelo grupo em Berlim, Kurt Schwitters retornaria a Hannover, onde iniciaria seu próprio movimento, o Merz, nome formado após recortar as letras de Kommerz (comércio) de uma campanha publicitária.

Em Nova York, Marcel Duchamp e Francis Picabia, após passagens por Zurique e Paris, se uniriam a americanos como Beatrice Wood para editar a revista Blind Man. Nos Estados Unidos, os readymades de Duchamp tornaram-se famosos, como o urinol e a cadeira com roda de bicicleta. Ainda que o movimento tenha sido dado por encerrado, artistas como o fenomenal John Heartfield seguiriam fazendo suas colagens contra os nazistas em plena década de 1930, com os assassinos já no poder, correndo grande risco.

A historiografia literária tende a julgar o sucesso de um movimento artístico por datas de início e fim, ou pela fama póstuma de seus autores. É com frequência que se lê que Dada não esteve entre os movimentos mais influentes do século 20, dando-se esta honra ao surrealismo, que nasceu do dadaísmo, ou a movimentos de caráter construtivista, em especial no Brasil, onde a poesia concreta deu atenção especial a tais artistas. Mas o espírito que guiou Dada pode ser facilmente mostrado como um dos mais frutíferos do período.

Quando acabou a Segunda Guerra, fruto que foi da Primeira, e artistas ao redor do continente e do globo retomam os experimentos das primeiras vanguardas, foi ao Cabaret Voltaire e ao Dada que muitos deles retornaram. Na Áustria, um dos mais fiéis a este espírito foi o Grupo de Viena, com H.C. Artmann, Gerhard Rühm, Konrad Bayer e Friedrich Achleitner. Suas performances no Art Club da capital austríaca na década de 1950 são reignições das práticas do Cabaret Voltaire, retornando a poemas sonoros, satíricos e performances contestadoras do estado respeitável das coisas.

Em Paris, Idisore Isou, compatriota romeno de Tristan Tzara, deu início ao Movimento Letrista, do qual logo surge a Internacional Situacionista, grupos com práticas altamente políticas, rebelando-se contra a mentalidade socioeconômica de seus países. As apropriações de comerciais por Guy Debord em seus filmes tem raízes nas práticas de Höch, Hausmann, Heartfield e Schwitters. Em Barcelona, nasce o movimento catalão Dau al Set (“dado no 7”, indicando já no nome seu espírito Dada), com Joan Brossa, Modest Cuixart, Joan Ponç e Antoni Tàpies, entre outros. Assim como os vários independentes, do poeta sonoro Henri Chopin ao inclassificável, também romeno, Ghérasim Luca. Movimentos como a Pop Art, o Fluxus e até o Punk são impensáveis sem as contribuições do Cabaret Voltaire.

E isso se dá também porque o espírito do Dada, antes de ser um destruidor de tradições, foi o de reconectar a tradições então desprestigiadas pela alta cultura. Os poemas sonoros de Hugo Ball, Kurt Schwitters e Raoul Hausmann os ligam a tradições e práticas milenares que jamais abandonaram a humanidade, como o canto gutural dos inuítes, canções ameríndias, os puirt à beul (sons na boca) gaélicos, o joik dos lapões (ou saamis, o único grupo indígena da Escandinávia), e assim por diante, assim como a arte de Sophie Taeuber, Emmy Hennings e Hannah Höch permanecem entre nós na arte visual em colagens e apropriações, e, no teatro, foram altamente influentes para a criação cenográfica. A poesia satírica desses autores tem precursores nos Goliardos, os padres-poetas beberrões da Idade Média, nos poetas ingleses do nonsense, como Lewis Carroll e Edward Lear, no alemão Christian Morgenstern e até mesmo no brasileiro Qorpo Santo.

Ao escrever sobre essas figuras hoje, 100 anos depois de sua primeira explosão em nosso meio, o que os torna ainda vivos e necessários vai além de suas contribuições inestimáveis às práticas artísticas: pois, ao se rebelarem contra a máquina de moer gente dos senhores da guerra, estes homens e mulheres reforçaram nossa crença de que o artista e o poeta devem estar ligados a seu tempo, fazendo-se voz de suas comunidades. E nestes tempos de guerras e refugiados, assim como em 1916, precisamos muito de artistas desse calibre.

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sexta-feira 05.02.2016 | 11:33

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Chalámov: testemunha do terror soviético

A literatura russa tem uma recepção respeitável no Brasil, assim como em outros países ocidentais. Escritores como Fiódor Dostoiévski e Leon Tolstói fazem parte da formação de leitores brasileiros interessados no chamado cânone mundial. Púshkin é conhecido ao menos em parte, e Tchékov tem seus contos lidos e suas peças encenadas. Graças aos esforços de tradutores como Boris Schnaiderman, Haroldo de Campos e Augusto de Campos, os poetas mais importantes da chamada Era de Prata da poesia russa, assim como alguns outros do pós-guerra são admirados no país – tendo sido incluídos na antologia Poesia Moderna Russa, organizada pelo trio.

O Prêmio Nobel de Literatura a Alexander Soljenítsin, em 1970, e a Joseph Brodsky, em 1987, fizeram dos dois os mais famosos autores russos do pós-guerra, e ambos são também razoavelmente conhecidos no Brasil. Suas biografias dão o tom do que sabemos ou imaginamos saber sobre o que significava ser um escritor dissidente na antiga União Soviética, após as tragédias que circundam as biografias de poetas como Blok, Gumiliév, Khlébnikov e Maiakóvski ao longo da década de 1920. Tal atmosfera foi captada de forma genial na monografia de Roman Jakobson, A Geração que Desperdiçou seus Poetas (1930), escrita antes de a tragédia tornar-se ainda maior e mais irreparável, com as mortes de Mandelshtam no Gulag, em 1938, e o controverso suicídio de Marina Tsvetáieva, em 1941, visto por alguns como assassinato político.

Contos de KolimáA experiência do Gulag, sigla da agência governamental que administrava os campos de trabalho forçado e pela qual ficou conhecido o sistema, teve em Soljenítsin uma de suas mais contundentes testemunhas. A leitura de Um dia na vida de Ivan Denisovich (1962) nos provê as imagens literárias mais conhecidas daquele horror.

Agora, a publicação no Brasil do primeiro volume dos Contos de Kolimá, de Varlam Chalámov (1907-1982), traz ao país outro grande escritor e testemunha do terror que foi o regime de Stálin [Contos de Kolimá, volume 1, tradução de Denise Sales e Elena Vasilevich. São Paulo: Editora 34, 2015].

A um leitor brasileiro em plenos trópicos, talvez seja impossível compreender a geografia, a flora e o clima que povoam relatos como os de Chalámov. Sibéria, estepe e neve talvez nos pareçam imagens tão distantes, literárias e exóticas quanto parecerão a um leitor russo de Graciliano Ramos as aflições de suas personagens em Alagoas, sertão e seca. Mas, se há um autor que consegue pela secura de gelo de seu estilo nos transportar ao vazio que congela e consome as almas desses homens perdidos em plena Sibéria, estepe e neve, este autor é Chalámov.

“Todos os sentimentos humanos, amor, amizade, inveja, generosidade, misericórdia, sede de glória, honestidade, desapareciam junto com a carne que perdíamos ao longo do jejum prolongado. Na camada muscular insignificante que ainda restava sobre nossos ossos, que ainda nos dava a possibilidade de comer, de nos mover, respirar, cortar lenha, pegar a pá e jogar pedras e areia no carrinho de mão e inclusive de empurrar o carrinho pela interminável trilha de madeira até a galeria da mina de ouro e pela estreita estrada de madeira até o equipamento de lavagem, nessa camada muscular acomodava-se apenas raiva, o sentimento humano mais duradouro”, escreve o russo no conto Ração seca.

Aqui, economia de meios e o que poderíamos chamar de um minimalismo realista de descrição não são meras escolhas estilísticas. Nos campos do Gulag, não há espaço para metáforas e epifanias, ou qualquer tipo de lirismo. Há apenas o homem em toda a pobreza de seu organismo. A secura e o realismo da escrita de Chalámov são a única maneira honesta de tratar daquele horror vazio, daquela tragédia átona diária no gelo, daqueles esforços de um Sísifo que nunca sabe por que carrega pedras montanha acima. É uma secura de caráter tanto estético quanto ético – algo que se poderia dizer também da secura em Graciliano Ramos e João Cabral de Melo Neto. Mas, nos contos perturbadores de Chalámov, não é a pedra seca do sertão que entranha a alma e a ensina, mas as pedras geladas no chão do permafrost siberiano.

Lançado na excelente Coleção Leste da Editora 34, que vem trazendo ao público brasileiro não apenas novas traduções de autores já conhecidos, como Dostoiévski e Gógol, mas também apresentando autores sem recepção no país, como Sigismund Krzyzanowski e Anton Makarenko, este primeiro volume dos Contos de Kolimá será seguido pelos outros cinco. Estes são: A margem esquerda, O artista da pá, Ensaios sobre o mundo do crime, A ressurreição do lariço e A luva, ou KR-2. Cada um ficou a cargo de tradutores diferentes, completando o painel caleidoscópico deste épico em fragmentos de Chalámov – autor que certamente entrará para o rol dos russos a nos educar sobre os terrores das guerras políticas do século 20.

Faço votos de que uma antologia dos poemas do russo – também poeta fenomenal – esteja planejada para a empreitada da Editora 34 e de seus tradutores. Caminhando com o volume em meu bornal pelas ruas geladas de Berlim, sou tomado por compaixão por aqueles infelizes, mas fico perturbado com as implicações do que narra Chalámov: de que até mesmo essa compaixão é um luxo de quem está aquecido por agasalhos e com o estômago cheio. Lemos este livro memorável – que estranhamos por sua realidade impensável e seu cenário estrangeiro e desconhecido –, agasalhados e nutridos. Acompanhamos os dias desses prisioneiros à beira da hipotermia, para os quais luxo é uma sopa não rala, e saímos dele também com o pensamento nos que perduram ainda hoje em prisões de Sísifos pelo mundo.

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terça-feira 26.01.2016 | 14:36

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150 anos de Euclides da Cunha

euclides da cunha“O planalto central do Brasil desce, nos litorais do Sul, em escarpas inteiriças, altas e abruptas. Assoberba os mares; e desata-se em chapadões nivelados pelos visos das cordilheiras marítimas, distendidas do Rio Grande a Minas.” (Euclides da Cunha, Os Sertões, 1902)

Assim começa um dos livros mais estranhos e belos deste país de escritores de vidas curtas, trágicas, que nos deixam muitas vezes uma única obra prima, talvez falha, marcada por seu tempo (como deveria ser, de qualquer forma), mas que também ainda nos apontam caminhos, dão-nos pistas de onde erramos. Euclides de Cunha teria completado hoje 150 anos. Considerado um catatau difícil, talvez alguém estranhe se eu disser que se trata também de uma das leituras mais febris que já fiz nesta vida. Mas é o que foi, para mim, ao abrir aquela primeira página da primeira parte, “A Terra”, num ônibus que me levava da antiga capital do Império e da primeira República do Brasil, o Rio de Janeiro, às cidades portuguesas de Minas Gerais e destas mais tarde para a primeira capital do território, Salvador, numa viagem pelos litorais e interiores. Costas, cabeças e intestinos do país do qual sou cidadão. Um trem de Belo Horizonte a Vitória, que não sei se ainda carrega passageiros, levava também carvão. Cheguei dos intestinos do país a suas costas com a cara e o livro pretos de pó queimado da terra.

Falar sobre Euclides da Cunha é falar sobre Os Sertões, é falar sobre a transição do Império à República, sobre capital e interior, dualidades que sempre nos surgem na cabeça ao pensar sobre “esta terra de feracidades excepcionais”, como escreveu Manuel Bandeira no poema O cacto, cacto que evocava “o seco Nordeste, carnaubais, caatingas”. Pensar em Euclides da Cunha, escritor do Rio de Janeiro em pleno sertão, é pensar sobre os dois Brasis que se encaram em determinados momentos da história e se estraçalham um ao outro, com um lado vitorioso, ao menos até agora, sempre o mesmo. Naquele momento, os dois lados eram propostos como “A rua do Ouvidor e as caatingas”, ou, como escreve Euclides da Cunha: “A rua do Ouvidor valia por um desvio das caatingas. A correria do sertão entrava arrebatadamente pela civilização adentro. E a guerra de Canudos era, por bem dizer, sintomática apenas. O mal era maior. Não se confinara num recanto da Bahia. Alastrara-se. Rompia nas capitais do litoral.”

Há pouco tempo, revi com um amigo o filme Capote (2005), com aquela atuação genial de Philip Seymour Hoffman no papel de Truman Capote durante a escrita de seu livro In Cold Blood (1966), no qual o americano pretendia inventar um novo gênero, a non-fiction novel. Ao ver o filme pela primeira vez, pensei: “Mas já não tinha Euclides da Cunha inventado o gênero com Os Sertões?” Contudo, se no livro de Capote um crime isolado no interior dos Estados Unidos assume proporções épicas, de caráter investigativo da alma nacional, de duas Américas que se encontravam e encaravam de forma violenta numa noite de novembro de 1959, em Os Sertões, temos o relato de uma guerra civil, a sangue frio e quente, a mais violenta de nossa história, na qual uma cidade inteira foi dizimada. Era o ano de 1896, 1897, República recém-instaurada, e, como fanáticos positivistas, as forças republicanas encontravam-se e digladiavam-se no sertão com aqueles que viam como fanáticos religiosos de forças monarquistas.

Euclides da Cunha partiu, contratado pelo jornal O Estado de S. Paulo, como correspondente de guerra, após seus primeiros artigos sobre o conflito, intitulados A nossa Vendeia. Já se tratava de um indício da posição republicana do escritor, ao comparar Canudos às forças contrarrevolucionárias da Vendeia, após a Revolução de 1789, durante a Primeira República Francesa. Positivista, militar de carreira, republicano convicto, foi com esse espírito que Euclides da Cunha partiu para a guerra, convencido da legitimidade da posição do governo federal.

No entanto, alguns anos depois de testemunhar o massacre da população de Canudos pelas forças republicanas, a meditação do escritor sobre “A Terra”, “O Homem” e “A Luta” daquela região em Os Sertões – livro que escreveu em São José do Rio Pardo, no interior de São Paulo, onde trabalhava como engenheiro na construção de uma ponte – tornou-se o nosso épico antiépico. Pois, se a épica é formada pelos mitos de fundação de uma nação, Os Sertões é muito mais o relato de nossa “findação”: olhando para ele agora, após mais de um século, vê-se que “A rua do Ouvidor e as caatingas” continuam de costas uma para a outra, como Brasis que não se entendem e seguem se estraçalhando nas ruas das capitais do país.

“O sertão vai virar mar e o mar vai virar sertão”, profetizou essa figura estranhíssima da nossa história, Antônio Conselheiro, que eu próprio, homem de São Paulo, talvez jamais possa verdadeiramente compreender. Mas se olhamos com atenção, como Euclides da Cunha o fez, para a terra, o homem e a luta, chegamos mais próximos das reivindicações daquela população da grande cidade inoficial do país, uma capital às avessas, Canudos. Cidade que hoje está alagada por um açude, deixando a cruz de sua catedral à vista em períodos de seca. As calotas polares derretem-se. Talvez não tenha previsto Antônio Conselheiro que é a Rua do Ouvidor que um dia virará mar. Das ingerências da República, já se garantiu que de Mariana à foz do Rio Doce no Atlântico, parte do interior se transformasse em mar de lama.

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quarta-feira 20.01.2016 | 12:24

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