Uma semana de rememorações – e do Prêmio Camões a Raduan Nassar
Esta foi uma semana de rememorações, de trabalho de memória coletiva. Os 40 anos do suicídio de Dora Lara Barcelos em Berlim no dia 01/06. O aniversário de Ana Cristina Cesar no dia 2, quando teria completada 64 anos, o que gerou algumas tenativas de releitura de seu legado nas redes sociais. Mas houve também um motivo de comemoração, ainda que tampouco unânime. Na segunda-feira, foi anunciado que o Prêmio Camões 2016 vai para Raduan Nassar, brasileiro de Pindorama, estado de São Paulo, nascido em 1935. Um dos autores brasileiros mais celebrados dos últimos 20 anos, seus dois principais livros (ele publicou apenas 3), Lavoura Arcaica (1975) e Um copo de cólera (1978), já foram transformados em filmes – a filmagem de Lavoura Arcaica por Luiz Fernando Carvalho, em 2001, foi amplamente premiada–, e recentemente traduzidos para o inglês e editados na coleção Modern Classics da Penguin, unindo-se por lá aos brasileiros Clarice Lispector e Carlos Drummond de Andrade. Ancient Tillage é o título da tradução de Karen Sotelino para o primeiro livro, e A cup of rage, o da tradução de Stefan Tobler para o segundo.
Criado em 1988 pelos Governos do Brasil e de Portugal, o Prêmio Camões já foi dado a autores brasileiros como João Cabral de Melo Neto (o primeiro a um brasileiro, em 1990), Jorge Amado (1994), Lygia Fagundes Telles (2005) e Dalton Trevisan (2012). Time de pesos pesados. Entre os portugueses, Miguel Torga recebeu o da primeira edição, em 1989, assim como José Saramago (1995), Maria Velho da Costa (2002) e, no ano passado, Hélia Correia. Brasileiros e portugueses foram premiados na maior parte das edições, mas o prêmio ajudou a trazer-nos notícias de alguns importantes escritores da África lusófona, como o moçambicano José Craveirinha (1991), o angolano Pepetela (1997) e o cabo-verdiano Arménio Vieira (2009).
É o prêmio mais importante da língua. O que faz a importância de um prêmio não é o valor monetário, a imprensa, ou algo que o valha. O que faz a importância de um prêmio é justamente a importância inquestionável dos que o recebem. Não é o prêmio que traz prestígio ao autor, mas o autor que traz prestígio ao prêmio. Neste aspecto, pode-se dizer, sim, que o Camões é o mais importante da língua. Desde sua criação, o prêmio tem sido consistente – se comparado aos fiascos recentes do Prêmio Jabuti no Brasil – e foi dado em vários anos a verdadeiros grandes escritores (com uma única exceção, em minha opinião, cujo nome não vem ao caso).
No entanto, é preciso dizer algo. Há pouco tempo, discutia nas redes sociais com o poeta e crítico Eduardo Sterzi como é absurdo, por exemplo, que um poeta português como Manuel António Pina (1943-2012), galardoado com o prêmio em 2011, jamais tenha sido propriamente editado no Brasil. Não sei qual é a situação editorial de Raduan Nassar em Portugal, Moçambique ou Angola. Mas, em vez de pelejarmos por nossas discórdias ortográficas, não seria muito mais efetivo para unir os lusófonos, que a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) cuidasse para que ao menos os autores que ganham o Camões fossem editados e distribuídos de forma decente em todos os países de língua portuguesa?
Parabéns ao Raduan Nassar. Aquela cena final de Lavoura Arcaica e alguns dos impropérios trocados pelas personagens de Um copo de cólera jamais me deixarão.
40 anos do suicídio de Dora Lara Barcelos em Berlim
Hoje é o quadragésimo aniversário do suicídio de Dora Lara Barcelos na Berlim Ocidental, onde se exilara, a 01/06/1976, quando se jogou diante de um trem na estação de Charlottenburg. Uma morte trágica e terrível, meio aos anos trágicos e terríveis daquele momento histórico do Brasil. Ao contrário dos vários homens que lutaram contra o regime militar (1964-1985), seja por meios políticos ou por armas, Dora Barcelos está entre as figuras menos conhecidas da narrativa, como outras mulheres, feito Iara Iavelberg ou Ísis Dias de Oliveira.
Uma pequena retrospectiva: Maria Auxiliadora Lara Barcelos nasceu em Antônio Dias, Minas Gerais, em 1945. Iniciou o curso de Medicina na Universidade Federal de Minas Gerais em 1965, onde passou a integrar o movimento estudantil. Com o recrusdecimento do terror ditatorial do regime, abandonou o curso e mudou-se para o Rio de Janeiro em março de 1969, entrando na clandestinidade e ligando-se à VAR-Palmares. Foi presa com seu marido, Antônio Roberto Espinoza, e o guerrilheiro Chael Charles Schreier, no dia 21 de novembro daquele ano. Brutalmente torturados, Chael Chales Schreier morreria no dia seguinte. Dora Barcelos passaria pelo túnel do horror específico dedicado a mulheres pelos agentes da repressão. Passou dois anos presa, até ser libertada com os 70 presos políticos trocados pelo embaixador da Suíça no Brasil, Giovanni Bucher, em 1971.
Temos imagens de Dora Barcelos no filme Brazil: A Report on Torture (1971), dos americanos Haskell Wexler e Saul Landau, que estavam no Chile para filmages sobre a situação política do país e ouviram falar sobre a chegada dos brasileiros. Com a queda de Allende em 1973, a brasileira seguiu para a Bélgica e então para a Alemanha Ocidental, fixando residência em Berlim Ocidental, onde pretendia seguir o curso de Medicina. Com dificuldades para assegurar o asilo político na Alemanha, sem passaporte, marcada pela tortura, Dora Barcelos fez sua escolha extrema naquele dia 1º de junho, numa estação de trens. Sua vida é retratada no documentário recente Retratos de Identificação (2016), de Anita Leandro, baseado em documentos secretos do regime militar e em depoimentos de companheiros.
A história de Dora Lara Barcelos me marcou por sua ligação com Berlim. Tinha o plano de escrever sobre este aniversário de morte muito antes do Brasil mergulhar na crise política extrema em que se encontra. Podemos ter opiniões conflituosas sobre a luta armada contra a ditadura. Pessoalmente, tenho uma ideia clara sobre sua eficiência. No entanto, pensar na vida e morte de pessoas como Dora Lara Barcelos, não permitir que caiam no esquecimento completo do Brasil sempre voltado para um futuro que não chega, é lembrar-nos sempre do terror em que nosso país afunda periodicamente, quando os direitos constitucionais de seus cidadãos são colocados muito abaixo dos interesses econômicos de uma elite que não conhece limites, especialmente quando se trata de defender a casa-grande.
Este é apenas um grito de “tortura nunca mais”, ainda que saibamos que ela segue sendo prática diária da Polícia Militar no Brasil. Encerro, portanto, com um poema da polonesa Wislawa Szymborska, em tradução de Regina Prybycien.
TORTURAS
Wisława Szymborska
Nada mudou.
O corpo sente dor,
necessita comer, respirar e dormir,
tem a pele tenra e logo abaixo sangue,
tem uma boa reserva de unhas e dentes,
ossos frágeis, juntas alongáveis.
Nas torturas leva-se tudo isso em conta.
Nada mudou.
Treme o corpo como tremia
antes de se fundar Roma e depois de fundada,
no século XX antes e depois de Cristo,
as torturas são como eram, só a terra encolheu
e o que quer que se passe parece ser na porta ao lado.
Nada mudou.
Só chegou mais gente,
e às velhas culpas se juntaram novas,
reais, impostas, momentâneas, inexistentes,
mas o grito com que o corpo responde por elas
foi, é e será o grito da inocência
segundo escala e registro sempiternos.
Nada mudou.
Exceto talvez os modos, as cerimônias, as danças.
O gesto da mão protegendo o rosto,
esse permaneceu o mesmo.
O corpo se enrosca, se debate, se contorce,
cai se lhe falta o chão, encolhe as pernas,
fica roxo, incha, baba e sangra.
Nada mudou.
Além do curso dos rios,
do contorno das costas, matas, desertos e geleiras.
Entre essas paisagens a pequena alma passeia,
estranha a si própria, inatingível,
ora certa, ora incerta da sua existência,
enquanto o corpo é, é, é
e não tem para onde ir.
(in Szymborska, Wislawa. Poemas. São Paulo, Companhia das Letras, 2012. Tradução de Regina Prybycien)
FLIP 2016
Em 2012, a DW Brasil publicou um texto opinativo meu, discutindo o número baixíssimo de autoras naquele que se quer o maior evento literário do Brasil, a Flip [“Com poucas autoras, Flip não reflete a produção literária atual”]. Pouca coisa mudou nos anos seguintes. Em entrevista à jornalista Camila Moraes do El País Brasil, Paulo Werneck, curador pelo terceiro ano consecutivo do evento, discutiu a ausência de autores negros no evento [“Faltam negros no palco da Flip, mas também na plateia”]. Em outro artigo, a mesma jornalista afirmara que este ano a edição finalmente pertencia às mulheres.
Vamos começar por falar sobre a presença das mulheres este ano. É verdade que a festa jamais convidara tantas autoras. Segundo a introdução à entrevista, são 17 mulheres entre 39 convidados, “quase 44%”. Até pouquíssimo tempo, a festa não era capaz de encontrar uma dezena de autoras para trazer ao país. Há aí, portanto, um avanço. É verdade que a curadoria, com frequência, não parece conseguir funcionar num raio muito maior que o do estado do Rio de Janeiro, mas este é um velho problema brasileiro, e neste ano acaba influenciado pela escolha da homenageada, Ana Cristina Cesar (1952-1983), apenas a segunda vez que uma autora é homenageada no evento, após Clarice Lispector na edição de 2005. O fato foi celebrado como o deveria ser. Ana Cristina Cesar é uma poeta importante. Então contenho o que poderiam chamar de cinismo meu, em imaginar o quanto a escolha tenha sido decidida pelo fato de que sua obra completa foi publicada há tão pouco tempo por uma grande editora como a Companhia das Letras, com a qual Werneck tem laços, digamos, históricos. Mas, viva Ana Cristina Cesar!, poeta que produziu realmente textos maravilhosos em sua vida tão curta, e espera-se que autoras como Hilda Hilst, Patrícia Galvão, Carolina Maria de Jesus e Cecília Meireles, entre outras, encontrem espaço nos anos futuros.
Já festejei no texto anterior a este, que o sírio Abud Said esteja entre os convidados deste ano, e é uma alegria ver o grande poeta brasileiro Leonardo Fróes na lista. Valeria Luiselli vem realmente aparecendo nas listas mais prestigiadas do último ano, e todos devem estar em polvorosa mais que justa com a vinda da ganhadora do Prêmio Nobel do ano passado, Svetlana Aleksiévitch.
Mas, a não ser pela presença do excelente autor sírio, não há um único autor que não seja identificado como branco em Paraty em 2016. O curador defende-se dando nomes de autores negros que teria convidado, mas que não aceitaram, como a nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, o astrônomo norte-americano Neil DeGrasse Tyson, e o escritor Ta-Nehisi Coates, também dos Estados Unidos. São nomes extremamente importantes. O livro mais recente de Ta-Nehisi Coates, Between the World and Me (2015), deveria ser discutido amplamente no Brasil.
São também autores festejados pelo New York Times, algo importante para os curadores da Flip, sempre jornalistas, que trazem para a curadoria literária o que chamo de “espírito do gancho”. É cinismo meu? Talvez. Mas, como afirmou o poeta brasileiro Ricardo Aleixo nas redes sociais, não é cinismo de Paulo Werneck citar estes nomes no tom de “mas eu tentei, eles recusam!”? Se houvesse realmente a preocupação política incontornável de escapar do racismo inerente de curadorias desta natureza no Brasil, não seria possível pensar em outros nomes, com todo um continente africano à disposição? Werneck elenca logo em seguida, entre os brasileiros, seus convites aos músicos Mano Brown e Elza Soares. Mano Brown e Elza Soares são nomes imprescindíveis da cultura brasileira hoje, mas o curador realmente esgota aí seu conhecimento de escritores negros no Brasil, e no mundo? Com autores como Sebastião Nunes, Miriam Alves e o próprio Ricardo Aleixo jamais tendo sido convidados?
E cá estamos falando novamente da Flip como se já não soubéssemos há tanto tempo que se trata de uma festa menos literária que editorial. Tivesse realmente preocupações políticas sérias, como o curador tenta afirmar em sua entrevista, ela já teria percebido que necessita descentrar o poder da curadoria, dividindo-a (por que não?) entre responsáveis pela literatura de cada continente, garantido uma verdadeira internationalização desta festa capengamente chamada de internacional, quando se mostra a cada ano extremamente eurocêntrica e anglófila. E, como já disse em outras ocasiões, que tal convidar grandes ESCRITORES, vindos de cada continente do globo, para o papel de CURADORES? Cá está minha contribuiçãozinha anual sobre o assunto.
Abud Said: um autor nascido na Síria, refugiado na Alemanha e agora publicado no Brasil
Guerras são o reino oficial dos números. Números de tropas, de batalhas, de refugiados, de mortos. No ano passado, as manchetes dos jornais europeus ganharam novos números, recorrentes: os de afogados no Mediterrâneo. Eram 400 numa manhã, para uma semana depois subirem para 900. Os números flutuavam como os corpos, mas eram constantes. A História oficial não tem como dar conta de cada um destes indivíduos, especialmente após termos nos acostumado a ler nela apenas sobre os feitos de vida e da morte de reis e de presidentes.
A guerra civil síria, iniciada em 2011, tem reverberado num raio de milhares de quilômetros, atingindo países do norte da África, do Oriente Médio e de toda a Europa. Mais uma vez, somos confrontados com os destinos abstratos de números.
Até que abrimos um livro com textos escritos em meio aos bombardeios, e lemos: “Meu quarto é o que não tem cama / tem uma TV e um aquecedor / minha mãe sempre fica sentada nele / rezando e assistindo às notícias, e como ela não sabe ler, todo dia me pergunta o número de vítimas. / Fico nervoso com as perguntas dela e de vez em quando invento um número da minha cabeça.”
Este é um fragmento do livro O Cara Mais Esperto do Facebook, do sírio Abud Said (na Alemanha grafado como Aboud Saeed), que a Editora 34 lança neste mês de junho em tradução do árabe por Pedro Martins Criado. Foi um dos primeiros textos que li ao me deparar com a tradução alemã de Sandra Hetzl, lançada pela Mikrotext Verlag, lançado pela primeira vez como livro digital, especialidade da editora alemã.
Abud Said jamais planejou ser escritor, ou ter estes textos reunidos em livro. Nascido na vila síria de Manbij em 1983, vivendo a maior parte de sua vida em Alepo, no norte do país, ele trabalhava como ferreiro quando eclodiu a guerra. Seus textos, todos postagens no Facebook, documentam a vida normal de um homem que trabalha em seu país natal, falando sobre cigarros, mulheres, a relação com sua mãe. E o impacto humanizador de seu livro é justamente ver sua vida seguir desenrolando-se entre cigarros, mulheres, o trabalho, a vida doméstica em meio à guerra. No dia 30 de dezembro de 2011, já após a chamada Primavera Árabe, Said posta: “Escreverei tudo que me vier à cabeça / sobre a vizinha que pegou um prato nosso / emprestado e devolveu outro / Minha mãe, ressentida, mandou-me à casa dos vizinhos para dizer: este não é o nosso prato. / O nosso é o que tem uma flor verde estampada.” Um texto como esse, escrito em tal contexto, dá um significado mais vivo à nossa expressão surrada de “A vida continua”.
Nas palavras do próprio Abud Said, “Escreva como se tocasse piano em uma sala vazia”. Talvez tenha sido sua despretensão por qualquer carreira literária, mas eivada por um talento claro, que o tenha tornado tão conhecido e lido num momento em que muitos escritores oficiais naufragaram ao tentar dar voz aos vivos e aos mortos da guerra.
Conversando com sua tradutora alemã, Sandra Hetzl – que vive há algum tempo em Beirute, foi assim que ela me relatou a descoberta: buscando autores contemporâneos de língua árabe a pedido de editoras alemãs, ela encontrava apenas vozes de palanque, ou enfeitadoras demais. Um conhecido sugerira: adicione Abud Said no Facebook ou o siga. Foi assim que a reunião de seus posts se tornou o volume Der klügste Mensch im Facebook: Statusmeldungen aus Syrien, que teve tanto sucesso em sua versão digital que também ganhou versão impressa. Traduzido para o inglês e o espanhol, e transformado em peça radiofônica. Agora, o livro chega ao português, editado no Brasil, e Abud Said vem ao país para participar da FLIP 2016. Vivendo há um ano como refugiado em Berlim, após a guerra destroçar sua cidade de Alepo, Abud Said vê tudo com o ceticismo que demonstra em seus textos. Eu o conheci pessoalmente em um festival na Eslovênia. Ele continua sendo um cara que quer apenas fumar seus cigarros em paz.
Alemães e estrangeiros na cena literária berlinense
Todo mundo conhece o papel que Paris teve nas vanguardas artísticas do entreguerras. As imagens de Picasso, Chagall, Hemingway e Buñuel pela cidade. Quem leu A Autobiografia de Alice B. Toklas (recomendo muito!), da também exilada Gertrude Stein, se divertiu com as histórias destes artistas na casa dos 20 e 30 anos, embebedando-se, brigando, roubando namoradas uns dos outros, tendo perrengues por questões de reputação e fama. A história oficial diz então que este centro mudou-se para Nova York depois da guerra, a nova capital internacional das artes.
O papel de Berlim na história é menos conhecido. Nos metrôs da capital alemã é fácil ver turistas lendo Goodbye to Berlin, de Christopher Isherwood, que ficou popular depois do filme de Bob Fosse, Cabaret (1972), com Liza Minnelli no papel de Sally Bowles – a americana que ganhava a vida nos cabarés da República de Weimar quando os nazistas tomaram o poder. Um livro quase oficial dos expatriados em Berlim. Já os poemas de seu amigo W.H. Auden escritos em Berlim são menos conhecidos, assim como a comunidade de russos que se exilaram lá após a Revolução de 1917, entre eles Marina Tsvetáieva, Vladimir Nabokov e Nina Berberova. Um de seus retratos mais interessantes está no livro Zoo, ou cartas não sobre amor (1922), de Victor Chklóvski, escrito em Berlim.
É que o papel da capital alemã é mais apimentado. Isherwood e Auden não escondiam que vieram a Berlim em busca da liberdade sexual que não encontravam na Inglaterra. Sua biografia berlinense está marcada por visitas a inferninhos gays em Schöneberg, ainda hoje o centro da cena gay mais hardcore da cidade. Berlim atrai um outro tipo de pessoa. E isso não mudou muito. Os escritores vêm em busca de amor/libertinagem, aluguéis baratos e a possibilidade de escrever em tempo integral, algo impossível em outras cidades. E é vibrante a cena internacional em Berlim. Perambulam hoje pela cidade o irlandês John Holten, o inglês Sean Bonney, o sírio Abud Said (que terá em breve livro lançado no Brasil pela Editora 34), o nigeriano Michael Salu, ou o dissidente chinês Yang Lian, a brasileira Érica Zíngano, a sueca Cia Rinne, para mencionar alguns dos mais conhecidos.
É preciso falar, no entanto, sobre algo que me incomoda: a falta de diálogo entre as cenas de língua alemã e de línguas estrangeiras em Berlim. Por falar alemão, frequento leituras das duas comunidades. Mas não sou um caso comum. Em geral, os autores alemães frequentam os alemães, os estrangeiros dão atenção aos estrangeiros. A barreira óbvia é a língua. Enquanto artistas visuais não dependem, na maioria dos casos, de tradução, a língua é o material do escritor. Há exceções, é claro. Mas em minha opinião falta diálogo e interesse, muitas vezes, por parte dos escritores alemães, pelo que estão fazendo os escritores estrangeiros da cidade. Não é só a língua que se torna uma barreira. Línguas estão fincadas em tradições diferentes. Usando tanto da ironia e do sarcasmo, evitando o lirismo, os poetas alemães estranham e rejeitam o lirismo e a performatividade de tradições mais ao sul, tanto latino-americanas como africanas.
Mas há mudanças no ar. Editoras berlinenses como a Verlagshaus Berlin e a Kookbooks vêm publicando cada vez mais estrangeiros residentes em Berlim, em excelentes traduções. Minha esperança é que estas traduções sirvam de pontes sobre as barreiras das línguas, e as comunidades literárias berlinenses, em alemão e outras línguas, percebam e usufruam melhor as possibilidades de diálogo internacional na cidade. Especialmente neste momento de incompreensão de uma parcela da população alemã sobre o que podem trazer imigrantes à cultura local.
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