Caminhando do Berlim ao Berlimbo
Berlim são duas cidades. Um espaço geográfico que se divide em dois, que às vezes se anulam, às vezes se superpõem. Talvez sejam apenas dois espaços climáticos. A Terra gira devagar e faz Berlim despencar e o Berlimbo surgir. Ou talvez sejam como aquelas personagens do filme O Feitiço de Áquila (Ladyhawke, 1985), em que os dois apaixonados são condenados por um bispo malvado a se transformarem em lobo e falcão, ele em lobo durante a noite, ela em falcão durante o dia, para que nunca se encontrem. E eu sou o quê? O monge pobretão que os acompanha?
Ninguém se muda para Berlim por causa do Berlimbo. Não, acho que há pessoas que se mudam para Berlim por causa dos dois, mas subestimam o Berlimbo. Ah, todo mundo subestima o Berlimbo. Pergunte a seus amigos que visitaram a cidade na primavera/verão e aos que visitaram a cidade no outono/inverno. Àqueles que a visitaram nas duas temporadas, nas quatro estações. São a mesma cidade? Juro que não são. Mas não se trata apenas da mesma cidade em dois tipos de clima. Pense em Berlim na primavera e no verão! Ah, aquele primeiro dia em que os cafés põem de novo as mesas nas calçadas. Tiritam todos de frio do lado de fora, estão mais encaixotados em suas colchas e lãs e cachecóis do que uma ovelha esperando a tosa, mas lá estão, segurando com luvas as xícaras quentes de café, aproveitando os primeiros raios de sol que driblam as nuvens que foram inquilinas horrorosas por meses a fio no céu de cor-de-chumbo. Os parques lotam. Eventos são programados para o ar livre, ou ameaçam ficar vazios. Ninguém chega ao clube ou à igreja ou ao restaurante na hora, porque estavam perdidos no parque. E isso Berlim tem de sobra. Verde até não querer mais. Só, é claro, na primavera e verão.
Mas agora é já meio de novembro. Pleno outono. Olho pela janela ao escrever esse texto e a árvore do pátio já quase não tem sequer folhas amarelas. É um esqueleto de tronco só. E o que será essa árvore que convive comigo há três anos? É um bordo, um Ahorn (em alemão) ou maple (em inglês). É o último estágio de aprendizado de uma língua em um ambiente tão estrangeiro. Diferenciar o plátano do bordo. A tília da castanheira, e esta do carvalho. Bordo, plátano, tília, castanheira e carvalho são as árvores mais típicas das ruas de Berlim. E a maioria já não tem folhas a esta altura do ano. E não adianta que eu esteja em Berlim há quase 15 anos. Quando olho pela janela da cozinha ou do bonde às cinco da tarde e já está escuro como se fosse alta noite no Brasil, estremeço, me assusto, me recuso a acreditar. Não pode já ser noite às cinco da tarde! São CINCO da TARDE! Mas já é noite às cinco da tarde. São cinco da noite. É outono, arrastamo-nos para o inverno. E o problema não é o frio, mas a escuridão. Céu nublado eterno. Eu me pergunto se as crianças não desenham o céu também cinza, sempre cinza, nos jardins de infância.
E então começamos a sair mais à noite. Passamos o dia trancafiados, fugindo do frio. Mas ninguém aguenta muito tempo e sai, enche os bares, os clubes. Se acorda muito tarde no dia seguinte, nem vê direito o pouco de sol que escapa pelo filtro em cinza. Nos meus primeiros tempos em Berlim, passava por vezes dias sem uma réstia de luz solar. E aí entrava o Berlimbo. O Berlimbo do escuro. Não entendo por que a cidade jamais rendeu muita literatura noir. Mas, não rendeu mesmo? E aqueles expressionistas berlinenses, como o pintor George Grosz e o poeta Jakob van Hoddis?
Como passar este outono sem cair rápido demais no Berlimbo? Depois de passar duas horas pesquisando sobre as árvores de Berlim para nomear com certeza a que está no pátio do meu prédio, creio que irei visitar as árvores mais famosas da cidade. Como a velha faia na esquina da Sven-Hedin-Straße com Fürstenstraße em Zehlendorf. Ou a tília de 500 anos que se encontra em Alt-Kladow. O carvalho mais velho de Berlim está à entrada de uma casa na Waldstraße, 83, em Pankow. No Gutspark Britz em Neukölln, há a árvore-avenca (ou nogueira-do-japão) mais velha da cidade, a própria espécie é um fóssil vivo que já existia no tempo dos dinossauros. Sobre ela escreveu o velho Goethe, fóssil vivo também ele, e tomo dele uma estrofe do poema sobre a nogueira-do-japão para encerrar este texto sobre o Berlim-Berlimbo:
“Será ele só um ser vivo / Que em si mesmo se divide? / Ou dois que se designam / E nós os vemos indivisos?”(“Ist es Ein lebendig Wesen, / Das sich in sich selbst getrennt? / Sind es zwei, die sich erlesen, / Dass man sie als Eines kennt?”).
A semana em que morreu Leonard Cohen
Talvez em dez ou vinte anos, alguns de nós venhamos a dizer ao redor de uma mesa de boteco, “foi naquela semana em que morreu Leonard Cohen”, adicionando com uma tristeza que só em dez ou vinte anos saberemos quão grande será, “e na qual Donald Trump elegeu-se presidente dos Estados Unidos.” Em dez ou vinte anos, já com o número de mortos oficiais dos acontecimentos que hão-de desenrolar-se a partir desta semana.
Canções e poemas estão sempre misturados de História, a coletiva, e Memória, a pessoal. Ao saber da morte de Leonard Cohen esta madrugada, em um dos botecos berlinenses por onde arrastei a carcaça na noite de ontem, pensei em um menino que tinha o vinil de ‘Songs from a Room’ e ouvia “Story of Isaac“ sem parar.
The door it opened slowly,
My father he came in,
I was nine years old.
And he stood so tall above me,
His blue eyes they were shining
And his voice was very cold.
Era um poema lírico na acepção mais clara do termo, e tão épico ao mesmo tempo. Como era épica aquela outra canção do álbum que finalmente ouvi quando o menino deixou o álbum todo tocar, “The Partisan”.
When they poured across the border
I was cautioned to surrender
This I could not do.
I took my gun and vanished.
E a canção declarava que a liberdade viria, e ela parecia falar de um tempo já ido, e que portanto a liberdade já havia chegado, e havia, e nós estávamos naquela cama, e as fronteiras pareciam estar se dissolvendo, e nós achávamos que estávamos vencendo. A canção falava de um tempo passado e falava de um tempo futuro, eu sei agora. Porque a guerra ainda não acabou. E a morte não para. Não se detém. Não nos dá tempo sequer de velar o morto da manhã, já nos joga na cara o morto da tarde.
Enquanto escrevia esse texto sobre a morte de Leonard Cohen, chega a notícia da morte da escritora austríaca Ilse Aichinger. Volto ao topo desse texto, onde o título lia “A semana em que morreu Leonard Cohen” e peço então ao leitor que pense nele como “A semana em que morreram Leonard Cohen e Ilse Aichinger e os incontáveis outros”, e encerro logo com minha tradução de um pequeno poema de Aichinger, antes que cheguem os mortos da noite.
“Conselho temporário”
Primeiro,
você precisa crer
que chega o dia
quando sobe o sol.
Caso você porém não creia,
diga sim.
Segundo,
você precisa crer
e com todas as suas forças
que chega a noite
quando sobe a lua.
Caso você porém não creia,
diga sim
ou anua receptivo com a cabeça,
também aceitam isso.
:
“Zeitlicher Rat”
Ilse Aichinger
Zum ersten
mußt du glauben,
daß es Tag wird,
wenn die Sonne steigt.
Wenn du es aber nicht glaubst,
sage ja.
Zum zweiten
mußt du glauben
und mit allen deinen Kräften,
daß es Nacht wird,
wenn der Mond aufgeht.
Wenn du es aber nicht glaubst,
sage ja
oder nicke willfährig mit dem Kopf,
das nehmen sie auch.
Receita de bolinho de chuva
Que vontade de comer o bolinho de chuva que minha vó fazia. Mas faz já muitas temporadas de chuva que minha vó morreu.
9 colheres de farinha de trigo (sem fermento)
“Não sabeis que um pouco de fermento leveda a massa toda?” (1 Coríntios 5:6). Quantos tomos já foram escritos sobre a palavra “saudade” como definidora do caráter lusófono? Saudade, a palavra excepcional. Nós, que perdemos tanta gente no Atlântico, de cada lado. Os invasores. Os comerciantes. Os imigrantes. Os sequestrados. Os escravizados. Os corpos de militantes lançados pelo Regime Militar ao mar. Não é doce morrer no mar, gigante Caymmi. O mar é salgado. E morrer no rio que o digam os bois-de-piranha. Nós todos.
1 ovo
Já li a paronomásia “saudade / saldade”, mas onde? Quem? Era perto do mar, à luz de Ipanema ou Amaralina? Aqui canta Caymmi a relação da saudade e do sal: “A noite que ele não veio foi / Foi de tristeza pra mim / Saveiro voltou sozinho / Triste noite foi pra mim”. A saudade salva a dor. A saudade é um ovo não-galado. Galinha solitária no terreiro, ciscando seus grãos, sem pintos que a rodeiem.
150 ml de leite
Mas eu sou do interior do Brasil, lá onde se fala o dialeto caipira. O mar é longe. Nem lagos nem riachos, coisa de lugar chique, mas terra de açudes e córregos. De vez em quando, chove. As temporadas de chuva, os anúncios de frente fria pelo jornal da televisão. Cid Moreira anunciando o tédio da modorra úmida. Todo mundo corre tirar as colchas e as cobertas do armário, lavar os abrigos. A vó pressente o desassossego dos meninos e meninas, manda comprar mais farinha de trigo na venda da esquina. Vê se o fermento ainda está bom – que, por lá, se chama porroial. De manhã, chega o fazendeiro com o leite, enche a lata da casa. A nata boia, tiramos com a colher. O pai coloca em um copo de requeijão, guarda no congelador para a coalhada e os biscoitos. Tudo se aproveita.
2 colheres de açúcar
Não é “saudade“ que hoje diria definir nossa lusofonia. Prefiro a palavra “vó”, que engloba cedo ou tarde a saudade toda: de gente que já se foi, de um tempo que nunca mais volta. Na vó brasileira resiste o Matriarcado de Pindorama. As velhas caboclas do interior, com aquele ar de Cora Coralina: “Vive dentro de mim / uma cabocla velha / de mau-olhado, / acocorada ao pé / do borralho, / olhando para o fogo.” Os netos estudados têm por vezes vergonha do linguajar da velha, que fala “uzômi” para dizer “os homens”. Não sabem que ali resiste a sintaxe tupi, na qual “homem“ ou “homens“, é “abá”. Plural pra quê? Pecisão? Ora, importa se 1 ou 2, mas não se 2 ou 3? E vai a língua geral brasílica resistindo na sintaxe do dialeto caipira e em palavras esparsas, como “toró”. O Marquês de Pombal ainda não venceu de todo. Na cozinha, não acaba a eterna guerra entre vós e formigas.
1 colher de fermento em pó
E então vem o toró, vós e mães correm salvar as roupas do varal. Na sala, todos de abrigo e coberta a tiracolo. As samambaias verdejam. Os cachorros acocoram-se. A vó diz: “Parem quietos, vão assistir ao Silvio Santos que eu vô fazê bolinho-di-chuva.” Todo mundo grita: “VIVA A VÓ”. Peneira-se então a farinha de trigo, coloca-se o ovo. Aos poucos, o leite. Mexe-se bem, com braço de torcer lençol. Vem o açúcar com formigas e por último o fermento, até ficar homogênea a massa. Lá fora, a homogênea chuva. O óleo pula de quente, frita-se tudo até ficar marrom de terra. Serve muitos meninos e meninas, todos meio úmidos. A vó sorri satisfeita, senta-se na cadeira de balanço, pega o terço. Ela tem seus mortos, nós ainda esperamos os nossos. Logo vem o sol, que sempre vem.
Nós, os inacabados
Dia de Finados no Brasil. Finados. No interior diz-se apenas isso: hoje é finados. Essa palavra fascinou minha cabecinha de poeta-criança a primeira vez que associei, através dela, as ideias de “acabado” e “morto”. O morto: o acabado, encerrado, terminado. O finado: que se finou; pessoa que faleceu; defunto. Em Portugal, chama-se hoje o Dia dos Fiéis Defuntos. Os mortos são sempre fiéis. Leais. Não correm, não fogem. Os mortos ficam. Finar: acabar, findar e findar-se, morrer. Ficar onde se caiu. Cair e não levantar. Penso em meu pai, hoje morto, que sempre dizia de Ulysses Guimarães quando este aparecia na televisão: “Esse aí morreu e esqueceu de deitar.” E por fim o corpo do finado Ulysses Guimarães jamais deitou-se. Fez o grande nado sincronizado. E meu pai está hoje deitado eternamente.
Ouço “finado” e associo o morto ao completo. O morto como pronto. Desvestir-se da carne para completar-se. Talvez aí a verdade do “menos é mais”? Descarnar-se para estar prontinho da silva? Quando só ossos, então sussurrar na cova: “está consumado?” Está finado. Está findo. Não o nosso eterno devir, esse tornar-se que não se acaba, palavrório de afrancesados. Não. Nós não devimos, nós que estamos vivos e sempre vindo e devendo os olhos da cara. Não, não o devindo, mas o findo. O finado. Eu não devenho, eu devo. Devo estes olhos que a terra há de comer quando eu enfim estiver findo e de mim dizerem: o finado Ricardo Domeneck. Ou, no carinho fingido do brasileiro cordial: ah! o saudoso Ricardo Domeneck! Isso digo eu mesmo de mim ao espelho: saudoso! Saudoso você, finado Ricardo!
O Brasil e seus eufemismos. Aprendemos de Portugal. Finados. Fiéis Defuntos. Admiro os mexicanos, que olham a Coisa na cara e dizem o que é, como é: Día de los muertos. Nós preferimos o saudosismo de nossos eufemismos e sentimentalismos, nós lusófonos que cremos ter algum tipo de monopólio sobre o sentimento da “saudade” só porque lhe demos nome. Mas hoje não é dia dos mortos. Minha mãe dizia: “Velório, flor, túmulo enfeitado? Isso é pros vivos… Os mortos lá vão se importar?”. Minha mãe viva, com que não falo há meses, mãe que devém e deve. “A família penhorada agradece!”, dizia meu pai quando um rico da cidade lhe fazia um agrado e mandava para nossa mesa a leitoa leiloada na quermesse. Ela, a leitoa finda, finada leitoa. Todas as finadas leitoas de Bebedouro! A família penhorada agradece!
Não me esqueço de uma história que me contaram amigos sobre sua visita ao Castello Aragonese em Ischia, as fotos do cimiterio delle monache (cemitério das freiras), um putridarium, porão onde os corpos das freiras mortas no convento eram colocados, sentadinhas sobre uma cadeira de rocha, uma espécie de trono com furos para que seus líquidos putrefatos filtrassem, e as freiras vivas passavam horas ali, contemplando suas finadas companheiras. Muitas adoeciam e morriam justamente por passar tanto tempo ali, com as irmãs mortas. Mas para meditar sobre o quê? Sobre a finitude de tudo.
Que feriado triste. Que feriado com cheiro de coisa pagã, e nisso jaz (oh! “jaz!”) meu interesse nele. Quando criança, apenas chupava feito esponja a tristeza dos adultos e embebia nela, enquanto eles catavam vassoura, balde, bucha e sabão em pó (OMO: o branco de cálcio que a sua família merece!) e corriam cabisbaixos para o cemitério ao fim da Rua Campos Salles, para lavar, enfim, os que haviam descido a Campos Salles. Ah! Ainda é meu eufemismo favorito, este do idioleto bebedourense: em Bebedouro ninguém morre, apenas desce a Campos Salles. Mas eu era criança quando minha mãe nos levava a tiracolo para lavar o túmulo do seu pai, meu avô. O finado José Cardoso! Que me pegou no colo e morreu logo, mas nessa época “eu era feliz e ninguém estava morto”, como escreveu Fernando Pessoa. Eu agora tenho meus mortos para lavar. Eu agora lavo meus próprios mortos. Dia de finados, não. Dia dos vivos que se voltam para seus mortos. Hoje é nosso dia. O dia dos infindos. Nós, os inacabados.
O que fazem as mulheres aos domingos? Quatro poetas contemporâneas da língua alemã e da portuguesa
Domingo em Berlim. No café onde estou, uma criança grita com o pai e o chama por um palavrão. As mães ao redor tapam os ouvidos das outras crianças. No Rio de Janeiro, imagino que homens e mulheres se encaminhem dentro em pouco para as urnas, onde é possível que amanhã um pastor da Igreja Universal do Reino de Deus se torne prefeito, representante de uma ala da sociedade brasileira que é inimiga confessa de quem quer que se desvie das normas do patriarcado brasileiro. Pensei neste poema da excelente autora contemporânea alemã Monika Rinck, “O que fazem as mulheres aos domingos?”, que traduzi há alguns anos. Ontem vi uma leitura em Berlim, em que as brasileiras Érica Zíngano e Luísa Nóbrega me emocionaram até o caroço. Ofereço esta tradução às grandes autoras das minhas duas terras, a natal e a eletiva, intercalando aqui outros textos de autoras germânicas contemporâneas e de suas contemporâneas lusófonas. A escolha é pessoal, mas transferível.
Quatro poetas contemporâneas da língua alemã e quatro da portuguesa
MONIKA RINCK (Alemanha, 1969)
“O que fazem as mulheres aos domingos?”
a propósito, comecei a desejar maldades.
isso não mais te atinge, mas a mim atinge.
sou atravessada por idades diferentes.
nada me incomoda em qualquer delas.
por isso vejo tudo como é. contornos.
derramada por dentro, encharcada de mel,
veneno, ira, molhada de devoção. ninguém
entende. só as mulheres. elas são boas.
as mulheres são até muito boas. as mulheres
são também muito lindas. elas têm belas almas.
as mulheres usam lindos sapatos. as mulheres
hão sempre de falar comigo. as mulheres ficam
mesmo quando deixam o país. as mulheres aí
estão. sinto nas mulheres um crescente preparo
para a violência. as mulheres se engrandecem
e cruzam as fronteiras. postamos fotos de
nossas bucetas. torna-se indiferente. o que se
toma, o que se dá. não se conforma. escrever.
enviar. continuar. gritar. ser incompreensível. no
cabo fisterra da empatia. estamos ao fim de tudo.
entrementes os sonhos ganham em realismo.
pois os restos dos dias perpetuam-se. impõem-se
para sempre, mesmo quando os conteúdos mudam.
em um sonho você estava em berlim, numa tenda,
em bancadas de cervejaria, ali esmurrei seu peito,
você tombou, chutei então sua maleta, repetidas
vezes, com assombroso ânimo. aí você disse, deixe
disso, não estou aqui por sua causa. do outro
lado da bancada estavam tico e teco, dizendo: é.
ele não está aqui por sua causa. agora comporte-se,
e no sonho tive tanta pena de minha ira tão linda.
você porém era mais jovem e parecia o josé batista.
no sonho de ontem os morenos tornaram-se ruivos
e bochechudos, penugem de cobre e detrás as veias
avermelhadas, mas eram e permaneceram morenos.
aplauso desamparado. na platéia desencadeia-se
o despair, o eu-espéculo a pontapés, algo ainda
gritado e assinalado o tremor de sexo. tudo em
golpes das mãos. carregar como broches as
feridas. fazemos buracos onde nenhum havia
e aí queremos enfiar as picas. tudo é autenticado,
os estenógrafos carregam algibeiras, nas quais pode-se
prender algo, desde que o tenha. mais tarde cai o confete
e a relva artificial. então vamos para casa e nos sentamos
à janela, como se ainda houvesse o romantismo. e tudo
isso num único domingo. é o que fazem as mulheres.
sim, você pode ver a minha. agora é a TUA VEZ!!!!
(tradução de Ricardo Domeneck)
:
“Was machen die Frauen am Sonntag?”
Monika Rinck
übrigens, ich habe begonnen, schlimmes zu wollen.
das trifft dich nicht mehr. aber mich trifft es.
ich werde von unterschiedlichen altern durchquert.
in keinem davon macht mir irgendwas etwas aus.
daher sehe ich alles genau so, wie es ist. konturen.
innerlich ausgegossen, vollgesogen mit gift, mit honig,
mit zorn und vor ergebenheit fickrig. keiner versteht.
nur die frauen verstehen. die frauen sind gut.
die frauen sind sogar sehr gut. die frauen sind
auch sehr schön. die frauen haben schöne seelen.
die frauen tragen schöne schuhe. die frauen
werden immer mit mir sprechen. die frauen bleiben,
wenn sie auch das land verlassen. die frauen sind da.
ich spüre bei den frauen eine wachsende bereitschaft
zur gewalt. die frauen vergrössern sich endlos und gehen
darüber hinaus. wir posten fotos von unseren fotzen.
es wird egal. was wird genommen, was gegeben.
es entspricht sich nicht. schreiben. schicken.
weitermachen. schreien. nicht verständlich sein.
am cap finisterre der empathie. wir sind am end.
indes gewinnen aber die träume an realismus.
denn die tagesreste perpetuieren. sie setzen sich
fortwährend durch, wenn auch die inhalte wechseln.
in einem traum warst du in berlin, da stand ein zelt,
da warn bierbänke, da had ich dir vor die brust gehaun,
du bist gefallen, dann hab deine tasche getreten,
mehrfach, mi entsetzlicher verve. da sagtest du, hör auf,
ich bin doch gar nicht wegen dir hier. da waren dann
auf der andern seite der bierbank nicker und abnicker,
die sagten, genau. er ist nicht wegen dir hier. jetzt lass das,
und ich fands im traum so schad um meinen schönen zorn.
du aber warst jünger und sahst aus wie josef der täufer.
gestern im traum die scharzhaarigen hatten rote haare
und hohe wangen, überall war kupferflaum, dahinter adern
angerötet, aber sie waren und blieben doch schwarzhaarig.
hilfloser applaus. im publikum wird jetzt despair ausgelöst,
das ichbild mit füssen getreten, dazu irgendetwas gerufen
und sexuelles zucken markiert. das ganze sehr handgreiflich.
die wunden trägt man als broschen. wir machen löcher,
wo keine waren, und wollen da mit unsern schwänzen rein.
das alles wir bezeugt, die stenographen tragen halter,
an denen man was befestigen könnt, so man etwas hätte.
später fällt konfetti und kunstrasen. dann gehn wir nach haus
und sitzen am fenster, als gäb es die romantik noch.
und das alles an einem einzigen sonntag. das machen
die frauen. ja, kannst du mal sehen. UND JETZT DU!!!!
§
ANA PAULA TAVARES (Angola, 1952)
“As coisas delicadas tratam-se com cuidado”
Desossaste-me
cuidadosamente
inscrevendo-me
no teu universo
como uma ferida
uma prótese perfeita
conduziste todas as minhas veias
para que desaguassem
nas tuas
sem remédio
meio pulmão respira em ti
e outro, que me lembre
mal existe
Hoje levantei-me cedo
pintei de tacula e água fria
o corpo aceso
não bato a manteiga
não ponho o cinto
Vou
para o sul saltar o cercado
SWANTJE LICHTENSTEIN (Alemanha, 1970)
A parede assoberba o palco,
beijos penetram em salitre
e eflorescências enegrecem
dos lábios as mordidas.
Pedras adiam a cada dois dentes
atravessados por sustos e medos
a vista das fendas sussurráveis,
penetram a lama e o temporal.
Frases trementes piscam no cimento,
isópodes vencem guerras couraçadas,
no subterrâneo, sós, carros de compra
e sobre os lagos artificiais os caiaques.
Bigatos oviformes em metamorfose
entre os anões de jardim a massagem
e romances de autocomeçomeiofim,
faltam dedos de zumbi para coçar-se.
Medidas ocultas, alôs e mensagens,
forças centrifugais e ritmos à venda
acariciam cardiocapuzes quebrados,
deslocam carburadores aos amantes.
Muram bocas ao estender-se as mãos,
encharcadas de suor as fotos paralelas,
ponderando lisas e delicadas brincam
de úteros felizes e viúvas de comédia.
Depois engancham listas de compra,
encastelam-se detrás de suas portas
e tudo derrubam por fim ao começo
para que sua timidez desperdice tudo.
(tradução de Ricardo Domeneck)
:
Die Wand läuft über die Bühne
Küsse dringen in Salpeter
und Ausblühungen schwärzen
der Lippen spitze Bisse
Steine verschieben je zwei Zähne
durch Furchen und Ängste hindurch
Sicht auf den durchflüsterbaren Riss
Leim und Schlagregen dringt hinein
Zitternde Phrasen blinken in Zement
Asseln überleben gepanzerte Kriege
im Untergrund stehen Einkaufswagen
und Paddelboote in künstlichen Seen.
Wenden eierförmige Fliegenlarven
zwischen umkämpften Platzhirschen
und automatisierten Linearromanen
es fehlen Zombiefinger putzabkratzend
Versteckte Maßnahmen, Grußbotschaften
Zentrifugalkräfte und Rhythmusgeschäfte
tätscheln die Kapuzenherzen kaputt
verrücken Flüstertüten zu den Liebenden
sie mauern Münder zu reichen sich Hände
schweißnass als Simultangebilde ähnlich
glatt und im zarten Erwägen spielen sie
freudvolles Gebären und lustige Witwe
Am nächsten Tag hakten sie Einkaufslisten
ab verschanzten sich hinter den Toren
und rissen alles nieder endlich am Anfang
zu sein schüchtern alles zu verschwenden.
ANGÉLICA FREITAS (Brasil, 1973)
“sereia a sério”
o cruel era que por mais bela
por mais que os rasgos ostentassem
fidelíssimas genéticas aristocráticas
e as mãos fossem hábeis
no manejo de bordados e frangos assados
e os cabelos atestassem
pentes de tartaruga e grande cuidado
a perplexidade seria sempre
com o rabo da sereia
não quero contar a história
depois de andersen & co.
todos conhecem as agruras
primeiro o desejo impossível
pelo príncipe (boneco em traje de gala)
depois a consciência
de uma macumba poderosa
em troca deixa-se algo
a voz, o hímen elástico
a carteira de sócia do méditerranée
são duros os procedimentos
bípedes femininas se enganam
imputando a saltos altos
a dor mais acertada à altivez
pois
a sereia pisa em facas quando usa os pés
e quem a leva a sério?
melhor seria um final
em que voltasse ao rabo original
e jamais se depilasse
em vez do elefante dançando no cérebro
quando ela encontra o príncipe
e dos 36 dedos
que brotam quando ela estende a mão
-
ODILE KENNEL (Alemanha, 1967)
“Pensar sálvia e você”
Eu penso sálvia quando eu
vejo sálvia penso folhas de veludo
verde-cinza pareadas opostas ou
labiadas ou temperadas e amargas
ou eu penso em nada nem sálvia nem
planta nem cheiro pois por tanto
pensar a sálvia se encontra
à janela se desencontra na mente pois
ela para mim não existe mas
existe para si nada sabe de
seu nome nada sabe de seu
existir presume-se que nonada sabe.Eu penso você quando eu não
penso sálvia quando não penso que
os andorinhões cochilam nas altas
camadas do ar e nós deitadas
despertas à janela eu penso
você e o cheiro amargo
e temperado infiltra-se no seu
no meu existir de que nada sabe
e assim origina-se um desequilíbrio
existencial na luz pós-meridiana
pois sabemos sabemos muito bem
que todo tempo é uma xícara a
despenhar-se aos céus ou óleo etéreo
ou a maquinaria da solidão, presume-se.(tradução de Ricardo Domeneck)
:
“Salbei denken und Du”
Ich denke Salbei wenn ich Salbei
sehe denke grüngraue samtene
Blätter paarweise gegenständig oder
Lippenblütler oder bitter und würzig
oder ich denke nichts nicht Salbei nicht
Pflanze nicht Duft weil vor lauter
Denken der Salbei wohl vorkommt
am Fenster doch verkommt im Kopf er also
für mich nicht existiert er aber
für sich existiert und nicht weiß wie er
heißt und nichts weiß von seiner
Existenz vermutlich gar nichts weiß.Ich denke Du wenn ich nicht
Salbei denke nicht denke dass
die Mauersegler dösen in den höheren
Schichten der Luft während wir wach
liegen am Fenster ich denke
Du während der bittere und
würzige Duft in deine und meine
Existenz dringt von der er nichts weiß
und so entsteht ein existenzielles
Ungleichgewicht im Nachmittagslicht
denn wir wissen wir wissen sehr genau
dass alle Zeit nur eine himmelwärts stürzende
Tasse ist oder ätherisches Öl oder eine
Apparatur der Einsamkeit, vermutlich.
GOLGONA ANGHEL (Romênia, 1979)
Porque falta meia hora antes de
tomar o comprimido para dormir,
porque mesmo depois de tanto tempo
fazes de mim o filho com síndroma de Down
de Arthur Miller,
porque escrever não é só abrir cabeças
com o bisturi de Lacan,
e porque um poema não é a Isabella Rossellini
a chorar todos os sábados à noite,
nem o casal encontrado abraçado
na paralisia bucal do Vesúvio.
Porque a poesia não é a ponte Mirabeau
num cartaz de néon de adolescência,
porque hoje, quando ligaste,
era apenas porque te tinhas enganado no número,
porque estou cansado, voilá,
e não consigo evitar a noite,
penso agora em ti, Juliana,
heroína no sentido naturalista do termo,
penso sobretudo no teu arzinho
de provocação e de ataque.
Podias ter sido a Maria Eduarda
do cinema norte-americano,
a rapariga que ajudou a pôr fim à guerra no Vietname,
a Frida Kahlo e o Kofi Annan,
a estátua de Notre Dame.
O teu sentido reformista,
o teu olhar de Eça socialista,
cá está,
tinhas cabeça para embaixadora da boa vontade,
pés para andar nos corredores da ONU,
o feitio da botina, a mania, a despesa.
Mas continuas a dormir no teu cacifo húmido,
de cara para a parede
enquanto 20 repúblicas foram perpetuando
campanhas eleitorais e golpes de estado
nos jornais com os quais limpas os vidros da cozinha.
Coitada, coitadinha, coitadíssima,
permaneces na sala, um pouco pálida e fraca,
mas restituída aos deveres domésticos
e aos prazeres da sociedade!
O feitio da botina, a mania, a despesa,
o cheiro a terebintina.
Ó Juliana Couceiro Tavira, per omnia saecula,
chega para cá a garrafa e o cinzeiro;
temos assuntos por tratar e meia hora de critérios.
§
FRIEDERIKE MAYRÖCKER (Áustria, 1924)
Às vezes por quaisquer movimentos acidentais
roça minha mão sua mão o dorso de sua mão
ou meu corpo enfiado em roupas encosta-se quase sem saber
um piscar-de-olhos em seu corpo de roupa
estes minúsculos movimentos quase vegetais
seu olhar de ângulos e suas pupilas de propósito
vagam no vazio
sua pergunta logo de início interrompida aonde você
viaja no verão
o que você está lendo
atravessam-me o peito em cheio
e através da garganta como uma doce faca
e eu resseco por completo como um poço num verão escaldante
(tradução de Ricardo Domeneck)
:
Manchmal bei irgendwelchen zufälligen bewegungen
streift meine Hand deine Hand deinen Handrücken
oder mein Körper der in Kleidern steckt lehnt fast ohne es zu wissen
einen Augenblick gegen deinen Körper in Kleidern
diese kleinsten beinahe pflanzlichen Bewegungen
dein abgewinkelter Blick und dein Auge absichtlich ins Leere
wandernd
deine im Ansatz noch unterbrochene Frage wohin fährst du im Sommer
was liest du gerade
gehen mir mitten durchs Herz
und durch die Kehle hindurch wie ein süszes Messer
und ich trockne aus wie ein Brunnen in einem heiszen Sommer
ELIANE MARQUES (Brasil, 1970)
a mais negra a mais dura
com sua boca de tomates
amarrada até as unhas
que se vistam desse traje
os braços já sem donos
o café cada vez mais negro
o nó da madeira mais pura
que se vistam desse traje
o lombo de oito cavalos
os lenços mais vermelhos
os oito cravos de chumbo
que se vistam desse traje
os cigarros do coveiro
as raízes ontem camélias
as tortilhas as mais tontas
que se vista desse traje
o cocheiro o mais bêbado
o mais negro o mais lúgubre
e bem antes de anoitecer
e bem antes de amanhecer
que se adone a morte de tudo
do mais antigo e negro
do mais negro e chumbo
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