Os loucos e os sãos em português e em alemão
Há alguns anos, quando assisti ao documentário The Devil and Daniel Johnston (2005), sobre o cantor americano que tivera sua carreira cortada pelo atropelo dos sintomas do transtorno bipolar que seria diagnosticado mais tarde, pensei no perigo de nossa cultura ainda romântica, ao mitificarmos as vidas difíceis desses artistas enquanto estamos no conforto de nosso sofá e da mentiraiada que tecemos para nós mesmos para manter nosso funcionamento em meio à sociedade.
Desde o Romantismo, é tentador seguir vendo o artista sempre como outsider, marginal, louco, autodestrutivo, ou seja, equiparando de alguma forma a arte e a loucura. Damos uma espécie de glamour a Rimbaud, morrendo sozinho e esquecido, a perna em gangrena; a Edgar Allan Poe, morrendo bêbado numa sarjeta, algo que seu conterrâneo Jack Spicer repetiria à sua maneira um século mais tarde. No Brasil, a crítica Flora Süssekind já escreveu sobre o processo de santificação dos mortos jovens da literatura, como Ana Cristina Cesar e Paulo Leminski. A mesma aura cerca Torquato Neto.
Sobre isso tudo, penso em uma frase do artista alemão Martin Kippenberger: “Não posso cortar uma das orelhas todos os dias.” Mas em nós talvez haja a sensação de que esses loucos geniais, como Arthur Bispo do Rosário e Robert Walser, não sejam tanto loucos quanto tenham acesso a alguma verdade que nos permanece escondida, por estarmos em meio à nossa mentiraiada pessoal. Não é isso que intuímos e buscamos também em artistas?
Hilda Hilst dedicou O obscena senhora D (1982) a um antropólogo americano chamado Ernest Becker. Nas décadas de 1960/70, quando chegou ao auge o movimento da antipsiquiatria, seu livro The Denial of Death (1973) foi uma contribuição ao debate, e recebeu, postumamente, o Prêmio Pulitzer. Baseado no trabalho do psicanalista vienense Otto Rank (1884-1939), Becker argumentou à época o que pode nos parecer um clichê hoje, mas ainda não era naquele momento, quando pessoas ainda recebiam eletrochoque para “curar” qualquer tipo de comportamento diferente: de que as pessoas consideradas loucas são apenas aquelas que não conseguem criar para si todo esse sistema de defesa psicológica que inventamos para nos proteger de um mundo que é, sim, assustador.
Somos sãos porque somos capazes de mentir para nós mesmos. Os outros morrem, nós não. Os outros sofrem acidentes ao porem os pés para fora de casa, nós não. Para Rank e Becker, o medo da morte é a força motriz da cultura humana, e da nossa criação de projetos heroicos para nós mesmos: morrer por uma pátria, por um deus, por um amor. Para dar sentido ao que intuímos não ter sentido algum. Como nas últimas páginas de A Hora da Estrela (1977), de Clarice Lispector, quando o narrador anuncia a morte de Macabéa: “E agora – agora só me resta acender um cigarro e ir para casa. Meu Deus, só agora me lembrei que a gente morre. Mas – mas eu também?! Não esquecer que por enquanto é tempo de morangos. Sim.” Hilda Hilst foi ela mesma obcecada com a morte e com a loucura. Temeu e cortejou ambas até o fim.
As línguas portuguesa e alemã têm ambas seus loucos lúcidos. O Brasil teve Qorpo-Santo, Arthur Bispo do Rosário e Stela do Patrocínio. Neste século, tivemos o trabalho de Rodrigo de Souza Leão e seu Todos os cachorros são azuis (2008). Portugal teve Antônio Gancho e Sebastião Alba, loucos e lúcidos cada qual à sua maneira. Na Alemanha, há Unica Zürn, que escreveu aqueles anagramas geniais. Há os suíços Robert Walser, Adolf Wölfli, Hans Morgenthaler, Friedrich Glauser e Constance Schwartzlin-Berberat, que passaram todos, em algum momento, pela Klinik Waldau. Constance Schwartzlin-Berberat é particularmente interessante (e a menos conhecida) por seu trabalho de escrita gráfica.
Em reação a meu último artigo, Victor Heringer reagiu trazendo para a conversa e apresentando-me a artistas do Hospital Psiquiátrico do Juqueri, como Perdro Cornas e Albino Braz. Davi Pessoa, por sua vez, defendeu maior atenção à figura precursora de Osório César, o psiquiatra responsável pelo Juqueri e pioneiro no uso da arte como recurso terapêutico. Foi o autor de Expressão artística nos alienados: contribuição para o estudo dos símbolos na arte (1929) e uma influência sobre o trabalho de Nise da Silveira. Pedro Cornas foi um artista visual que viveu grande parte de sua vida no Juqueri. De origem espanhola, Cornas trabalhou no Brasil como gravador antes de ter diagnosticada a esquizofrenia. Em 1932, foi internado no Juqueri e posto aos cuidados do doutor Osório César. O MASP trouxe estas figuras para nossos olhos uma vez mais na exposição “Histórias da loucura: desenhos do Juqueri”, em 2015, com trabalhos de Pedro Cornas, Albino Braz, J. Q., Claudinha D’Onofrio, Pedro dos Reis, Sebastião Faria, A. Donato de Souza, Marianinha Guimarães, Armando Natale e Homero Novaes.
Como explicar a beleza construtiva e conceitual desses ditos loucos, ao contemplar os trabalhos insanamente bonitos de Arthur Bispo do Rosário, Constance Schwartzlin-Berberat, Pedro Cornas e Unica Zürn, que demonstram maior firmeza conceitual que a de muitos sãos contemporâneos? Talvez jamais possamos explicar. A obsessão por explicar tudo talvez seja parte da nossa sanidade louca. Eu encerraria voltando à correspondência entre arte e loucura. Becker, através de Rank e seu livro Arte e Artistas (1932), argumenta que o louco é são porque não é capaz de mentir para si mesmo sobre os terrores da vida, e o que separa o artista do louco é que o trabalho artístico o mantém fora dos manicômios. É o seu próprio projeto heróico. Ao pensarmos na vida de Bispo do Rosário e Walser, isso se quebra. Mas resta algo: a intuição de que nossa sanidade está baseada em uma mentiraiada de nós mesmos para nós mesmos. Mas… “não esquecer que por enquanto é tempo de morangos. Sim.”
Elogio à loucura
Pensei muito estes dias na grande peça Marat/Sade (1964), do alemão Peter Weiss. O título completo é A perseguição e assassinato de Jean-Paul Marat encenada pelo grupo de teatro do hospício de Charenton sob direção do senhor de Sade (original: Die Verfolgung und Ermordung Jean Paul Marats dargestellt durch die Schauspielgruppe des Hospizes zu Charenton unter Anleitung des Herrn de Sade). Meu primeiro contato com a peça foi há quase 20 anos, no Cinusp, com a exibição do filme de Peter Brook baseado em sua clássica encenação da peça em Londres, com tradução para o inglês do poeta britânico Adrian Mitchell. Ambientada em 1808, durante o período napoleônico, o argumento é uma peça dentro da peça, em que loucos do hospício (que realmente existiu) encenam personagens históricas da Revolução Francesa como Jean-Paul Marat, Charlotte Corday, Jacques Roux – e o são Sade. É um lance de mestre de Peter Weiss. Partindo da tradição de Bertolt Brecht e do cabaré político alemão, como o de Kurt Weill, o clima de histeria coletiva de um país tomado por ódio é perfeitamente transposto para aquele hospício. Um país pode às vezes ser um hospício sem muros.
Outros loucos sãos em que pensei nestes últimos dias foram a alemã Unica Zürn, e os brasileiros Arthur Bispo do Rosário e Stela do Patrocínio, que viveram por décadas internados na mesma instituição, a Colônia Juliano Moreira em Jacarepaguá, no Rio de Janeiro.
Meu nome verdadeiro é caixão enterro
Cemitério defunto cadáver
Esqueleto humano asilo de velhos
Hospital de tudo quanto é doença
Hospício
Mundo dos bichos e dos animais
Os animais: dinossauro camelo onça
Tigre leão dinossauro
Macacos girafas tartarugas
Reino dos bichos e dos animais é o meu nome
Jardim Zoológico Quinta da Boa Vista
Quinta da Boa Vista
— Stela do Patrocínio, in Reino dos bichos e dos animais é o meu nome (Rio de Janeiro: Azougue, 2002).
Talvez tenha sido presciente a decisão do diretor artístico do Festival Artes Vertentes, Luiz Gustavo Carvalho, de dar à edição de 2016 o mote “Elogio à loucura”. Entre os dias 8 e 18 de setembro estarão em Tiradentes, Minas Gerais, vários artistas brasileiros e internacionais ligados a esse tema, como o biógrafo de Nise da Silveira, o autor Luiz Carlos Mello, que fará uma palestra sobre a grande psiquiatra brasileira. Após conviver com ela por mais de 40 anos, ele é hoje Diretor do Museu Imagens do Inconsciente – instituição fundada por Nise da Silveira há 70 anos.
Também dará uma palestra a jornalista Daniela Arbex, sobre o processo de escrita do seu livro O Holocausto Brasileiro (São Paulo: Geração Editorial, 2013), que vendeu mais de 70 mil exemplares, e trata da história dos milhares de pacientes internados à força e sem diagnóstico de distúrbio mental, por décadas, no Hospital Colônia de Barbacena, um hospício na cidade de Minas Gerais. A jornalista descreve as torturas, estupros e milhares de mortes de homens e mulheres que simplesmente sofriam de epilepsia ou alcoolismo, eram indesejáveis pela sociedade dos “homens de bem”, como homossexuais, mendigos e prostitutas, ou eram ainda e somente menores grávidas, esposas internadas pelos maridos e moças que haviam perdido a virgindade antes do casamento. Um grande complexo de sete hospitais foi construído nas décadas que viam também o surgimento do Hospital Psiquiátrico do Juqueri, em São Paulo, e da já mencionada Colônia Juliano Moreira no Rio de Janeiro.
Participam ainda os autores Evandro Affonso Ferreira e Victor Heringer, e há uma homenagem a Stela do Patrocínio. O trabalho exemplar de Nise da Silveira retorna nas obras visuais de Arthur Bispo do Rosário e Fernando Diniz, ex-interno do Hospital Psiquiátrico de Barbacena, que também participou dos ateliês de pintura dirigidos pela psiquiatra brasileira. O próprio hospital retorna à luz no registro visual de Luiz Alfredo, que trabalhou para a revista O Cruzeiro, e traz um registro sobre o lugar. Em teatro, o festival é aberto com a peça “Nos Porões da Loucura”, que, segundo os organizadores, aborda “o tema da política manicomial vigente na sociedade brasileira no século XX”. O ator francês Charles Gonzàles representa três mulheres – Camille Claudel, Teresa d’Ávila e Sarah Kane – e sua história de passagem por insituições psiquiátricas. A atriz Teuda Bara, uma das fundadoras do Grupo Galpão, interpreta a peça “Doida”.
Passamos por um momento tão conturbado, que todos parecem presos a um dia recorrente e repetitivo, numa rotina de hospício, tentando fugir dele e sem tempo para rever nossa História e como chegamos a esse estado. Trabalhos como o de Daniela Arbex, Fernando Diniz e Luiz Alfredo são importantes para conhecermos como a República trata os indesejados há décadas. E, neste momento, retorno a Arthur Bispo do Rosário e Stela do Patrocínio para salvar algumas réstias de sanidade.
A arte e o seu mercado na Alemanha
Seria impossível esboçar um panorama sobre as artes visuais na Alemanha. É uma das cenas mais vivas da Europa, não apenas com os nativos, mas com os inúmeros artistas imigrantes que fizeram do país sua casa, Berlim em especial. Folhear um destes guias do quem-é-quem no mundo das artes é deparar-se com um sem número de repetições da frase “Vive e trabalha em Berlim” (ou Colônia), seja em publicações seriais como a Art Now da Taschen ou revistas especializadas que fazem carreiras.
No entanto, refiro-me à produção em terras alemãs: produção e criação, não sua distribuição e recepção. Pois não se trata de um mar de rosas, ainda que as aberturas tenham suas trufas e champanha – é mais provável ser Prosecco, ou algum Sekt de supermercado.
A cena é bem menos profissionalizada por aqui do que em outros centros como Londres ou Nova York, com tradições de mercado e galerias desde os anos 1950, quando o pós-guerra viu o surgimento do mercado de arte como o conhecemos hoje. Mesmo que ela tenha se expandido, se globalizado, as regras não mudaram. Se estrelas internacionais como Ólafur Elíasson (Veja vídeo: Olafur Eliasson exibe “Five orientation lights”) e Douglas Gordon vivem, trabalham e têm seus estúdios em Berlim, não é frequente que se possa ver seus trabalhos na cidade. Celebridades das artes pintam, esculpem, compõem aqui, mas é fora que vendem suas obras. Porque é simples: Berlim pode ser sexy, nas palavras do antigo prefeito Klaus Wowereit, mas continua pobre e na corda-bamba da bancarrota. Não há dinheiro, não há colecionadores ricos como em outras capitais. São mais raras figuras como Christian Boros, que após ganhar sua fortuna no ramo da publicidade pôde transformar um bunker da Segunda Guerra em casa e museu particular no centro de Berlim. Há, mesmo assim, galeristas renomados, como Daniel Buchholz, que representa artistas reconhecidos internacionalmente como os alemães Isa Genzken e Wolfgang Tillmans, ou estrangeiros como Cerith Wyn Evans e Henrik Olesen.
Mas Berlim segue atraindo artistas de fim, meio e começo de carreira, alemães e estrangeiros, por seus aluguéis ainda baratos e a possibilidade de espaços disponíveis para projetos visuais, musicais, literários. Neste aspecto, as cenas literária, musical e artística se assemelham. É que a cidade é “nova” demais, tudo foi recomeçado após a Reunificação. Tem menos brilho que Paris e Londres, como na cena da moda, e não é à toa que as duas por vezes se confundam aqui. Mesmo a Bienal de Berlim cambaleia, tentando fincar-se como data importante no calendário do mercado de arte. Está muito atrás de bienais de países oficialmente mais pobres, como a própria Bienal de São Paulo, fundada em 1951. A data mais importante da arte na Alemanha ainda é a Documenta, em Kassel, mas ela ocorre a cada 5 anos. Tão dada ao experimentalismo eletrônico, não é de se admirar que um evento como o Transmediale em Berlim, que reúne o experimentalismo tecnológico no campo das artes e da música, ainda seja mais importante que a Bienal.
Na pintura, o país ainda tem grandes mestres do pós-guerra vivos e ativos, como Gerhard Richter, Georg Baselitz, Günther Uecker e Rosemarie Trockel. Um dos meus favoritos, Sigmar Polke, morreu em 2010. Isa Genzken, já mencionada, é uma das artistas mais respeitadas no país hoje. Mais jovens que estes, Neo Rauch e Albert Oehlen estão juntos deles entre os alemães mais caros no mercado hoje. E, sabemos, preços caros no mercado traduzem-se em prestígio cultural nesta fase terminal do capitalismo. Talvez haja uma relação disso com a recepção de Joseph Beuys, outro nome conhecido no Brasil, mas que sofre na Alemanha por sua hiper-exposição, e, assim como Bertolt Brecht na literatura, passa ainda por uma espécie de purgatório de natureza política, eu arriscaria dizer.
Gostaria de encerrar com ao menos uma recomendação, como fiz nos textos sobre música, cinema e literatura: o jovem artista visual David Schiesser. Nascido em 1989, já vem conquistando seu espaço e eu o admiro por sua integridade, ao manter-se alheio a modas e tendências, seguindo sua visão pessoal. Ele trabalha especificamente com o desenho e o desenho como pintura, recebendo comissões para desenhar diretamente nas paredes de espaços variados, como se pode ver no vídeo abaixo, de Yannic Poepperling. Também tatuador, leva seus desenhos originais para os corpos das pessoas, e é um dos artistas jovens mais interessantes que descobri nos últimos tempos em Berlim. Através de um suporte tão simples como o desenho, ele consegue também chegar ao gesto épico e mítico.
Vídeo:
Recomendações pontuais
No último texto, falei sobre livros pouco conhecidos no Brasil e que dão uma ideia de questões que ainda movem a cultura da Alemanha hoje, desde livros da década de 1920 a obras deste século e autores vivos. Vou tentar neste texto fazer algumas recomendações pontuais, sem discorrer demais (como é meu hábito) sobre elas. Algumas serão já, com certeza, conhecidas dos que acompanham as artes da Alemanha, mas espero poder surpreender com uma ou outra coisa os especialistas. De qualquer forma, há trabalhos aos quais sempre vale a pena voltar. Neste texto, falarei sobre cinema e música.
No cinema: falei no texto anterior sobre Alemanha no outono (1977) e o documentário Black Box BRD (2001). Quem é o cineasta alemão mais conhecido no Brasil? Eu apostaria que é Wim Wenders, seguido de Rainer Werner Fassbinder. O que vem correndo neste século? Antes de deixar o Brasil, sei que a comédia Adeus, Lênin! (Good bye, Lenin!, 2003), de Wolfgang Becker, havia tido bastante público, e é um filme realmente bom. Tratando de forma muito distinta não da transição entre Alemanha dividida e Alemanha unificada, mas da ditadura comunista antes da Queda do Muro é A Vida dos Outros (Das Leben der Anderen, 2006), de Florian Henckel von Donnersmarck, e conhecido no Brasil por ter sido premiado com o Oscar de melhor filme estrangeiro. Entre os dois, um dos filmes mais discutidos por aqui foi a produção austríaca/alemã com o bizarro título brasileiro Os Edukadores (Die fetten Jahre sind vorbei, 2004), de Hans Weingartner. O filme trata do desengano de uma Alemanha rica mais completamente entregue a uma vida de indolência e apatia política. Um filme importante por tratar de uma questão premente na Alemanha, a imigração de trabalhadores de outros países, é O Albanês (Der Albaner, 2010), de Johannes Naber, que ganhou o prêmio Max Ophüls. Talvez seja, ao lado de A Vida dos Outros, meu filme alemão favorito dos últimos anos. Também lançado no Brasil, tratando da relação entre alemães e turcos, a maior comunidade de imigrantes da Alemanha, é Contra a parede (Gegen die Wand, 2004), de Fatih Akin. Um grande filme. Outras recomendações: Nirgendwo in Afrika (2001), de Caroline Link; Was nützt die Liebe in Gedanken (2004), de Achim von Borries; Requiem (2006), de Hans-Christian Schmid; Jerichow (2008), de Christian Petzold; Schlafkrankheit (2011), de Ulrich Köhler; e ainda Freier Fall (2013), de Stephan Lacant. Eu me concentrei em diretores alemães. Do contrário, recomendaria as fimografias completas dos austríacos Michael Haneke e Ulrich Seidl.
Na música: brasileiros conhecem os grandes grupos alemães dos anos 1970 e 80, como Kraftwerk, Can, Tangerine Dream, Neu!, Faust, Ash Ra Tempel e Amon Düül. Talvez a mais popular e influente, ao menos na Alemanha, tenha sido Ton Steine Scherben, com Rio Reiser à frente, um cantor-compositor comparável em importância na Alemanha a Chico Buarque ou Caetano Veloso no Brasil. Como tal trabalho depende da compreensão das letras, não é difícil perceber por que Rio Reiser jamais se tornou um nome muito conhecido fora da Alemanha. Nos anos 1980, especificamente, o punk e o industrial de bandas como Malaria!, Palais Schaumburg, DAF e Die Tödliche Doris uniram-se ao que vinha ocorrendo na Inglaterra. Da época, o Einstürzende Neubauten segue ativo e influente. Dos anos 90, a banda alemã mais conhecida e que chegou a um público internacional foi Mouse on Mars. Mas outras bandas seguiram o caminho de experimentação das duas décadas anteriores, como Kreidler e outros artistas que começaram no final dos anos 90 e foram se tornando mais conhecidos neste século, como Apparat, T.Raumschmiere e Modeselektor. Não sei quantos destes são conhecidos dos leitores desse texto. NO incício deste século, as bandas mais conhecidas da Alemanha iam de um duo pop como Stereo Total à banda de punkcore Surf Nazis Must Die!, do vocalista Florian Pühs – mas ambas pertencem a nichos bastante específicos. Seguem então alguns nomes e links de bandas e produtores ativos hoje, das mais variadas idades e estilos:
Perera Elsewhere
Lea Porcelain
Moderat (Apparat + Modeselektor)
Pantha du Prince
Tensnake
Ziúr
Sizarr
Crooked Waves
Ausschuss
Alle Farben
mobilegirl
Mechatok
Niclas Hille
Alemães no Brasil, hoje
No Brasil, tende-se a ler os alemães mais noturnos, de uma veia mais mística, como Novalis, Hölderlin e Rilke [“Autores alemães e sua influência no Brasil“, DW Brasil, ‘Contra a Capa’, 10.07.2014]. O grande romancista de língua alemã conhecido no Brasil é Thomas Mann, e talvez A Montanha Mágica (1924) siga sendo para leitores brasileiros o grande romance modernista alemão. Thomas Mann fez parte de um Modernismo Internacional que se entregou a uma escrita alegórica, muito marcada tecnicamente ainda pela prosa do século XIX. Isso desaguaria na escrita do outro autor alemão conhecido no Brasil, Günter Grass – também ele todo alegórico.
Mas existem outros lados e outras alas da escrita alemã. André Vallias fez-nos uma contribuição inestimável ao traduzir Heinrich Heine para o português da forma como o fez. Gosto de pensar em Heine como um dos patronos desta ala da literatura em língua alemã, a mais terrena, com os pés no chão – e menos entregues a alegorias.
Em 2009, a Martins Fontes lançou no Brasil uma nova tradução do outro grande romance modernista alemão: Berlin Alexanderplatz (1929), de Alfred Döblin. Juntos, o romance de Mann e o de Döblin mostram, com técnicas distintas, o desastre que se avizinhava após a Primeira Guerra Mundial. Berlin Alexanderplatz é, para muitos, um romance mais moderno em sua escrita, e, assim como Mann desaguaria em Grass, creio que Döblin desagua em outros autores, desconhecidos no Brasil, como Wolfgang Koeppen e seu Tauben im Gras (Pombas na grama, 1951), que também usa uma técnica de montagem em sua escrita.
Döblin poderia ser chamado do primeiro autor da „literatura dos escombros“, já no entreguerras, antes desta expressão surgir para designar autores do pós-guerra como os prosadores Alfred Andersch e Heinrich Böll ou o poeta Günter Eich. Deste grupo da “literatura dos escombros”, um dos autores mais respeitados na Alemanha hoje é Arno Schmidt, que ainda aguarda uma recepção maior no Brasil.
Mas se há algo que me alegra é o fato de W. G. Sebald já ter sido amplamente traduzido no Brasil e ter encontrado eco entre autores contemporâneos nossos, como Victor Heringer, que escreveu uma série de comentários sobre o romance Austerlitz (2001). Sei que pareço obcecado com Sebald, mas seu caso é exemplar demais em todos os sentidos, e a recepção de sua obra continua me chocando: ainda razoavelmente obscuro em seu próprio país, talvez seja hoje, justamente, o autor alemão mais reconhecido fora da Alemanha. A Companhia das Letras lançou vários volumes, como Os anéis de Saturno, Austerlitz, Os emigrantes, Vertigem e Guerra aérea e Literatura.
Este último livro talvez explique a “obscuridade” de Sebald na Alemanha. Pois é possível que não se trate de desconhecimento de sua obra, mas do incômodo que ela traz a uma Alemanha que gostaria de acreditar já ter exorcizado os demônios do passado. Sebald enfia o dedo na ferida. Como é descrito o ensaio na página da Companhia das Letras, o autor trata de um “recalque do trauma nazista, com os sentimentos de culpa e humilhação durante o período de frenética reconstrução material do país que ficara em ruínas depois da guerra. Completa o volume um estudo sobre o escritor alemão Alfred Andersch, tomado por Sebald como caso exemplar do intelectual que teria se preocupado mais em reescrever o seu passado e retocar a sua imagem moral do que descrever o que de fato ocorreu durante o Terceiro Reich.”
Essas acusações retornam no trabalho, por exemplo, de um jovem poeta como o berlinense Max Czollek, também judeu como Sebald, que escreve hoje a partir de uma caça a demônios que seguem se escondendo sob os tapetes do país.
Quando se pensa no tom distinto das literaturas alemã e austríaca no pós-guerra, é necessário lembrar-se dos destinos diferentes dos dois países após 1945. A Alemanha estava em ruínas, e passava pelo processo de desnazificação, a fórceps, de suas instituições. A Áustria que, segundo autores como Thomas Bernhard, havia confortavelmente se colocado ao lado das “vítimas do nazismo”, apesar de seu passado colaboracionista, atrairia maior ira de seus escritores, como o próprio Bernhard, ou mais jovens, como Peter Handke. Isso tudo é muito importante para compreender um período de convulsões na Alemanha como os anos 1960/1970, com grupos como a Facção do Exército Vermelho em atividade.
Sobre algumas das consequências do que escreve Sebald, recomendo dois documentários excelentes: o filme coletivo Deutschland im Herbst (Alemanha no outono, 1977), com episódios dirigidos por Rainer Werner Fassbinder, Volker Schlöndorff e Alexander Kluge, entre outros, e também o documentário Black Box BRD (2001), de Andres Veiel, que segue o destino de uma das últimas vítmas de um atentado da Facção do Exército Vemelho, o banqueiro Alfred Herrhausen, e o último membro da RAF a ser morto pela polícia, o jovem Wolfgang Grams. O diretor nos apresenta uma radiografia das fraturas na sociedade alemã em plena década de 80, ainda não curadas, e que talvez tenham apenas se agravado após a Reunificação.
Feedback
Comments deactivated