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Dylan, ainda

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Sei que para o mundo do jornalismo cultural como é praticado hoje, o gancho passou, o assunto é velho. Mas permitam-me usá-lo para discutir uma questão que não passou. Afinal, diz-se que Bob Dylan sequer aceitou o prêmio de forma oficial ainda, com exceção de uma postagem em sua página, mais tarde retirada. Eu próprio saudei o prêmio a ele na página de cultura da DW Brasil [“Um prêmio a um trovador moderno”], mas dissenso continua sendo uma coisa positiva no mundo. Minha defesa da decisão, em primeiro lugar, não havia sido uma defesa de Bob Dylan – que não precisa dela. Mas da tradição oral, do reconhecimento desta como origem da poesia. Como ironizou o poeta sonoro austríaco Jörg Piringer nas redes sociais, “um prêmio a um poeta com gravações, bem-vindos ao século 20!”. A ironia de ver o autor de “Masters of War” ganhar um prêmio com dinheiro feito com dinamite não me escapou. Mas, afinal de contas, esta ironia ocorre todos os anos quando o prêmio que deve servir de maquiagem para o legado de Alfred Nobel é anunciado, o Nobel da Paz, com exceção do ano, é claro, em que Barack Obama o recebeu enquanto fazia guerra em alguns países.

Portanto, há sim uma certa alegria pelo prêmio a Dylan, da minha parte. Mas não por ele, que não precisa deste prêmio. Continuo acreditando: a poesia ainda é a arte mais popular do planeta, sempre foi e será, mas trata-se aqui da poesia cantada e falada, porque a população do mundo jamais abandonou a tradição oral, apesar das narrativas históricas de velhos acadêmicos. A despeito deles, vai muito bem a tradição oral, ainda que em tantos casos esta separação marcada demais entre poesia-para-a-voz e poesia-para-a-página tenha tornado preguiçosos os poetas cantores ao escrever seus textos, e tediosos demais os poetas escritores ao compor os seus. Dylan não precisa deste prêmio porque seu legado está seguro, seus poemas cantados ainda são… cantados. E é aqui que se torna imperativo perguntar: a Academia Sueca por acaso sabe que o mundo é mais que seu Noroeste, também tem um Nordeste, um Sudoeste e um Sudeste? Outro homem branco do Noroeste recebe o prêmio, compondo na língua do Império, a inglesa? Portanto, me alegro com muitas ressalvas. Sim, eu sei que é apenas um prêmio. Mas tais coisas têm muito poder, poder que poderia ser usado para salvar obras importantes que estamos perdendo.

Vamos esquecer das nações, por um segundo. A ideia de literatura nacional é outra velharia que não me interessa muito. O que me importa é língua. Quantas línguas receberam o prêmio?

Inglês: 27
Francês: 16
Alemão: 13
Espanhol: 11
Sueco: 7
Italiano: 6
Russo: 6
Polonês: 4
Dinamarquês: 3
Norueguês: 3
Chinês: 2
Grego: 2
Japonês: 2
Árabe: 1
Bengalês: 1
Tcheco: 1
Finlandês: 1
Hebraico: 1
Húngaro: 1
Islandês: 1
Provençal: 1
Português: 1
Servo-Croata: 1
Turco: 1
Iídiche: 1

Como se pode ver, as línguas que serviram de arma ao colonialismo europeu estão muito bem cuidadas. A Academia Sueca voltou os olhos para a África quatro vezes e para a África subsaariana, três: em duas delas, premiou escritores brancos da África do Sul, Nadine Gordimer e J. M. Coetzee. Com todo o respeito a Coetzee, mas quem pode argumentar que se tratava de uma escolha incontornável? O único autor negro do continente a receber o prêmio foi Wole Soyinka. E o egípcio Naguib Mahfouz é o único identificável com o mundo árabe. O prêmio a Dylan, outro americano, significou portanto esnobar mais uma vez escritores como o queniano Ngugi wa Thiongʼo, o moçambicano Ungulani Ba Ka Khosa, a ganesa Ama Ata Aidoo e o somálio Nuruddin Farah, sem mencionar os mortos dos últimos anos, como o sudanês At-Tayyib Salih, o nigeriano Chinua Achebe e a argelina Assia Djebar. Ou, se era hora de premiar a poesia cantada e falada, imaginem o efeito positivo, cultural e político, se Sotigui Kouyaté ou Dan Maraya Jos tivessem sido premiados? Ou o jamaicano Linton Kwesi Johnson, vivo?

Assim, apesar de ter saudado e ainda saudar de alguma forma o prêmio a Dylan, gosto muito de dissenso, e cito aqui outro problema com esta declaração do poeta brasileiro José Rodrigo Rodriguez: “A transgressão das fronteiras entre arte ‘popular’ e arte ‘erudita’ tinha bem mais sentido na época em que o ‘erudito’ não havia se tornado um campo de resistência, atacado por todos os lados pela pressão de dar lucro, pela demanda de ser compreensível e pela exigência de ter ‘relevância social’; lógica falsamente popularizante, embutida em quase todos os programas de incentivo cultural governamentais. Hoje, gestos assim correm o risco de soarem passadistas, repetitivos e de reforçarem a lógica do vencedor.”

Há então em mim uma tristeza e uma alegria inconciliáveis com este Nobel a Bob Dylan. Estamos perdendo línguas e todos os poemas, canções e épicos contidos nelas a um passo assustador. Imaginem quanto Gilgamesh, quanta Odisséia e quanto Popol Vuh perdemos para sempre! Portanto, viva a tradição oral! Este é o mundo do bardo Taliesin, do século 6; é o mundo de trovadores como Arnaut Daniel e sua letra-de-música, aquela maravilhosa sextina; de Minnesängern como Walther von der Vogelweide; mas também de griots como Dembo Kinté e de um poeta épico do século 20 como  Avdo Međedović, que levou tanta poesia consigo para o túmulo. Este é o mundo da miríade de poéticas orais dos povos ameríndios, e daquela tradição viva ainda que anônima do “landay”, das mulheres afegãs. Como seria bom se a Academia Sueca usasse o poder que tem para chamar nossa atenção para estas grandes tradições, algumas delas distantes do Noroeste do mundo.

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segunda-feira 24.10.2016 | 11:47

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Parábola do solista e do coro (ou Estudos em Literatura Masculina Branca Heterossexual)

O mundo literário vive aos solavancos entre polêmicas e controvérsias. Ou, no linguajar mimoso das redes sociais, o meio vive de tretas. Algumas tornam-se célebres, a maioria é esquecida ao raiar do novo dia. O que nunca falta é polêmica. Falta por vezes perspicácia, inteligência, elegância – mas a polêmica nossa de cada dia nos é dada. À desta semana: neste sábado, Bolívar Torres publicou o artigo “Livros com protagonistas gays apontam para naturalização do tema” [O Globo, 15.10.2016]. A reação foi, digamos, pródiga em bile. E ainda que possa ter estrapolado, ela é compreensível. Pois o artigo, que não é crítica literária mas mera crítica de costumes, é politicamente um desastre. O que é uma grande pena, pois estou certo de que o autor pensava em contribuir com o debate político. Gostaria de deixar claro, logo neste primeiro parágrafo, que não dirijo aqui um ataque pessoal aos autores discutidos ou a seus livros. Nem sequer a Bolívar Torres, autor de artigos no mesmo jornal que eu pessoalmente li com prazer no passado. Mas, em nome de uma mudança verdadeira de paradigmas culturais, há exortações que precisam ser feitas. E o artigo falha em suas premissas de forma desastrada e desastrosa.

Pois em pleno 2016, um artigo discutindo algo ligado à homossexualidade comete expressões como “opção sexual” e “clichê do gay afeminado” – além do uso de quatro palavras com a raiz em “natura” e prodigiosas declarações sobre “nicho gay” – num país como o Brasil e neste ambiente político virulento. Do nicho ao gueto é um salto de cabrita. O artigo discute, de forma que não é literária, obras de Samir Machado de Machado, Bernardo Carvalho, Daniel Galera, Victor Heringer e Michel Laub, todos homens. Deixando claro que a maioria não é gay. O “gancho”, como se diz em linguagem jornalística, foi terem todos publicado romances com personagens centrais homossexuais. Bolívar Torres escreve que, nestes livros, “o tema surge naturalmente em uma história escrita para um público amplo e irrestrito.”

Ora, por quê? Eram para um público minúsculo e restrito os livros de Oscar Wilde, Marcel Proust, Jane Bowels, Gertrude Stein, Jean Genet, Lúcio Cardoso, Djuna Barnes, Pier Paolo Pasolini, Virginia Woolf, Constantino Cavafy, Meridel Le Sueur, James Baldwin, Muriel Rukeyser, Audre Lorde, Roberto Piva, Al Berto, Manuel Puig, Gerard Reve, Hubert Fichte, Adrienne Rich, Néstor Perlongher, Yevgeny Kharitonov, Langston Hughes, Severo Sarduy, William Burroughs? Estes falharam miseravelmente em levar a “temática” a um público amplo e irrestrito, mas agora O Globo nos traz as boas novas de que o pior passou, pois agora a temática está em mais hábeis mãos? Ou são estes livros agora para um público amplo e irrestrito apenas porque seus autores são vistos como homens heterossexuais?

Gostaria muito de acreditar que se trata, no caso da grande imprensa, de um interesse pela experiência dos milhões de cidadãos homossexuais brasileiros, homens e mulheres que sofrem violências verbais e físicas diárias, mas a impressão que se tem é a de que se tratava de mais uma oportunidade para dar espaço à fina flor da virilidade branca nacional, tão bem representada por Daniel Galera, herdeiro celebrado de gênios da grande literatura masculina branca heterossexual contemporânea que tem por decanos atuais Rubem Fonseca e Dalton Trevisan, dois escritores geniais e importantíssimos. Se há provocação e leve sarcasmo aqui, prometo que não há ironia. Permita-me qualificar esta proposição: há duas maneiras de se resolver a questão do nicho: se Ricardo Aleixo e Conceição Evaristo fazem literatura negra, então certamente Michel Laub e Daniel Galera fazem literatura branca. Se Veronica Stigger e Zulmira Ribeiro Tavares fazem literatura feminina, então certamente Michel Laub e Daniel Galera fazem literatura masculina. E se Horácio Costa e Silviano Santiago fazem literatura homossexual, então certamente Michel Laub e Daniel Galera fazem literatura heterossexual. Se há algo em que o cânone brasileiro é pródigo, é em literatura masculina branca heterossexual. Ou seja, em literatura não universal – não no sentido que se dá ao termo. Personagens dos contos de Trevisan e Fonseca estão muito distantes da minha experiência e da experiência de outros amigos que são homossexuais, negros e mulheres.

Há outro ângulo, quase “universalista”: se leitores que não são homens, não são brancos e não são heterossexuais são capazes e possuem inteligência e sensibilidade suficientes para ler e apreciar LITERARIAMENTE autores como Rubem Fonseca e Dalton Trevisan (ou Ernest Hemingway e Jack Kerouac), ainda que distantes de suas verdadeiras experiências biográficas, por que será tã difícil ao leitor que é homem, branco e heterossexual ler e apreciar LITERARIAMENTE autores como Lúcio Cardoso e Roberto Piva, ou James Baldwin e Audre Lorde? O que torna a experiência de Kerouac e Hemingway universais, e as de Baldwin e Lorde experiências de “nicho”, esta palavra asquerosa? Escolho Baldwin e Lorde aqui por serem autores de qualidade literária indiscutível, e congregarem em suas experiências não apenas a discriminação por sexualidade, mas ainda por racismo e misoginia.

Se há temas que o artigo “naturaliza”, são a ideia de “opção sexual” – que já deveria estar claro ser incorreta ou incompleta política, epistemológica, psicológica e cientificamente – e a ideia de que o “gay afeminado“ (este adjetivo machista e homofóbico) seria um “clichê”. O artigo pergunta: “a profusão de personagens gays na literatura mainstream brasileira, protagonizando livros que escapam de nichos e rótulos, seria um sinal de que o universo LGBT está se tornando algo natural em nossa produção?” – Permitam-me responder: ora, quem senão a imprensa (dita cultural) brasileira é responsável pelo fato de que, como escreve Bolívar Torres, “até pouco tempo atrás, quem escrevesse sobre homossexualidade corria o risco de ter sua obra reduzida à etiqueta de ‘literatura gay’”? Aparentemente, Raul Pompeia, Mário de Andrade e Lúcio Cardoso não são “mainstream” suficiente. E responsável por isso é até mesmo um artigo bem intencionado como este ao insinuar que é necessário que homens brancos heterossexuais legitimem tais lugares de fala.

E há os problemas que não são do artigo, mas da mentalidade de um par de escritores ali entrevistados. Daniel Galera diz que seu interesse está no “significado de virilidade”. Ou seja, o interesse dele está, no fundo, em si. Não é realmente um interesse pela experiência homossexual. É uma pesquisa sobre o macho. E, é claro, são os autores heterossexuais que precisam “naturalizar o tema”. Claramente, precisam fazê-lo primeiro nas próprias cabeças, antes de se lançar a um jornal de gigante circulação com frases como “clichê do gay afeminado” e “opção sexual”, sem perceber que esta útima coloca quem a diz ao lado de Silas Malafaia, por implicação, e outros que acreditam ser uma “opção sexual” a homossexualidade e portanto passível de “desopção“ ou cura. Quanto à ideia de Vivian Wyler, editora da Rocco, sobre os livros de Gore Vidal e E. M. Forster – de que “sua chancela para a estante geral era a delicadeza da abordagem, mais sensível que explícita, mais insinuada”, ora, esta é simplesmente a diferença entre literatura e os classificados de uma revista pornográfica.

O artigo é politicamente um desastre, e sua única intenção era uma discussão política, já que não há nele algo que possa ser chamada de discussão literária. Veja bem: os homens brancos heterossexuais bradam tanto contra o politicamente correto, de que é a qualidade literária que importa. Mas quando chega a hora de louvar a coragem civil de um autor, será possível que mais uma vez os parabéns têm que ser reservados a homens brancos heterossexuais? Se suas carrerias correm qualquer “risco” por criarem personagens homossexuais, eu garanto que o risco não vem dos cidadãos homossexuais brasileiros. Vem da mentalidade por trás da linguagem que usa expressões como “opção sexual” e “clichê do gay afeminado”. E de quem mesmo é esta mentalidade?

Quanto à questão da alteridade ficcional: deveríamos parabenizar autores masculinos heterossexuais por criarem personagens homossexuais? Alguém parabenizou Clarice Lispector por criar aquela personagem masculina difícil e central em A Maçã no Escuro, ou embaralhar de vez nossas noções de alteridade em A Hora da Estrela, autora que cria um autor que cria uma personagem feminina? Alguém parabenizou o homossexual masculino Mário de Andrade por criar aquela heterossexual feminina em “Atrás da Catedral de Ruão”? Meus parabéns, em termos de alteridade ficcional, iriam antes a autores humanos que criam personagens de outras espécies animais, como Yoko Tawada em Memórias de um urso polar, ou aquela pérola de alteridade que é “Meu tio, o iaueretê”, de João Guimarães Rosa.

E é uma pena ver um crítico tão arguto quanto Silviano Santiago trazendo à baila uma ideia mercadológica espúria como “bromosexual”, quando já conhecemos não apenas o “bromance” como o caráter homoerótico de várias associações masculinas. Que vem literariamente desde a amizade amorosa entre Jônatas e Davi no texto bíblico e a possível lenda do Batalhão Sagrado de Tebas. E este não é o país de Raul Pompeia e O Ateneu? A apresentação da trama entre sexualidade e gênero não precisa destes romances, que imagino sejam excelentes, para mostrar-se complexa no Brasil. Este é o país, além de O Ateneu, de “Frederico Paciência” de Mário de Andrade, Crônica da Casa Assassinada de Lúcio Cardoso, da poesia de Roberto Piva, sem mencionar textos de autores que já não partilhavam da experiência homossexual em suas vidas pessoais antes de Galera e Laub resolverem “naturalizar” o tema com a ajuda de Bolívar Torres, como Lygia Fagundes Telles e Hilda Hilst. Ou aquela pedra no sapato da crítica em termos culturais de gênero e sexualidade que é Grande Sertão: Veredas. Ou seja, a complexidade de nossas identidades de gênero e sexualidade já andava bastante bem cuidada.

Ainda que eu discorde talvez da posição da ficção do outro nesta discussão, o único nas entrevistas que demonstrou sensibilidade para a complexidade da questão, em minha opinião, foi Victor Heringer, por demonstrar consciência sobre a questão política do lugar da fala e por ver que o problema é o de “representatividade no meio literário.” Portanto, o problema primordial é o fato de que a melhor literatura brasileira está sendo escrita por mulheres e homens, negros e brancos, homossexuais e heterossexuais, mas a grande mídia, como neste artigo d’O Globo, cede lugar à fala apenas do homem branco heterossexual, mais uma vez, legitimando sua posição de autoridade sobre qualquer assunto. O problema é o racismo institucional do meio cultural, assim como seu machismo institucional. E, para mim e para outros nesta última treta do meio literário, este artigo é um exemplo de machismo institucional. O que interessa nesta discussão não é uma possível interdição a homens brancos heterossexuais em criar personagens fora do âmbito de sua experiência. Sem dúvida, esta é a natureza da ficção. O problema é que artigos como este tiram de autores homossexuais, negros e mulheres, o seu lugar de fala e o doam de novo e de novo a homens brancos heterossexuais.

Permita-me encerrar esse texto com a parábola prometida no título: Era uma vez, no Ocidente, um tempo em que só falava o homem branco heterossexual. O homem branco heterossexual falava de seus problemas, seus dilemas, seus medos, seus mistérios. E por tanto tempo no Ocidente falou apenas o homem branco heterossexual de seus problemas, seus dilemas, seus medos e seus mistérios, que o homem branco heterossexual começou a acreditar que seus problemas, seus dilemas, seus medos e seus mistérios eram também os problemas, os dilemas, os medos e os mistérios de todos: dos homens negros, das mulheres brancas, dos homossexuais negros, dos homossexuais brancos, das mulheres negras. Ora, ninguém mais falava, além dos homens brancos heterossexuais, e eles jamais ouviam outros problemas, outros dilemas, outros medos e outros mistérios. Passaram a acreditar que o motivo era que os seus problemas, seus dilemas, seus medos e mistérios eram os de todos. Ou seja, universais. Não parecia ocorrer ao homem branco heterossexual que ele só ouvia os seus próprios problemas, dilemas, medos e mistérios, porque todos os outros estavam relegados ao silêncio da senzala, da favela, da cozinha, do inferninho. Então, o homem branco heterossexual não só convenceu a si mesmo que seus problemas, seus dilemas, seus medos e seus mistérios eram universais, como até convenceu muitos homens negros, mulheres brancas, homossexuais negros, homossexuais brancos e mulheres negras que sim, os problemas, os dilemas, os medos e os mistérios do homem branco heterossexual eram também os problemas, os dilemas, os medos e os mistérios deles. Mas eis que as coisas mudaram. Realmente mudaram. Para melhor. No Ocidente tornou-se possível que os homens negros, as mulheres brancas, os homossexuais brancos, as mulheres negras começassem a falar de seus problemas, seus dilemas, seus medos, seus mistérios. Mas o homem branco heterossexual, tão acostumado a ouvir apenas a si mesmo, gritou! E disse: “Mas estes não são os problemas, os dilemas, os medos e os mistérios universais!” Assim, o homem branco heterossexual ofendeu-se e foi ferido – é muito sensível o ego do homem branco heterossexual, pois não teve séculos de experiência de senzala, favela, cozinha e inferninho, que deram aos outros uma pela grossa! –, porque de repente estas novas vozes começaram a insinuar que alguns dos problemas, dilemas, medos e mistérios tidos até então por universais, eram apenas os problemas, dilemas, medos e mistérios do homem branco heterossexual. O que em NADA diminui em angústia estes problemas, dilemas, medos e mistérios, especialmente quando muitos deles são compartilhados. Mas não da mesma forma. Então surgiu naquela terra distante e mítica, o Ocidente, um coro, um coro desafinadíssimo, porque por séculos não puderam cantar juntas estas vozes, cantar e clamar por soluções e remédios a seus problemas, dilemas, medos e mistérios, compartilhados ou muito específicos. Haverá um dia harmonia? Ela é sequer desejável? Pessoalmente, espero que venha um dia uma harmonia a este coro desafinado. Mas posso dizer uma coisa: pessoalmente, espero que não haja regente, e se houver, não admitirei que o regente do coro seja um homem branco heterossexual.

Por fim, queridos, chega de solistas. Vamos cantar juntos, mesmo que desafinados. Como escreveu Carlos Drummond de Andrade, ele próprio que fez declarações tão desastradas e desastrosas sobre a homossexualidade: “O presente é tão grande, não nos afastemos.
/ Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.”

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quarta-feira 19.10.2016 | 12:17

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Aos holandeses que se esqueceram de suas invasões

Frans Post - "Visão do Rio São Francisco com o Fort Maurits e uma capivara" (1639)

Frans Post – “Visão do Rio São Francisco com o Fort Maurits e uma capivara” (1639)

Sempre que converso com holandeses do meio literário, fico ligeiramente chocado e até irritado com o fato tantos desconhecerem a história das invasões holandesas no território do Brasil colonial e sua presença por mais de duas décadas em Pernambuco. No último fim de semana, ao participar do festival literário “Read My World”, em Amsterdã, confirmei essa impressão. Ao abrir minha leitura, brinquei que isso me irritava por ter sido torturado quando criança com aulas de História sobre as Invasões Holandesas (1624-1654), e que o mínimo que a população holandesa de hoje podia fazer era saber que elas aconteceram. Percebi como algumas pessoas ergueram as sobrancelhas e se entreolharam, como quem diz: “Do que ele está falando?”

Vivendo na Europa há tantos anos, um dos meus passatempos favoritos é lembrar os europeus de seu desconfortável passado colonialista, especialmente quando ele retorna, às vezes ainda hoje, com tons  de ufanismo e veleidades civilizatórias. Outra piada minha recorrente nesse fim de semana por lá foi exigir açúcar quando os amigos traziam o café – sempre sem açúcar, já que por causa do adoçantezinho seu país havia invadido o meu.

Mas, piadas à parte, é realmente uma pena que Brasil e Holanda não tenham relações um pouco mais estreitas, tendo seus passados entrelaçados em episódios que, ao menos para nós brasileiros, foram importantes. Mesmo a figura de Maurício de Nassau (1604–1679), personagem marcante em nossa história colonial, frequentemente acaba confundida em conversas com o príncipe holandês Maurício de Orange-Nassau (1567–1625). Talvez seja compreensível, já que o “nosso” Nassau era um príncipe do Sacro Império Romano-Germânico, não holandês, empregado pela Companhia das Índias Ocidentais, que não entrou na história holandesa com a mesma pompa da contraparte oriental. Tampouco foi um prejuízo para eles, que fizeram muito dinheiro nas terras pernambucanas e deixaram algumas marcas com sua Cidade Maurícia no Recife, assim como cicatrizes em Olinda. Pensando bem, porém, quem de nós se lembra de Henrique Dias, um dos líderes negros da Insurreição Pernambucana?

Algo disso talvez seja corrigido com a exposição de desenhos de Frans Post, atualmente no Rijskmuseum de Amsterdã, que visitei no sábado. São desenhos até então esquecidos, 34 ilustrações descobertas por Alexander de Bruin (curador da coleção de imagens do museu), durante o processo de digitalização do acervo. Haverá um simpósio dedicado a Frans Post no dia 22 de novembro, com a presença de Jane Turner, Pedro Corrêa do Lago, Alexander de Bruin, e outros. Mas, ao visitar a exposição, confesso que aquilo que mais me marcou e chamou a atenção foi a coleção de animais da fauna brasileira empalhados pela comitiva de Maurício de Nassau. Há uma sucuri na sala de entrada, e a primeira sala com peças visuais tem como recepcionista uma capivara, congelada em sua caixa de acrílico, diante da famosa pintura de Frans Post Visão do Rio São Francisco com o Fort Maurits e uma capivara (1639). Chamem-me de sentimental, mas fui tomado de tristeza e solidariedade ao ver aquela capivara naquela caixa de acrílico, uma capivara do século 17. Não pude deixar de ficar imaginando o que ela havia visto, que Brasil fora aquele, ela que nadou no Rio São Francisco quando este talvez ainda fosse chamado por muitos de Pirapitinga. Saí da exposição com a frase “violência protegida por acrílico” rodando na cabeça.

Capivara capturada, morta e empalhada pela comitiva artística de Maurício de Nassau

Capivara capturada, morta e empalhada pela comitiva artística de Maurício de Nassau

Quanto à Literatura Brasileira na Holanda, o tradutor e escritor August Willemsen por anos cuidou de sua divulgação, e seu nome hoje é dado a um Instituto, o Stichting August Willemsen, que pretende continuar esse trabalho. Nos dias 21 e 22 de outubro, por exemplo, o instituto promove uma conferência sobre o Grande Sertão: Veredas (1956), de João Guimarães Rosa. A biografia de Clarice Lispector escrita por Benjamin Moser foi traduzida há pouco, e será realizado no dia 28 deste mês um evento no teatro da Stichting Perdu dedicado às traduções recentes para o holandês das crônicas da brasileira, reunidas em A descoberta do mundo (De Ontdekking van de Wereld, Privé-Domein, 2016), com tradução de Harry Lemmens. O evento conta com a presença de Benjamin Moser, Xandra Schutte, Arthur Japin, Lilian Vieira e Nina Polak.

No Brasil, o jovem tradutor Daniel Dago mantém com seu entusiasmo a conversa sobre a literatura holandesa acesa entre nós. Em grande parte, ele a acendeu com sua presença digital recentemente. O autor holandês mais conhecido no Brasil é possivelmente o mesmo que comparece em outros lugares, o poeta e romancista Cees Nooteboom, que teve lançados no país os livros Caminhos para Santiago (Nova Fronteira) e Paraíso Perdido (Companhia das Letras), por exemplo. A editora carioca Rádio Londres vem lançando trabalhos de um autor mais jovem como Arnon Grunberg, que passou recentemente com pompa pelo Brasil, e a Intrínseca lançou Herman Koch.

Um dos autores holandeses mais interessantes que descobri ultimamente, graças a Piet Joostens, foi Jeroen Mettes (1978-2006), que se matou com menos de 30 anos há uma década. Seu trabalho foi reunido no volume N30, um trabalho híbrido de ensaio e poesia do qual pude ler em inglês alguns capítulos. Também ficaria muito feliz em ver o grande Gerard Reve (1923-2006) mais conhecido no nosso país. E sabe o que seria bonito? Ver o romance-ideia de Paulo Leminski, seu Catatau (1975), traduzido para o holandês com suas alucinações de Descartes no Brasil. Só não queria estar na pele do tradutor.

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terça-feira 11.10.2016 | 11:07

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O nome é Elena Ferrante

“Porque todo mundo está lendo” nunca me pareceu motivo suficiente para ler um livro. Ao menos, não imediatamente. Se estão lendo é porque foi publicado, então se pode chegar a ele em algum momento. Esse era o caso de Elena Ferrante para mim nestes últimos dois anos. Muitos amigos que respeito estavam fascinados pelo trabalho da autora italiana, que ninguém sabia quem era, e estava sim na minha lista seu romance I giorni dell’abbandono (2002), editado este ano no Brasil como Os dias de abandono pelo selo Biblioteca Azul da Editora Globo, com tradução de Francesca Cricelli. A pilha de livros só aumenta. Ali está o Dictee, de Theresa Hak Kyung Cha, logo ali O amor dos homens avulsos, de Victor Heringer, e a obra completa de W.G. Sebald esperando para ser terminada. Como escreveu o poeta britânico Andrew Marvell, “Had we but world enough and time“ (Houvesse mundo bastante, e tempo).

capa de ferranteMas ler um livro de Elena Ferrante tornou-se prioridade para mim este fim de semana, após a ação nojenta e perturbadora do jornalista italiano Claudio Gatti, tentando revelar a identidade da autora que vem há anos pedindo que se respeite sua privacidade, a partir de documentos pessoais sobre a vida financeira de uma mulher italiana, seja ela ou não Elena Ferrante. O artigo foi publicado simultaneamente em inglês no New York Review of Books, em alemão no Frankfurter Allgemeine Zeitung, em italiano no Il Sole 24 Ore, e em francês na página Mediapart. Não vou mencionar mais que isso, muito menos repetir aqui o nome da cidadã italiana que teve seu vida pessoal devassada por um jornalista (homem) para satisfazer algum desejo pessoal de fama e alimentar nossa cultura de celebridades e papparazzi até mesmo no campo da literatura. Caminhar até uma livraria na segunda-feira e comprar a tradução inglesa de Os dias de abandono foi meu ato pessoal de solidariedade com Elena Ferrante.

O que encontrei então no romance da italiana foi uma prosa ágil, sem rodeios e sem floreios, descrevendo a descida de uma mulher aos infernos de uma separação. É fácil entender por que o livro – e imagino que seja o caso de seus outros romances – tenha se tornado um sucesso. É de uma identificação direta, sem romantismo, de um reconhecimento pessoal nesta história de uma mulher que se desespera, deixa suja a casa, espera por dias um telefonema do marido, então corre arrumar-se a si e à casa quando ele diz que vem, e grita, implora, ameaça.

Eu poderia aqui falar da mulher do “Caso do vestido” de Carlos Drummond de Andrade, ou de canções de Chico Buarque de Holanda como “Cotidiano”, mas aqui há uma perspectiva que me parece realmente diferente do corpo feminino, e compreendo por que tantas leitoras falaram em empoderamento através da leitura. Há, de formas distintas, algo disso na exposição do corpo feminino em sua recusa a esconder seus fluidos em alguns livros em prosa das duas últimas décadas, como I Love Dick (1997), de Chris Kraus, ou O meu amante de domingo (2014), de Alexandra Lucas Coelho. Em poesia, penso no trabalho de Adelaide Ivánova e Carla Diacov no Brasil, ou Adília Lopes, Golgona Anghel e Raquel Nobre Guerra em Portugal.

Mas cada autora e cada autor, quando bons, são universos em si, e  Os dias de abandono é um livro forte, um belo livro de Elena Ferrante, seja ela quem for. A cena da invasão das formigas no apartamento de Olga, a personagem principal, ou a cena em que espanca o cão no parque são memoráveis e devem ficar comigo por algum tempo.

O que nos traz agora de volta ao ato de violência de Claudio Gatti e das publicações que editaram seu artigo. Nos últimos dias, houve consternação, raiva, solidariedade e ataques a todos os envolvidos, inclusive a Elena Ferrante e à mulher que supostamente estaria por trás dos livros. Insinuou-se até revolta que a autora tenha ganhado dinheiro com seu trabalho a ponto de poder comprar apartamentos em Roma. Nosso culto a celebridades tomou conta de tudo.

Não era uma lufada de ar fresco ver esta autora famosa recusando-se a participar dela? Não é direito seu não querer revelar detalhes de sua vida pessoal? Não aqui uma total incompreensão do que é a literatura, do que é sua função, exigir que os detalhes da vida da autora autorizem sua escrita porque esta foi tomada por autobiográfica? A colunista Margarete Stokowski do Spiegel chamou o artigo de Gatti de um ato de violência. Estou plenamente de acordo. No Die Zeit, Iris Radisch vai mais longe, intitulando seu artigo Nein heisst Nein (Não significa Não), chamando o artigo de Gatti de estupro.

O artigo, ainda bastante mal escrito, foi uma amostra de indecência e falta de ética do jornalista e de seus editores, mais preocupados com algumas visitas a mais a suas publicações do que conscientes do respeito necessário aos últimos fiapos de dignidade aos quais nos agarramos neste mundo.

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quarta-feira 05.10.2016 | 13:57

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Hubert Fichte e a literatura pop alemã

Há cinquenta anos, assim diz a narrativa histórica, nascia em Hamburgo a literatura pop na Alemanha. Em 1966, no Star-Club de Hamburgo, o prosador Hubert Fichte lê pela primeira vez trechos do seu romance Die Palette, publicado mais tarde, em 1968. Die Palette era um clube noturno hamburguês, foco de encontros da jovem intelligentsia e dos outros desajustados em geral da cidade. A personagem principal, Jäcki, faz do lugar sua sala de estar, e o romance é marcado por topônimos e repetições de nomes, num círculo pela cidade que tem o clube como centro. O romance fez de Hubert Fichte uma estrela ascendente da cena alemã naqueles meados da década de 1960, em meio às turbulências políticas da Alemanha Ocidental.

Die PaletteNos anos anteriores, Fichte havia já conhecido a fotógrafa Leonore Mau, com quem faria as primeiras viagens. Em 1963, os dois fundam uma “república” no bairro Othmarschen de Hamburgo, e, no mesmo ano, Hubert Fichte lê para os intelectuais do pós-guerra do famoso Grupo 47 trechos de seu primeiro romance, Das Waisenhaus (O orfanato, 1965). Ali conhece o importante ensaísta alemão Fritz J. Raddatz (1931-2015), homossexual, num momento em que Fichte já começava a questionar sua sexualidade. Esse questionamento desaguaria no delicado romance Versuch über die Pubertät (Ensaio sobre a puberdade, 1974), pioneiro em seu tratamento cândido das agruras sexuais dos tempos de explosão dos hormônios. Ali Fichte discute ainda sua relação e a influência de Hans Henny Jahnn (1894-1959) sobre sua vida.

Em 1971, vem o fato marcante em seu trabalho e que deveria fazê-lo mais conhecido do que é hoje no Brasil: sua viagem à Bahia, assim como ao Haiti e a Trinidade, para estudar o candomblé. Vem com Leonore Mau, que faria fotos importantes dos rituais. Desta experiência surgiria o livro Xango. Die afroamerikanischen Religionen. Bahia. Haiti. Trinidad. (Xangô. As religiões afro-americanas. Bahia. Haiti. Trindade, 1976). Ao mesmo tempo, em uma cultura como a europeia com sua obsessão por gêneros literários, começa a ficar difícil encaixar o trabalho de Hubert Fichte nas estantes. Visto como romancista por uns, como etnógrafo por outros, seu trabalho perde visibilidade no fim de sua vida. O próprio passaria a chamar seus trabalhos a partir de Xango de etnopoesia, como no conceito do poeta norte-americano Jerome Rothenberg. Entre 1973 e 1974, suas viagens o levariam ainda a Tanzânia, Etiópia e República Dominicana.

Em 1974, começa seu trabalho mais ambicioso, marcado por memorialistas homossexuais como Marcel Proust e Jean Genet: seu ciclo de romances conhecido como Die Geschichte der Empfindlichkeit (A História da Sensibilidade). O ciclo ficaria inacabado com a morte de Hubert Fichte aos 50 anos em 1986. Em seu obituário, o amigo Fritz J. Raddatz escreveria sobre o autor que se descrevia como „aquele autor excêntrico, meio-judeu e viado“, e que assinava as próprias cartas por vezes Marcel, Bosswell, às vezes como Madame Bovary ou Madame de Staël, ou ainda Violette Le Duc ou Hubert Alexander von Fichte-Swann [Fritz J. Raddatz, „Der Tod des Aderflüglers: Nachruf auf Hubert Fichte”, Die Zeit, 14.03.1986].

A primeira vez que ouvi o nome de Hubert Fichte foi há 12 anos no estúdio do fotógrafo alemão Heinz Peter Knes, que me recomendou seus livros enquanto conversávamos sobre o que me parecia, à época, a parca literatura queer da Alemanha. Amigos aos poucos me falariam dos alemães Klaus Mann (1906–1949) e Ronald M. Schernikau (1960–1991), de gerações tão diferentes, assim como dos próprios Hubert Fichte e Fritz J. Raddatz, ou da suíça Annemarie Schwarzenbach (1908–1942) e sua namorada Erika Mann (1905–1969), irmã de Klaus, os dois filhos famosos de Thomas Mann.

Este fim de semana ocorrem em Berlim e Hamburgo o que estão sendo chamadas de reencenações de Hubert Fichte, comemorando os 50 anos de sua leitura em 1966. Fui convidado pelo curador Detlef Diederichsen, da Haus de Kulturen der Welt (Casa das Culturas do Mundo) a me apresentar no evento berlinense. Para o evento, preparei um conto que toma um inferninho de Berlim, em Schoeneberg, como foco.

Data

sexta-feira 30.09.2016 | 14:11

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