Mais blogs da DW DW.COM

Sudeste

Céu nublado sobre os montes de Minas Gerais, os mesmos outeiros cantados por Claúdio Manuel da Costa. Que luz leitosa é essa que torna marrom minha roupa preta? Coníferas com ar de perdidas interpõem-se entre embaúbas, eucaliptos, coqueiros. Estamos no Sudeste, lugar nenhum para ornitólogo amador. De fauna, sinal nenhum. Nasci na terra dos paulistas sem metafísica, cuja capital é uma sarna que se espraia. Não, se deserta. O ônibus em que sacolejo partiu da antiga capital do Império e da Primeira República. Na capela imperial, quieta no alto do outeiro da Glória, infante principesco nenhum há-de ser batizado, nem estará correndo agora algum tupinambá por entre aMapa_Rodoviario_Regiao_Sudeste_Brasils árvores da Floresta da Tijuca.

No assento ao lado, cadiuéus e bororos hibernam entre as páginas de Claude Lévi-Strauss. Sei que em breve deixaremos estes restos persistentes de Mata Atlântica e veremos os primeiros sinais de transição para o cerrado. Se ao menos um sabiá cantasse, piasse alto um canário-da-terra. Ninguém há-de me receber em meu destino com um bem-te-vi. O capital expropria pássaros, plantas e sagrações. Dos antigos rituais de iniciação da puberdade, não restam sequer os bailes de debutante.

Não há animais. Nada é silvestre. Apenas estes domésticos importados no calor, vacas prostradas, cavalos prostrados, cães e gatos prostrados. Pelos bueiros, por certo estarão prostrados também os ratos, as ratazanas. Estes são os estados da minha região dentro da União. Mas, nessa terra nossa, união mesmo só a dos cupins, eles próprios atarefados em explorar a madeira do território. O único brasileiro admirável é o joão-de-barro. O guesa em Wall Street já demonstrara: ao fim das nossas negociatas, não nos restará sequer língua articulada, apenas um balbuciar incoeso, um “Mahmmuhmmah, mahmmuhmmah, Mammon”.

A guerra é eterna e não há centímetro de terra neste solo que não se tenha aguado com sangue, adubado com carne humana das mais diversas cores. Na estrada que se desenrola, o capim bordeja tudo. Vejo o primeiro pássaro: um urubu. De uma das espécies animais mais volumosas do território, vem do rádio um rugir que se entende por “algo bom é algo morto”. Mas a espécie deveras populosa do país está calma, quieta, cortando folhas e carregando-as para dentro de suas casas comunitárias.

Pudesse, diria a Minas Gerais que se cuidasse. Que ouvisse a palavra deste paulista que viu morrerem festas de santos e de reis, cujos tataravós um dia falaram a língua geral, não este português com que ora tento malemá admoestar compatriotas imaginários. Nem seria preciso ouvir a mim. Poetas ela tem de sobra, ainda que os desperdice a cada geração, o que ademais fazemos todos nós, brasileiros, tão bem. De resto, a seca nunca respeitou fronteiras, a fome não conhece mapas, apenas estatísticas.

Será um carcará, aquilo ali, que voa agora? Flore, ipê, flore. É setembro. E infeccioso o teu otimismo.

(Escrito no início de setembro, em um ônibus entre o Rio de Janeiro e Tiradentes)

Data

quarta-feira 07.10.2015 | 10:57

Compartilhar

Feedback

Comments deactivated

Na rodoviária

Mãe e filho.

___ Você foi visitar o túmulo do seu pai?

___ Fui. Eu lavei o túmulo, inclusive. Visitei minha-vó-sua-mãe também.

___ Ah, minha-mãe-sua-vó. Que saudade.

___ Tadinha. Não deve ter nem mais osso.

___ Tem. Tem, sim. Tem osso. Tem o cabelo dela. Tem dente.

___ Não, mãe, dente, não. Os dentes ela perdeu antes de morrer.

___ A dentadura dela era só a mandíbula de cima.

___ Eu achava que minha-vó-sua-mãe não tinha dente nenhum.

___ Tinha os de baixo, eu acho. Gente, minha-mãe-sua-vó morreu sem dente? Ai, que memória a nossa.

___ Eu não tenho certeza. Ela não deixava ver. Ela escondia. Acho que ela tinha vergonha de ter perdido os dentes.

___ Como você lembrou onde era o túmulo?

___ Eu tenho a memória nítida de quando criança a senhora ia lavar o túmulo do meu-vô-seu-pai. Bom, na época era só dele o túmulo. O resto tava tudo vivo.

___ É, só tinha meu-pai-seu-vô na época. Parecia tão longe de encher aquele túmulo. Chegou a pegar você no colo. Você era bebê quando ele partiu. Como era bravo. Não precisava falar “a”. Só olhava. Só de olhar, a gente sabia.

___ Quantas vagas ainda tem o jazigo da família?

___ Todas e nenhuma. São quatro. Já tem meu-pai-seu-vô, minha-mãe-sua-vó, meu-irmão-seu-tio e meu-sobrinho-seu-primo.

___ Ele era tão novo. Mas então não cabe mais a gente.

___ Ai, morto não dura muito, meu filho. Já pode tirar todo mundo ou colocar num canto do túmulo para abrir vaga e ficar tudo junto. Adulto, são cinco anos. Criança, são três. O jazigo da família já está lotado e ao mesmo tempo já tem vaga para mais quatro.

___ É só não morrer tudo duma vez.

___ A gente morre aos pouquinhos nessa família. A gente não é de desastre.

___ Só os lentos.

___ É. Os da vida toda.

(Risos).

Data

terça-feira 29.09.2015 | 11:31

Compartilhar

Feedback

1 comentário

Pequena homenagem a um grande editor: Vítor Silva Tavares

Nestes dois últimos anos, sofremos grandes perdas no mundo da língua portuguesa. Em 2014, as mortes se acumulavam, ao que nos parecia, diariamente. Pedíamos trégua ao Anjo pelas redes sociais, esperando que, a esta altura, até a Morte já tivesse perfil no Facebook e no Twitter. E nos seguisse, já que amiga nunca será. Houve um momento em que pensei fazer cartões de visita com a descrição de “obituarista” como profissão.

Este ano, infelizmente, não tem sido diferente. Mas parecemos nos acostumar, como o ser humano se acostuma a tudo. Em Portugal, morreu o grande Herberto Helder. Em Cabo Verde, o grande Corsino Fortes. Na América Latina, perdemos Eduardo Galeano e Pedro Lemebel. A lista seguiria.

Mas, se lamentamos a perda de um grande escritor, precisamos lamentar a morte de um grande editor, e poeta também, de mão satírica firme. Morreu nesta segunda-feira (21/09/2015), em sua Lisboa natal, Vítor Silva Tavares (1937-2015). Sem grandes editores, nós escritores, e especialmente poetas, estaríamos ainda mais sós do que já estamos. No entanto, o próprio talvez se irritasse com minha descrição de seu trabalho principal como de editor. Ele teria dito: “Sou editor? O que é isso? Já me irritei com alguém, que me chamou editor. Também compro a minha comida e cozinho, e não me chamam cozinheiro”.

Vítor Silva Tavares colaborou em diversos jornais de Portugal, foi diretor da editora Ulisseia e, em 1967, fundou o encarte &etc, dedicado à literatura e outras artes no Jornal do Fundão, encarte que se tornaria revista em 1973 e, no ano seguinte, editora. Pela & etc – encarte, revista, editora – passariam alguns dos mais destacados nomes da literatura portuguesa do pós-guerra e do novo milênio, como Mário Cesariny, Herberto Helder, Alberto Pimenta, João César Monteiro, Pedro Oom, Luiz Pacheco, Fiama Hasse Pais Brandão, Adília Lopes e Manuel de Freitas. Trata-se de um catálogo impressionante. E de escritores que não são exatamente conhecidos por fazer concessões ao fácil.

Poucos meses antes de sua morte, Vítor Silva Tavares lançou seu próprio livro Púsias [Lisboa: Editora 50kg, 2015], sobre o qual Hugo Pinto Santos escreveria n’O Público: “Se esta poesia aprendeu alguma lição, na sua rebeldia de não querer a pata dos senhores, foi a da liberdade. Que assimilou por parte de quem menos queria ser mestre: os surrealistas. Esta poesia não tira o chapéu. Porque não é cortês. Por essa ‘grande razão’, não pede licença, nem peca por nenhum ademane. É pura sublevação – ‘Como se alguém arrancasse a cabeça / e a escondesse no bolso das calças’. A única coisa que esta poesia agradece é o salutar trânsito (intestinal) de uma Boa cagada.” [Hugo Pinto Santos, “Porta fora da aula de poesia”, O Público, 13.03.2015].

O artigo cita um dos poemas:

“Que importa pois
a Terceira Mundial
se nós os dois
etecétera e tal?”

Em uma entrevista em vídeo ao programa Arquipélago, Vítor Silva Tavares definiu nestas palavras o trabalho daquele que busca levar aos leitores os livros que respeita: “Enfiar a agulha no palheiro”. Que descrição linda para o trabalho do editor e do crítico nestes tempos de imbecilidades acachapantes. Há toda uma ética e estética aí. Entra para minha lista de guias, como aqueles versos cantados pelos Secos & Molhados: “E no centro da própria engrenagem / Inventa a contra-mola que resiste”, da boca-pena de outro português.

Data

terça-feira 29.09.2015 | 11:23

Compartilhar

Feedback

Comments deactivated

Relato de uma viagem à Ucrânia (última parte)

sinagoga cinemaÉ enorme a Ucrânia. Mesmo para um brasileiro, acostumado às distâncias entre cidades e estados em nosso país, assombra-nos um pouco a Ucrânia após uma década na Europa, onde viagens de cinco ou seis horas em geral implicam o cruzamento de fronteiras, a troca de línguas. Mas então lembramo-nos que a Ucrânia é um país de geografia conturbada, naquelas mudanças que a História consegue impingir à terra. Isso fica claro após visitar quatro cidades no país: Kiev, Kharkiv, Chernivtsi e Lviv, que já foram cidades de vários países sem ter-se movido de seus rios e planícies. A terra do velho rei Oleg. Tornada cristã por Vladimir, o Grande (980–1015). Dos belos signos círilicos, apertada entre impérios como uma família entre vizinhos entrões.

Kharkiv, a segunda maior do país, deixa claro em sua arquitetura sua proximidade da Rússia. Pareceu-me uma cidade brutal, com sua arquitetura soviética, após a destruição pela qual passou durante a Segunda Guerra. Já foi parte do Império Russo. O censo de 1989 demonstrava uma população equilibrada entre ucranianos (50%) e russos (43%), as minorias sendo formadas por judeus e bielorrussos. Foi uma cidade importante para a vanguarda ucraniana, centro daquela que ficou conhecida como “Renascença abortada”, ou “executada”, pois inúmeros escritores, teatrólogos e artistas, como Les Kurbas, Mykola Khvylovy e Valerian Pidmohylny pereceriam durante os expurgos estalinistas. Foi em Kharkiv que ocorreu o massacre de Katyn, quando inúmeros intelectuais poloneses e oficiais do Exército polonês foram executados por ordens soviéticas. É hoje a cidade onde mora um dos mais conhecidos e importantes poetas contemporâneos do país, Serhiy Zhadan, nascido em 1974. Ali conheci o tradutor Serge Lunin, que fala em plena Ucrânia um belo português de Portugal. Com ele caminhei pela cidade, visitei algumas igrejas. A proximidade com a Rússia havia me deixado nervoso na hora de ler meus poemas com o teor que têm. Mas a experiência foi mais uma vez a mesma: quando nos abrimos com certo candor e confiança, é frequente que te estendam a mão.

A viagem para Chernivtsi (Czernowitz), onde a maior parte do festival ocorreria, foi de trem, um trem noturno. Em minha cabine, a poeta Iryna Tsilyk. Casada com um romancista ucraniano, seu marido estava no front, em Dombass. Ali, naquele trem antigo, do período soviético, numa cabine com uma poeta que esperava pelo marido, romancista, voltar inteiro da guerra, não sabia por vezes se estava ainda no século 21. Mas era justamente onde e quando estava, no século 21, e guerras só nos assustam ou espantam como anacrônicas a nós, privilegiados de uma Europa que há séculos se crê mais mundo de Oz que mapa de crateras. A guerra não é estranha para estes povos ao leste, que têm presenciado os maiores massacres do continente nas últimas décadas. De Sarajevo a Donetsk, até quando? A poeta Kateryna Babkina me informou que eu poderia fumar se ficasse na área onde os vagões se engatam, separada do exterior por uma parede de borracha, e permaneci ali algum tempo, escrevendo e conversando com uma horda de jovens que vinham do leste para um festival de música próximo à cidade de Ivano-Frankivsk. Ali conheci um beatboxer, chamado Alex, que insistiu em improvisar comigo enquanto eu vocalizava um dos meus textos. Nascido em Starobilsk, cidade próxima de Lugansk e que pode ser tomada pelo conflito, ele estava a caminho de um festival de música. Senti-me tomado por uma solidariedade e compaixão estranhas por aquele estranho. Pode ter que ir à guerra a qualquer momento, mas enquanto isso não acontecia, lá estava ele sorrindo, fazendo música, a caminho de um festival. Como no poema de Hilda Hilst, pensava “(n)esses que vão morrer. / Iguais a mim também”.

Em Chernivtsi, a Czernowitz natal de Paul Celan, percebe-se imediatamente estar em território do antigo Império Austro-Húngaro. É belíssima a cidade. Poupada pela guerra, não transparece ter sido palco de massacres pelos nazistas. Ali nasceu Paul Celan, ali foram presos seus pais, que morreriam em campos de concentração. A antiga sinagoga é hoje um cinema. Em cartaz, filmes de ação norte-americanos. O prédio da Universidade onde ocorre a abertura do festival é tombado pela Unesco. A cidade toda parece parada num tempo, em paz, tranquila. Os versos de Celan, que traduzi, me vêm à mente:

Leite negro da madrugada que bebemos à tardinha
nós bebemos ao meio-dia e de manhã nós bebemos à noite
nós bebemos e bebemos
cavamos uma cova nos ares onde possamos espreguiçar-nos
Certo homem habita a casa e brinca com víboras que escreve
que escreve quando escurece à Alemanha teu cabelo doirado Margarete

No festival, a poeta Iryna Tsilyk lê um poema seu dedicado ao marido, descrevendo um de seus retornos da guerra, enquanto ela lava seu uniforme, os lençóis onde ele mais tarde a tomará nos braços, tocará seus seios. Ouvindo a tradução do poema para o alemão, não sei julgar se o poema sobreviverá ao tempo. Tudo o que queremos é que seu marido sobreviva, ela sobreviva, seu filho de cinco anos. Fico bastante emocionado com o poema. A paz aparente de Czernowitz parte-se, todos se lembram da guerra. A guerra, ela mesma em aparente calma ao leste.

Minha última cidade na Ucrânia é Lviv, a cidade natal do polonês Zbigniew Herbert, a própria cidade tendo sido um dia polonesa. Num país em guerra, penso no grande poema de Herbert, “Crônica de uma cidade sitiada”:

Segunda-feira: as lojas estão vazias o rato converteu-se em unidade monetária
Terça-feira: o presidente da câmara foi assassinado por desconhecidos
Quarta-feira: rumores de armistício o inimigo pôs a ferros os nossos enviados

não sabemos onde eles os têm presos isto é onde os mataram
Quinta-feira: após uma assembleia tempestuosa a maioria votou contra
a proposta de rendição incondicional apresentada pelos mercadores
Sexta-feira: a investida da peste Sábado: suicidou-se N. N.
o valoroso guerreiro Domingo: não há água repelimos
o ataque até à porta oriental chamada a Porta da Aliança

eu sei que é monótono tudo isto não vai comover ninguém

(Zbigniew Herbert, excerto do poema “Crônica de uma cidade sitiada” em tradução de José Miguel Silva).

Na Estação Ferroviária de Lviv, onde pego um táxi para o aeroporto, vejo um jovem soldado, no rosto e nos ombros o peso do mundo, a marca de todas as desesperanças, sentado no chão, é provável, para economizar as 10 grívnias que haviam me cobrado mais cedo para sentar-me em uma das cadeiras da sala de espera. Quantos anos terá? Não pode ter mais que 21 anos, como tantos dos que encontrei na Ucrânia ao longo da viagem. Começo a escrever um poema sobre ele. Ele jamais saberá, nem mudará qualquer coisa em seu destino, mas quando o ler, em algum outro festival, será como uma oração por sua segurança na guerra. E me perguntarei, tenho certeza: “o que terá acontecido com o soldado da estação de Lviv?”

Data

terça-feira 22.09.2015 | 09:46

Compartilhar

Feedback

Comments deactivated

Relato de uma viagem à Ucrânia (segunda parte)

Soldados, por toda parte. Em nosso caminho, passamos pelo prédio imponente da Universidade que leva o nome do poeta nacional da Ucrânia, Taras Shevtchenko (1814-1861). Era o 1° de setembro, dia de retorno às aulas. As ruas apinhadas de jovens estudantes, belos, saudáveis, com sua rotina de estudos apesar do país em guerra. Ao chegar à Praça da Independência (Maidan Nezalezhnosti), Alexander Burlaka aponta para as pedras do calçamento, cimentadas uma vez mais após terem sido usadas como armas durante os protestos. Ao redor da praça, cartazes em honra dos soldados em Dombass, região no Leste do país onde ficam Donetsk e Lugansk, imersas no conflito entre rebeldes separatistas e forças militares ucranianas. A praça foi o palco dos protestos que levaram à queda do presidente Viktor Yanukovich. Foi também onde ocorreu o maior massacre e homicídio em massa da história da Europa neste século, com mais de 100 mortos. Na praça, vê-se ainda o prédio incendiado da União dos Sindicatos da Ucrânia (Budynok Profspilok), que vinha sendo usado pelos manifestantes como hospital improvisado. Ninguém sabe quem ateou fogo ao prédio. Apaga-se o fogo e conta-se o número de mortos. O ápice do confronto foi entre 18 e 20 de fevereiro de 2014, em especial na madrugada do dia 20, quando atiradores profissionais, do alto de prédios ao redor da praça, tiraram a vida de dezenas de manifestantes e alguns policiais. Até hoje, o caso segue envolto em mistério e teorias de conspiração. Ninguém foi identificado, preso ou julgado. As famílias aguardam em meio à hagiografia e à canonização de entes queridos que se seguem a tais crimes durante revoluções, tomando-os como mártires. Uma expressão que circula sobre os mortos é a “centena santa”, em referência ao número de mortos. Enquanto isso, mães e irmãos esperam que os culpados sejam responsabilizados.

Foto de Alexander Burlaka

Foto de Alexander Burlaka

Foi uma experiência forte estar ali. Imaginar que aquele lugar pacífico, uma praça celebratória, tingiu-se de sangue há apenas um ano. Caminhamos até o Mosteiro de São Miguel, com suas cúpulas douradas, no traçado feito pelos manifestantes em fuga do tiroteio. O mosteiro tornou-se um símbolo da revolução de Maidan, pois, na madrugada de 20 de fevereiro, quando os policiais atacaram os manifestantes às 4 da manhã, com prédios todos fechados devido ao horário, foi no mosteiro que muitos se refugiaram. As forças do governo sitiariam o terreno do complexo religioso até a renúncia e fuga do presidente. A igreja principal é belíssima. O mural de ícones ortodoxos toma conta da parede final da igreja. Senhoras com lenços cobrindo os cabelos apinham-se pelo prédio. Homens entram, beijam os ícones à frente do painel, tocam-lhes com a testa, e então limpam o vidro com flanela ali deixada para este fim. Como cidadão do maior país católico do mundo, é familiar e estranho estar naquele ambiente ortodoxo. O único caminho que nos liga é o barroco do prédio, do mistério. Mas o mistério católico e o mistério ortodoxo mostram suas faces escondidas ali também. A diferença da arquitetura, da organização do prédio. Aquele painel coberto de rostos canônicos implicando uma presença oculta por trás, inacessível.

No torre do mosteiro, vê-se o rio Deniépre cortando a cidade em zona leste e oeste. É enorme Kiev, espraia-se à distância. É muito bonita. Aquela sensação de estar toda ela entre leste e oeste. No meio-fronteira entre as zonas de influência política e militar do Império Austro-Húngaro e do Império Russo. Estes impérios dominando partes de seu território, possuindo-os em rodízio.

Caminhei muito naquela tarde, com Alexander Burlaka apontando os prédios, as vistas. Ao meio-dia, dirigimo-nos para a Estação Ferroviária Central, onde eu encontraria os organizadores do festival, Evgenija Lopata e Slava Pomerantsev, assim como os escritores ucranianos Oksana Zabuzhko, Kateryna Babkina e Dmytro Lazutkin para a viagem de trem a Carcóvia (Kharkiv), onde ocorreriam as primeiras leituras. Entre eles, também a excelente poeta russa Elena Fanailova. Na cafeteria da estação, comprei mais daquela boa e baratíssima comida ucraniana para o privilegiado com euros no bolso. À minha frente, na fila, soldados pediam vodca. A cena causava desconforto. Mais tarde, em conversas com escritores do país, eles relatariam como o alcoolismo vem se tornando um problema sério entre os soldados no front, desde o segundo acordo de Minsk, de 11 de fevereiro de 2015, que visa retomar o fracassado cessar-fogo do Protocolo de Minsk assinado em 5 de setembro de 2014. Retornarei a isso na terceira e última parte deste artigo.

No centro da estação, um lindo soldado jovem, que não poderia ter mais de 20 anos de idade, segurava uma caixa e pedia apoio financeiro para a guerra, que vem quebrando país. Organizados e agrupados os poetas, tomamos o trem para Carcóvia. São cinco horas de viagem. Em uma parada de cerca de 50 segundos na estação de Poltava, cidade natal de Nicolai Gogol, o editor  Slava Pomerantsev, a escritora Oksana Zabuzhko (considerada hoje a mais importante do país) e eu descemos, às pressas, para dar três ou quatro tragos em um cigarro. De pé na estação, enquanto Zabuzhko me falava sobre Gogol,  Pomerantsev quis fazer uma piada e me perguntou se estava com meu passaporte, caso o trem me deixasse para trás. Ele disse que, se me pegassem ali sem passaporte, me enviariam direto para o front em Dombass. Sorri amarelo, nervoso. Pensei na expressão gallows humor. Em meio à guerra e ao desastre econômico, as pessoas usam as armas milenares, estou certo disso, do humor, da ironia e do sarcasmo em meio à sandice.

(continua)

Data

terça-feira 08.09.2015 | 08:23

Compartilhar

Feedback

Comments deactivated