“Os ilhados”, de Ismar Tirelli Neto
A editora carioca 7Letras acaba de lançar Os ilhados (Rio de Janeiro: 7Letras, 2015), terceiro livro do poeta e prosador carioca Ismar Tirelli Neto, nascido em 1985. Com este volume, este jovem senhor de 30 anos de idade mostra-nos que o velho discurso das promessas, quando se trata de jovens autores, já não lhe cabe mais. Ele acaba de dar-nos um livro belo e de mão firme. Alguns pensarão que estou tentando dar passagem só de ida ao livro para dentro do cânone, mas esta anda sendo a última de minhas preocupações. Vocês ainda não notaram o nível do mar? Estamos próximos do fim. Para os seres que habitam o livro de Ismar Tirelli Neto, parece que já estão ilhados em seus prédios de dezenas de andares.
Comecemos pelo título: Os ilhados alerta o leitor, desde a capa, que ele está prestes a entrar em território de isolamento, dando a justa dimensão da existência das personagens que o habitam. Mas, personagens ou vozes? Talvez seja uma discussão inevitável, e tentarei conduzi-la da maneira menos desencaminhadora possível. Formado em parte considerável por textos que ocupam toda a página, de margem a margem, o leitor poderia crer estar diante de um livro que contém, a meu ver, alguns dos melhores contos publicados ultimamente. Mas há também os muitos textos que lançam mão da quebra-de-linha, poesia à vista.
Esta conversa talvez seja ociosa. Mesmo os críticos mais sazonados hesitam à hora de traçar a linha que possa separar os gêneros, especialmente neste nosso tempo de misturas e indefinições. Algumas das funções incorporadas pela prosa nos últimos séculos, como a narratividade que a estrutura na maior parte dos casos, foram desenpenhadas pela poesia por milênios. Mesmo a narratividade como efeito poético, hoje em dia, é usada por alguns poetas contemporâneos, como Marília Garcia em seu Um teste de resistores (Rio de Janeiro: 7Letras, 2014), livro que já discuti aqui [“Marília Garcia e um teste de resistores”, DW Brasil, 12.12.2014]. Mas no trabalho de Garcia vemos outro efeito, através do minar a poesia de seus elementos mais reconhecíveis, como a metáfora ou os vários efeitos sonoros, concentrando-se na voz e na performance. Talvez a maneira mais segura continue sendo a de Roman Jakobson: a função poética é aquela que faz com que a linguagem chame para si a atenção do leitor. Mas são muitas as maneiras com que a linguagem festeja-se. E talvez o mais difícil de definir seja o que poderíamos chamar de controle do tom. Portanto, mesmo estas definições podem ser enganadoras. Como definir o mais poético: a prosa plena de poeticidade de João Guimarães Rosa ou a poesia plena de prosaísmo de Manuel Bandeira?
Num belo retrato do autor, escrito por Bolívar Torres [“Ismar Tirelli Neto e a arte da irrealização”, O Globo, 11.07.2015], a ênfase voltou-se para a biografia de Ismar Tirelli Neto como forma de compreensão deste seu último trabalho. É certo que a personalidade do carioca é formadora de sua escrita, desde o seu primeiro bom poema publicado, aquele que anunciava a promessa, “Ansiedades quanto a uma academia”, incluído em seu primeiro livro, Synchronoscopio (Rio de Janeiro: 7Letras, 2008). Desde então, Ismar Tirelli Neto publicou ainda Ramerrão, pela mesma editora em 2011, e vem se mostrando um dos autores mais atentos e capazes de exercitar o léxico da língua, dono, sim, de uma personalidade que devora tudo e nos devolve artefatos de linguagem, em especial seu interesse pelo cinema e pela canção de fossa. Quando Ramerrão foi lançado, escrevi em linguajar pedante-especializado para a Modo de Usar & Co.: “Uma das características que mais me interessam em seu trabalho é como sua composição, nos melhores momentos, parece oscilar entre hipotaxe e parataxe, entre o linear e o desconexo, criando um encadeamento de imagens e ideias que surpreendem, mas ao mesmo tempo encaixam-se com uma naturalidade da voz, a voz dos bons de papo.”
Pois ler Ismar Tirelli Neto é como estar diante de alguém que fala tanto com inteligência como com exuberância. Suas encadeações de argumento desconexas, sua escrita elíptica, mostram-se tanto nos textos que ocupam toda a página como nos poemas propriamente ditos. Mas é interessante notar como a linguagem se materializa mais nos textos em prosa, com o estranhamento da mescla dos registros culto e popular, resgatando palavras de outros ambientes, porque ali funcionam e nos levam a estas vidas isoladas e descritas com carinho e agressão ao mesmo tempo, de um mundo que parece ter perdido o dom de compartilhar, ainda que “compartilhar” seja um dos verbos mais usados nestes tempos de redes sociais.
A mim, o que principalmente importa é o prazer da linguagem através da exuberância da língua, e neste talento ele aproxima-se de seu conterrâneo Victor Heringer, ainda que sejam autores de índoles muito distintas. Talvez a melhor maneira seja remeter o leitor ao próprio texto de Ismar Tirelli Neto, como neste início de “As mães em chamas”:
“Desde que pôs os pés aqui dentro, já quase não tenho forças para visitar ninguém. Isto deve ter sido em fins de março. De lá para cá, não houve um só instante de paz. Abro a porta e lá está ela – a mãe, em chamas. Tento me explicar, não posso, não estou em casa. Mas ela passa por mim estalando, senta-se no sofá sem dar acordo do que digo. O que é, mãe? É dinheiro? Precisa de dinheiro? São os tranquilizantes? Eu não tenho tranquilizantes. O que tenho? Receio que as línguas de fogo acabem se alastrando pelo sofá, mas parecem inteiramente circunscritas à sua figura breve, acaixotada. Ela já não foi assim, evidente, houve tempo que não era assim –, como nos comove pensar que houve tempo que não era assim, que eu não andava tão ocupado –, da missa –, a metade –, coloco a distância avisada. Longo tempo permaneço chegado à porta, a mão sobre a maçaneta, o rosto voltado em sua direção. Minha mãe se volta com o fogo para mim. Minha mãe se volta com o fogo para mim. Minha mãe faz com o fogo inúmeros gestos exasperados sem finalidade aparente. Crepita, estala, balbucia. Sua voz rompe o mosquiteiro negro e ocupa com um espesso ruído eletrônico. Essa voz, esse som, tão volumoso que não consigo me acercar. Continuo chegado à porta, a mão na maçaneta, o rosto voltado em sua direção. O que significa? Que derrota tomar? Ela se volta com o fogo para mim. No corredor, uma pinha de passantes. Limpo a garganta, tusso, peço desculpas. Como é antigo este vaudeville. Devo pegar um balde d’ água, minha mãe? Devo tremer? Devo telefonar para alguém? Quer que eu prepare um escalda-pés? Pequenos pedaços chamuscados de papel vão saltando dela, antes de pousarem no piso riscado riscam no ar uns adejos tolos – sei que se trata de um pedido, sei que querem algo de mim, algo talvez importantíssimo, mas o quê? Sinto-me culpado, não sei que derrota tomar, rebusco em mim mesmo algum escrúpulo de lealdade.” – Ismar Tirelli Neto, Os ilhados (Rio de Janeiro: 7Letras, 2015).
Aqui vemos exemplificado o que tento argumentar sobre o livro: a narratividade atenta à materialidade da língua, o controle de tom, o uso do léxico, com um vocabulário que vai do “escalda-pés” à “pinha de passantes”. É uma experimentação da língua com febre, que busca o real através da hipersensibilidade, e seu uso da língua portuguesa poderia ligá-lo aos mais diversos autores, de Otto Lara Resende a Hilda Hilst, mas, como cada um eles, de maneira pessoalíssima. Pensando em alguns de seus textos como contos, por vezes me veio a escrita de Donald Barthelme e Lydia Davis à mente.
Ezra Pound escreveu certa vez que deveríamos prestar atenção nos poetas, que talvez seus comportamentos aparentemente estranhos possam indicar simplesmente que estão vendo uma catástrofe formar-se, catástrofe que ainda não se tornou visível a todos. É nisto que escolho não ver este belo, triste e por vezes claustrofóbico livro de Ismar Tirelli Neto como fruto das possíveis derrotas pessoais do autor, mas ver nestas vozes-personagens um alerta de nossas catástrofes vindouras, quando talvez estaremos todos ilhados, verdadeira e literalmente ilhados, não em nossas vidas, mas em nossas sobrevivências. Como tantos de nós já estamos.
Um Andreazza é um Andreazza, ou a Direita Miojo
Há que se começar dando aos mensageiros aquele tradicional e exemplar tratamento em tempos de cidade sitiada. O jornalista Mateus Campos, de jornal O Globo, intitulou sua peça promocional para a editora Record da seguinte maneira: “Editor de nomes conservadores, Carlos Andreazza se firma como voz dissonante do mercado de livros” [O Globo, 31.07.2015]. Talvez seja apenas o hábito de escritores com alguma dose razoável de responsabilidade, o querer que as palavras realmente signifiquem algo. Uma postura desagradável para muitos nos dias de hoje. A que se deveria o uso do adjetivo dissonante, doado tão generosamente por nosso jornalista ao editor? Segundo as palavras do próprio Carlos Andreazza, “havia e há uma imensa demanda reprimida, culpa dos cerca de 50 anos em que a produção editorial brasileira excluiu os pensamentos liberal e conservador de suas prensas”, desta vez ao jornalista Rodolfo Borges, este mostrando-se mais capaz de exercer algum pensamento crítico sobre o que escreve, em seu artigo “A direita brasileira que saiu do armário não para de vender livros”.
Tenho apreço especial pelo adjetivo dissonante. Ele sempre me faz pensar em Federico García Lorca, o fuzilado pela direita espanhola (“pelos esbirros de Franco”, nas palavras de Theodor Adorno), a partir da ideia da “metáfora dissonante” em seu livro El Poeta en Nueva York (1927), como propôs o Grupo Noigandres. Mas a frase “voz dissonante” traz uma memória ainda mais forte: a de ter assistido, no ano 2000, pouco antes de deixar o Brasil, ao espetáculo Vozes Dissonantes, de Denise Stoklos. Nele, a dramaturga, encenadora e performer paranaense traz para o palco e para seu corpo a escrita de Gregório de Matos, do Euclides da Cunha de Os sertões (1902), de João Cabral de Melo Neto. Vozes dissonantes, naquele momento em que o Brasil era capitaneado pela versão perversa de “democratas sociais” que haviam tomado conta da política no Ocidente. A terceira via. O Consenso de Washington que alguns dos “pensadores” de Andreazza por certo gostariam de opor ao grande mal do Foro de São Paulo. Em um momento do espetáculo, Stoklos reencena e reencarna a morte da guerrilheira Iara Iavelberg (1944-1971), morta em um cerco dos agentes de segurança da Ditadura Militar em Salvador. A versão oficial é a de que Iavelberg se suicidou ao ver-se encurralada, escondida em um banheiro. Stoklos, ao fim decide dar-lhe um pouco mais de tempo, um pouco de mais tempo, antes de ser alvejada pelos agentes da subversão da Constituição, os esbirros do regime que instaurara no Brasil a pena de morte extra-oficial, a mesma que ainda paira sobre tantos cidadãos brasileiros nas mãos deste resquício macabro da Ditadura que é a Polícia Militar.
O leitor deste texto talvez esteja se exasperando, crendo que me perdi em digressões. Peço sua confiança por um parco tempo mais. “Dissonante” significa, sabemos, “adj. Que expressa ou ocasiona dissonância: melodia dissonante. Que não combina; desarmônico”, segundo o Houaiss. O Aurélio nos diz ainda “Que não soa bem. Que não fica bem; que não condiz; que destoa. Díssono, dissonoro”.
Já faz um tempo que a vacuidade da linguagem política nacional começou a extrair de nossas palavras qualquer significado tangente. O uso de um adjetivo como dissonante para descrever o (des)serviço de Carlos Andreazza ao pensamento político no país demonstra a vacuidade da linguagem do artigo que o promove, assim como da linguagem usada em sua entrevista pelo neto de Mário Andreazza, político da Ditadura, ou da linguagem de grande parte de seus autores de “pensamento” de direita. A palavra dissonante sofre aqui do mesmo esvaziamento das palavras “situação” e “oposição”, invólucros vazios. Por criticar o governo, seus autores são tomados como vozes dissonantes. É como se os envolvidos no artigo do O Globo jamais tivessem aberto o mesmo jornal nos últimos dez anos, ou se esquecido do tipo de governo que os estados de São Paulo e Rio de Janeiro, onde editora Record está localizada, tiveram nos últimos vinte. Os ideais que grande parte da população destes estados possuem, sua atitude vingativa contra as camadas da população brasileira que veem como ameaçadoras, o eterno “silêncio sorridente de São Paulo” diante dos crimes de Estado, do Carandiru ao Pinheirinho.
Seria ocioso aqui tentar apontar para o próprio esvaziamento da palavra “pensamento” de direita na boca de Carlos Andreazza. O que o garoto do programa da direita hoje no país promove como “pensamento” está em livros do calibre intelectual de Esquerda caviar, da vacuidade mental que é Rodrigo Constantino, e Não é a mamãe, de Guilherme Fiuza. É a direita miojo. Basta aquecer um pouquinha nas mãozinhass suadas das viúvas da ditadura. Até mesmo Kim Kataguiri, o analfabeto político, já foi elencado para o time dos sonhos do “pensamento” de direita de Carlos Andreazza.
Terá sucesso, como já demonstram seus números de venda. Para os atentos, palavras como “dissonante” e “pensamento”, ligados ao seu trabalho editorial, continuarão causando o estranhamento devido. Ambiciosa empreitada a sua, como a Transamazônica. Prevejo que terá o mesmo sucesso, não sem antes causar estragos.
Centenário de Paul Zumthor
Nestes dias, eu tento evitar usar expressões como “leitura obrigatória”, porque livros que me foram importantes não necessariamente têm que ter o mesmo significado para outros. Além disso, nós todos temos um tempo limitado na Terra, numa sábia decisão por parte da Natureza (no lamento de Andrew Marvell, “HAD we but world enough, and time”), e nossas bibliotecas eternamente incompletas sempre escondem outras bibliotecas possíveis, de tradições que ignoramos muitas vezes por desconhecimento e educação falha, além dos motivos bem menos nobres ligados a nossas heranças colonialistas e imperialistas.
Mas hoje é o centenário do grande medievalista suíço Paul Zumthor (1915-1995), e uma homenagem com recomendações de leitura se faz necessária. Para cantores, cancionistas, poetas vocais e críticos, seus estudos sobre a tradição oral e em especial a poesia medieval são encorajadores, entusiasmantes e muito informativos para termos um conhecimento mais amplo e menos hierarquizado da tradição poética. Sua Introdução à poesia oral, publicado originalmente em 1983 e editado no Brasil pela editora da Universidade Federal de Minas Gerais em 2010, é uma leitura importantíssima, especialmente no Brasil, que possui uma tradição oral ainda viva e forte no Nordeste, por exemplo, e onde críticos desatentos seguem requentando o debate frívolo sobre “letras de música como não sendo poesia”.
Extremamente atento a várias tradições, em livros como o já citado, ou ainda em La lettre et la voix (editado no Brasil como A letra e a voz em 1993 pela Companhia das Letras), Zumthor analisa a poesia oral de tradições que vão da árabe à brasileira, com especial atenção à “literatura” medieval europeia, desde os trovadores, mas falando ainda de cancionistas contemporâneos como Bob Dylan, Jacques Brel e repentistas brasileiros. No Festival de Poesia de Berlim deste ano, convidado a falar sobre o(s) futuro(s) da poesia, voltei a discutir como muitas de nossas previsões sobre o desenvolvimento da literatura ainda parecem marcados por nossa hierarquização entre tradição oral e tradição literária; pela forma como acreditamos que novas tecnologias deveriam necessariamente levar a novas formas literárias, quando temos em grande parte observado como estas novas tecnologias têm permitido justamente um retorno a tradições milenares da voz, ou simplesmente a valorização de uma tradição que jamais morreu.
A população mundial, apesar de nossas narrativas históricas falaciosas e tendenciosas, sempre se manteve leal à tradição oral. É por isso que a poesia vocal segue sendo a forma de arte mais popular do mundo. Quando Michelle Obama convida a cantora e compositora Sara Bareille ou o rapper Common para se apresentarem na Casa Branca, ela não está deixando de ligar-se em arco histórico a uma figura como a rainha Leonor da Aquitânia, que tinha trovadores provençais como Bernart de Ventadorn apresentando-se em sua corte.
No Brasil, nossa poesia oral é fortíssima, com cancionistas cujos textos até mesmo sobrevivem na página, o que não é obrigação nenhuma de um poema oral. Noel Rosa e Angenor de Oliveira, o Cartola, foram poetas sofisticados, e melhores do que alguns de seus poetas-escritores contemporâneos, como vários modernistas hoje esquecidos. Leiamos, por exemplo, o texto de “Conversa de botequim”, de Noel Rosa (1910-1037):
Conversa de Botequim
Noel Rosa
Seu garçom, faça o favor de me trazer depressa
Uma boa média que não seja requentada
Um pão bem quente com manteiga à beça
Um guardanapo e um copo d’água bem gelada
Feche a porta da direita com muito cuidado
Que não estou disposto a ficar exposto ao sol
Vá perguntar ao seu freguês do lado
Qual foi o resultado do futebol
Se você ficar limpando a mesa
Não me levanto nem pago a despesa
Vá pedir ao seu patrão
Uma caneta, um tinteiro
Um envelope e um cartão
Não se esqueça de me dar palitos
E um cigarro pra espantar mosquitos
Vá dizer ao charuteiro
Que me empreste umas revistas
Um isqueiro e um cinzeiro
Telefone ao menos uma vez
Para três quatro, quatro, três, três, três
E ordene ao seu Osório
Que me mande um guarda-chuva
Aqui pro nosso escritório
Seu garçom me empresta algum dinheiro
Que eu deixei o meu com o bicheiro
Vá dizer ao seu gerente
Que pendure esta despesa
No cabide ali em frente
Em minha opinião, tal poema não deixa nada a desejar ou dever aos poetas escritores modernistas das décadas de 1920 e 1930 no Brasil. Parece-me, em certos aspectos, até mesmo melhor que algumas das tentativas de nossos modernistas de captar a prosódia brasileira. Não tivesse eu lido Paul Zumthor, talvez jamais houvesse atentado para isso. Eis aqui meu agradecimento a ele em seu centenário.
Escritores em guerra
Poucos acontecimentos históricos podem impactar uma cultura tanto quanto uma guerra. Quando olhamos para a literatura europeia, vemos o quanto os sucessivos e intermináveis conflitos bélicos deixaram sua marca na produção literária dos países do continente, em prosa e poesia. Nesta série de artigos em que venho discutindo as necessidades de consciência histórica por parte de escritores, talvez não haja exemplo mais cru do que a literatura produzida em meio a declarações de guerra e avanços de tropas, enquanto civis são estraçalhados.
Vemos esses testemunhos de horrores, ora celebrando, ora lamentando, desde os tempos em que poetas acompanhavam seus reis em batalha, quando não eram eles próprios senhores de terra em guerra, como o trovador Bertran de Born (1140-1215), até os tempos em que tantos soldados-poetas tombaram entre tiros e explosões, como August Stramm e Wilfred Owen em trincheiras opostas na Primeira Grande Guerra, ou Keith Douglas, morto na Segunda. Os sobreviventes certamente não têm como ignorar o morticínio, a devastação e a destruição, vendo suas vidas e comunidades transtornadas por completo. Penso, por exemplo, em Salvatore Quasimodo, passando da poesia hermética dos primeiros livros à transformação ética e estética de engajamento em livros como Con il piede straniero sopra il cuore (1947, traduções em português incluídas em Poesias, Ed. Record, 1999), assim como o trabalho de sobreviventes na acepção mais nua da palavra, como Primo Levi em Se questo è un uomo (1947, edição brasileira É isso um homem?, Rocco, 2013), Robert Antelme em L’espèce humaine (1947, edição brasileira A espécie humana, Ed. Record, 2013), e Paul Celan em Die Niemandsrose (1963, traduções em português incluídas em Cristal, Iluminuras, 1999), testemunhas dos maiores crimes de guerra do século passado.
Ainda que o Brasil tenha participado da Segunda Guerra e muitos jovens soldados brasileiros tenham perdido a vida na Itália, a experiência do conflito chegou-nos pelas mãos de poetas impactados com as notícias de longe, como Carlos Drummond de Andrade nos poemas de A rosa do mundo (1945) e Murilo Mendes em Poesia Liberdade (1947). O grande conflito internacional em que o Brasil viu seu território invadido deu-se no século 19 com a Guerra do Paraguai, certamente um dos conflitos mais horrendos e sangrentos do continente desde a invasão dos europeus, marcado por crimes de guerra até hoje abafados e esquecidos, em especial por parte de comandantes brasileiros como o Conde d’Eu, e que só entraria realmente no literatura brasileira mais de um século depois, em um romance como Viva o povo brasileiro (1984), de João Ubaldo Ribeiro. A experiência da guerra na literatura brasileira, no entanto, é o estopim de um dos nossos maiores livros: Os sertões (1902), de Euclides da Cunha. Foi através deste antiépico da nossa maior guerra civil que o horror bélico marcou nossas letras.
Nestes dois anos, em que relembramos os dois grandes conflitos mundiais e várias reportagens nos levaram de volta a seus horrores, com reedições dos poemas de guerra de vários soldados, como é a literatura de guerra e antibélica contemporânea? Se estamos discutindo a consciência histórica de poetas e prosadores, como os conflitos atuais têm entrado na literatura? Gostaria de comentar apenas um exemplo, o de uma autora nascida no país que se lançou em dois conflitos eivados de crimes neste novo século: os Estados Unidos. De que maneira as invasões do Iraque em 2003 e do Afeganistão em 2001 entraram em sua literatura? Poderíamos pensar que apenas o cinema vem tratando da questão, em filmes como Hurt Locker (Kathryn Bigelow, 2008) ou American Sniper (Clint Eastwood, 2014), mas a guerra tem entrado também na literatura norte-americana.
O livro que gostaria de comentar foi lançado em 2005, da escritora Juliana Spahr (nascida em 1966), intitulado This Connection of Everyone with Lungs (algo como “Esta conexão de todos com pulmões”). Spahr começa seu livro com as reações aos ataques às Torres Gêmeas no dia 11 de setembro de 2001, numa seção justamente intitulada “Escritos após 11 de setembro de 2001”. Para um americano que viveu os ataques, o título remete imediatamente à experiência de estar na cidade de Nova York durante e nos dias posteriores à tragédia, nos quais o ar da cidade seria tomado por poeira, fumaça e matéria carbonizada. Mas a americana não se limita a uma elegia por seu país. O livro é muito mais. A partir da segunda parte, com textos escritos entre 30 de novembro de 2002 e 27 de março de 2003, todos com datas por títulos, a escritora se lança a uma reflexão e meditação formadas por seu desejo de que os Estados Unidos não invadissem o Iraque. Vivendo no Havaí, onde grande parte das forças da Marinha americana estão localizadas, a escritora descreve – entre a esperança e o desespero – o fluxo de informações desencontradas entre a imprensa e os movimentos militares que ela mesma podia ver forjando-se nas bases de sua ilha. Entre notícias de celebridades, do ônibus espacial Columbia preparando-se para voltar à Terra e de ameças de uma guerra, Juliana Spahr digire-se a um Outro e Outros que ela chama de “beloveds”, queridos, amados, num jogo entre lírica e épica, tais como podemos compreendê-las nos dias de hoje. Abaixo, um trecho do texto datado “2 de dezembro de 2002”:
“Como ocorre toda noite, queridos, enquanto nos virávamos dormindo inquietos, o mundo continuou sem nós.
Vivemos em nosso próprio fuso-horário e há nesse fuso-horário apenas alguns milhões de nós e o mundo por consequência tende a começar e acabar sem nós.
Enquanto nos virávamos dormindo inquietos pelo menos dez ficaram feridos quando uma bomba explodiu em Bombaim e quatro foram mortos na Palestina.
Enquanto nos virávamos dormindo inquietos um armazém de auxílio alimentar foi destruído, ações em venda crescente explodiram, a Austrália fez ameaças de primeiros ataques, houve troca de tiros na cidade de Man, o embaixador da Bielorrússia no Japão desapareceu, um cruzeiro ardeu em chamas, em outro cruzeiro ainda muitos adoeceram, e o Papa fez um discurso contra o racismo.
Enquanto nos virávamos dormindo inquietos talvez J Lo tenha exigido sexo de Ben quatro vezes por semana em um acordo pré-nupcial.
Enquanto nos virávamos dormindo inquietos Liam Gallagher teve uma briga e fãs iracundos reclamaram que “Popstars: The Rivals” era um jogo de cartas marcadas.
Enquanto nos virávamos dormindo inquietos a Corte Suprema concordou em estudar o caso de quotas para minorias em universidades.
Enquanto nos virávamos dormindo inquietos caçadores capturaram esturjões num Mar Cáspio cheio de juncos, que abriga javalis e lobos, e alguns dos residentes do ônibus espacial planejaram seu retorno aos EUA.
Queridos, nosso mundo é isolado e pequeno.”
— Juliana Spahr, This Connection of Everyone with Lungs (tradução minha).
As notícias sobre o retorno do ônibus espacial, que já sabemos de antemão se espatifará na reentrada na Terra, funciona como uma espécie de sinal terrível de que suas esperanças se frustrarão e o país invadirá o Iraque, como realmente ocorre em março de 2003, quando a escritora encerra o livro. Sua mescla de uma voz lírica em meio à catástrofe histórica, que sabemos estar prestes a ocorrer enquanto ela medita com seus “beloveds”, torna o livro ainda mais pungente. É algo da mescla que vemos, numa clave bastante distinta, é claro, no grande poema lírico e épico de Oswald de Andrade, “Cântico dos cânticos para flauta e violão”, em que suas declarações de amor à mulher mesclam-se ao canto contra a Segunda Guerra que se desenrolava.
Para mim, tem servido como um exemplo de como um escritor pode manter-se ligado a sua comunidade, atento a seus dilemas, sem lançar-se a meros discursos de palanque, e mantendo-se fiel a sua voz, sem gritos de ordem, mas apenas um murmúrio de solidariedade a todos – todos – com quem compartilhamos oxigênio, nesta nossa conexão de todos com pulmões.
Resta-nos rir
A sátira, tanto entre poetas do Ocidente como do Oriente, sempre foi uma das armas à sua disposição contra os absurdos políticos e sociais de suas épocas. Das peças de Aristófanes aos epigramas de Marco Valério Marcial na Roma do primeiro século de nossa era; de Abū Nuwās, na Bagdá do século 8, aos clérigos europeus beberrões escrevendo em latim no século 12 e conhecidos como Goliardos; de Boccaccio e Rabelais aos poetas do nonsense – como os ingleses Edward Lear e Lewis Carroll, ou o alemão Christian Morgenstern –, assim como aos dadaístas Kurt Schwitters e Hans Arp no século 20 – o riso cáustico seguiu sendo uma arma. Se não se pode derrubar um tirano, pode-se ao menos garantir que ele pareça ridículo pelos séculos vindouros. Tiranos de todo o mundo sabem o perigo que correm nas bocas de poetas. César não estava feliz com as sátiras de Catulo contra ele, e, por um poema satírico contra Stalin, o russo Óssip Mandelshtam morreria no Gulag.
A literatura lusófona brasileira nasce entre as pregações de Antônio Vieira e o riso de Gregório de Matos. Sua poesia satírica é o que há de melhor, funda nossa literatura no tom de escárnio, de forma moderna, misturando o português a palavras indígenas, começando a criar uma linguagem poética brasileira.
Define a Sua Cidade
Gregório de Matos
De dois ff se compõe
esta cidade a meu ver:
um furtar, outro foder.
Recopilou-se o direito,
e quem o recopilou
com dous ff o explicou
por estar feito, e bem feito:
por bem digesto, e colheito
só com dous ff o expõe,
e assim quem os olhos põe
no trato, que aqui se encerra,
há de dizer que esta terra
de dous ff se compõe.
Se de dous ff composta
está a nossa Bahia,
errada a ortografia,
a grande dano está posta:
eu quero fazer aposta
e quero um tostão perder,
que isso a há de perverter,
se o furtar e o foder bem
não são os ff que tem
esta cidade ao meu ver.
Provo a conjetura já,
prontamente como um brinco:
Bahia tem letras cinco
que são B-A-H-I-A:
logo ninguém me dirá
que dous ff chega a ter,
pois nenhum contém sequer,
salvo se em boa verdade
são os ff da cidade
um furtar, outro foder.
A Gregório de Matos, viriam a se juntar outros, como Tomás Antônio Gonzaga – cujas Cartas Chilenas ridicularizavam Luís da Cunha Meneses, o então governador de Minas Gerais – e, mais tarde, alguns dos nossos melhores autores do século 19, como os poetas Sapateiro Silva, Luiz Gama e o Sousândrade de “O Inferno de Wall Street”; o dramaturgo Qorpo-Santo; e os romancistas Machado de Assis e Raul Pompeia, cada um à sua maneira.
No século 20, a sátira brasileira assumiu várias formas: de um romance como Triste Fim de Policarpo Quaresma (1915), de Lima Barreto, ao Oswald de Andrade da peça O Rei da Vela (1937), do romance Memórias Sentimentais de João Miramar (1924) e de tantos poemas. As sandices políticas do país sempre estiveram na mira de nossos autores. No pós-guerra, tivemos lições de sátira com Décio Pignatari e seu “beba coca cola”, com Sebastião Nunes e seu Elogio da punheta, e com Glauco Mattoso e seu Jornal Dobrabil. Podemos chamar esta de a tradição mais antiga da literatura lusófona no Brasil.
Nos últimos anos, após um período em que a sátira não foi tão valorizada – como nos anos 90, quando me pareceu haver uma preocupação demasiada com o sublime –, escritores voltaram a usar seus textos contra os crimes e absurdos do território. Em romances como Glória (Rio de Janeiro: 7Letras, 2012), de Victor Heringer, e Opisanie świata (São Paulo: Cosac Naify, 2013), de Veronica Stigger. Em poemas de Ricardo Aleixo, Pádua Fernandes, Angélica Freitas, Marcus Fabiano Gonçalves, Fabiana Faleiros, Dirceu Villa, William Zeytounlian e vários outros, essa tradição do riso contra o raso e roto que vemos desde Gregório de Matos reafirma-se. Trata-se da tradição de expor nossas contradições (o Brasil é um oxímoro com Marinha, Exército e Aeronáutica), que volta à cena com grande força, e com respaldo das ruas desde as Jornadas de Junho de 2013. E com uma imprensa disposta a turvar as águas do debate político, vivemos um momento em que precisamos desesperadamente dar ouvidos a estes sátiros e seus risos cáusticos.
Conheço vocês pelo cheiro
Ricardo Aleixo
Conheço vocês
pelo cheiro,
pelas roupas,
pelos carros,
pelos aneis e,
é claro,
por seu amor
ao dinheiro.
%
Por seu amor
ao dinheiro
que algum
ancestral remoto
lhes deixou
como herança.
Conheço vocês
pelo cheiro.
%
Conheço vocês
pelo cheiro
e pelos cifrões
que adornam
esses olhos que
mal piscam
por seu amor
ao dinheiro.
%
Por seu amor
ao dinheiro
e a tudo que
nega a vida:
o hospício, a
cela, a fronteira.
Conheço vocês
pelo cheiro.
%
Conheço vocês
pelo cheiro
de peste e horror
que espalham
por onde andam
– conheço-os
por seu amor
ao dinheiro.
%
Por seu amor
ao dinheiro,
deus é um
pai tão sacana
que cobra por
seus milagres.
Conheço vocês
pelo cheiro.
%
Conheço vocês
pelo cheiro
mal disfarçado
de enxofre
que gruda em
tudo que tocam
por seu amor
ao dinheiro.
%
Por seu amor
ao dinheiro,
é com ódio
que replicam
ao riso, ao gozo,
à poesia.
Conheço vocês
pelo cheiro.
%
Conheço vocês
pelo cheiro.
Cheiro um e
cheirei todos
vocês que só
sobrevivem
por seu amor
ao dinheiro.
%
Por seu amor
ao dinheiro,
fazem até das
próprias filhas
moeda forte,
ouro puro.
Conheço vocês
pelo cheiro.
%
Conheço vocês
pelo cheiro
de cadáver
putrefato que,
no entanto,
ainda caminha
por seu amor
ao dinheiro.
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