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O Homem da Rua Lopes Chaves

Foi há mais de setenta anos que o coração de Mário de Andrade deixou de bater, no dia 25 de fevereiro de 1945, o coração paulistano que ele pedira em seu poema que afundassem no Pátio do Colégio, e que a cabeça esquecessem na rua Lopes Chaves.

Meus pés enterrem na rua Aurora,
No Paissandu deixem meu sexo,
Na Lopes Chaves a cabeça
Esqueçam.

No Pátio do Colégio afundem
O meu coração paulistano:
Um coração vivo e um defunto
Bem juntos.

Carlos Drummond de Andrade, seu amigo, dedicou a ele uma das mais bonitas elegias da poesia brasileira, seu “Mário de Andrade desce aos infernos”: “Mais perto, e uma lâmpada. Mais perto, e quadros, / quadros. Portinari aqui esteve, deixou / sua garra. Aqui Cézanne e Picasso, / os primitivos, os cantadores, a gente de pé-no-chão, / a voz que vem do Nordeste, os fetiches, as religiões, / os bichos… Aqui tudo se acumulou, / esta é a Rua Lopes Chaves, 546, / outrora 108. Para aqui muitas vezes voou / meu pensamento. Daqui vinha a palavra / esperada na dúvida e no cacto. / Aqui nunca pisei. Mas como o chão / sabe a forma dos pés e é liso e beija!”Mario_de_andrade_1928b

Esta semana, foi aberta ao público em São Paulo a casa de Mário de Andrade na famosa Rua Lopes Chaves. Na Festa Literária Internacional de Paraty deste ano, é ele o homenageado. Os últimos anos viram a publicação, pela editora da Universidade de São Paulo, de sua correspondência com Tarsila do Amaral, Manuel Bandeira, Henriqueta Lisboa e Luiz Camillo de Oliveira Netto.

Por duas décadas, o poeta paulistano foi um dos dínamos da cultura brasileira, apaixonado e falho, como convém ao Brasil. Poeta, romancista, contista, crítico literário, musicólogo (pioneiro da etnomusicologia), ensaísta. Percorreu o país coletando cultura. Canções, poemas. Um dos idealizadores e fundadores do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, com Rodrigo Melo Franco (1898-1969), foi também o primeiro diretor da mais importante biblioteca pública paulistana, que hoje leva seu nome.

Foi um dos primeiros modernistas a sair de cena. Morreu em um ano fulcral para o país, oito meses antes do fim da ditadura estadonovista de Getúlio Vargas. O mundo ainda se encontrava em guerra, mesmo que os soviéticos já tivessem entrado na Alemanha pelo leste, e os americanos pelo oeste. Para nós, parece uma figura distante, emoldurada. Oswald de Andrade ainda viveria para ver Getúlio Vargas retornar ao poder e suicidar-se em 1954. Manuel Bandeira viveria para ver o país mergulhar no novo pesadelo ditatorial de 1964, morrendo exatos dois meses antes do AI-5 afundar o país de vez no terror. Carlos Drummond de Andrade sobreviveria a ditaduras e redemocratizações sucessivas.

Este não é o espaço para recontar os percalços da recepção crítica da obra de Mário de Andrade. Posso falar por mim, pelo tempo em que me vi desperto, respirando. A julgar por meus companheiros de geração, com os quais me correspondo, e por minhas próprias impressões, quando cheguei à cena sua obra parecia envelhecida, datada. Os anos 90, com a admiração pela obra enxuta e antilírica de João Cabral de Melo Neto, não pareciam encontrar muita serventia para o mais desbragadamente lírico dos poetas modernos brasileiros.

Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta,
As sensações renascem de si mesmas sem repouso,
Ôh espelhos, ôh Pireneus! Ôh caiçaras!
Si um deus morrer, irei no Piauí buscar outro!

Abraço no meu leito as milhores palavras,
E os suspiros que dou são violinos alheios;
Eu piso a terra como quem descobre a furto
Nas esquinas, nos táxis, nas camarinhas seus próprios beijos!

Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta,
Mas um dia afinal eu toparei comigo…
Tenhamos paciência, andorinhas curtas,
Só o esquecimento é que condensa,
E então minha alma servirá de abrigo.

Sua insistência numa grafia brasileira, seguindo a fala do povo, parecia uma ilusão de pertencimento que o homem privilegiado de São Paulo nutria de forma sincera, mas equivocada. Lembro-me de ler seu poema “Descobrimento”, sobre aquele “homem pálido magro de cabelo escorrendo nos olhos, / Depois de fazer uma pele com a borracha do dia, / Faz pouco se deitou, está dormindo. // Esse homem é brasileiro que nem eu”, e pensar: “Não, Mário, não é”, irritado com o que me parecia uma visão demasiado romântica das desigualdades regionais do país. É claro que a incompreensão era minha, não do homem da Rua Lopes Chaves. Na aura pseudocosmopolita daqueles anos (esta foi a nossa ilusão, o nosso equívoco), o nacionalismo de Mário de Andrade (e de seus companheiros, em menor medida) parecia-me simplesmente cafona.

Em Oswald de Andrade, a busca por uma poesia genuinamente brasileira levara às experimentações poéticas da Poesia Pau-Brasil, que até mesmo nos permitiriam discuti-lo hoje como um precursor do que mais tarde se tornaria uma prática da Internacional Situacionista, ou de um poeta como o austríaco Heimrad Bäcker [ver meu texto “Austríacos em meus olhos e ouvidos”], da poesia conceitual contemporânea – com suas apropriações dos textos coloniais portugueses. Deu-nos os romances experimentais e estimulantes como ainda são as Memórias Sentimentais de João Miramar (1924) e Serafim Ponte Grande (1933). E mesmo sua lírica desbragada, como no lindíssimo Cântico dos Cânticos para Flauta e Violão (1942), tem outra pegada, outra firmeza de mão. Quanto à poesia lírica de Manuel Bandeira, este jamais abandonou a limpidez, a clareza. Sua relação com a fala popular era outra, talvez mais sóbria e consciente.

Mário de Andrade, comparado a eles, era exagerado, um poeta que se abismava. É o brasileiro que negamos, que temos certa vergonha de ser, com nossas lágrimas – verdadeiras – derramadas sobre uma bandeira com lema positivista. Mário nos constrange porque nos constrangemos de nós mesmos. De nosso desbordamento, de nossas contradições. Talvez por isso sua prosa nos pareça ainda o que tem de mais fresco, mais vivo, pois nelas estas contradições parecem encontrar uma síntese. Macunaíma (1928) é um texto em que sua preocupação com a brasilidade e a experimentação vanguardista encontram seu equilíbrio. Jamais será compreensível para um estrangeiro, é bem provável, mas é uma das joias de nossa vanguarda histórica.

Aqui, tentando chegar ao fim do que se quer apenas uma homenagem meio capenga e cheia de confissões tolas sobre o homem da rua Lopes Chaves, preciso tocar em outro tema. Pois, para mim, há algo que por vezes ainda irrita minha sensibilidade quando penso em Mário de Andrade: a eterna negação e pergunta jamais respondida sobre sua sexualidade. Sei que alguns dirão que isso não importa. É óbvio que o sigo admirando pelos textos e pelos trabalhos práticos que nos doou. Sei também que é necessário pensar em seu contexto histórico, no Brasil em que vivia, onde mesmo homens inteligentes como Oswald e Drummond foram capazes de seus momentos de homofobia. Quando penso no tiro no peito que o grande Raul Pompeia infligiu a si mesmo no natal de 1895, compreendo o silêncio de Mário de Andrade, caso tenha sido realmente silêncio.

Estes dois escritores, com suas reputações de “hipersensíveis”, sobre os quais o “fantasma da homossexualidade” sempre paira, complicado, gerando em críticos as desculpas e comentários mais constrangedores, com seus silêncios e suas defesas de honra, por fim seriam os que nos deram alguns dos textos brasileiros mais significativos e corajosos sobre a sexualidade. O Ateneu (1888), de Raul Pompeia, é um livro presciente das discussões que tomariam de assalto o século 20. E Mário de Andrade, em contos como “Frederico Paciência” e, especialmente, em “Atrás da Catedral de Ruão”, criaria tanto uma imagem luminosa do homoerotismo (“Frederico Paciência era aquela solaridade escandalosa”), como uma imagem tenebrosa de nossas neuroses sexuais, com aquele final memorável, assustador, carregado de violência, que é a cena da perseguição imaginada por Mademoiselle atrás da Igreja de Santa Cecília. A equação entre sexualidade e violência em Raul Pompeia e Mário de Andrade parece-me algo que só seria enfrentado de frente pelo abertamente homossexual Lúcio Cardoso, em Crônica da Casa Assassinada (1959), e mais tarde por Hilda Hilst e Roberto Piva, estes que jamais tiveram medo de coisa alguma – certamente não da violência que cerca o sexo em nosso mundo.

Hoje, eu próprio um lírico desbragado, indecoroso, exagerado, celebrando ininterruptamente meus Fredericos Paciências, testando minha mão nos meus próprios poemas pseudo-dialetais, olho para a figura de Mário de Andrade com respeito, com carinho, e respeito suas falas e seus silêncios.

Data

terça-feira 26.05.2015 | 10:15

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As memórias de Luiz Roberto Salinas Fortes

Nasci em julho de 1977, em pleno inverno, ou, como se diz no interior de São Paulo, no meio duma frente fria. Meu pai, como minha mãe sempre gostava de dizer, não estava na cidade, mas em São Paulo, cuidando de assuntos da prefeitura de Bebedouro, onde trabalhou por muitos anos em meio à Ditadura Militar. O primero nome de político que aprendi foi o de Paulo Maluf, a quem meu pai apoiou politicamente toda a sua vida. No Palácio do Planalto, oficiava Ernesto Geisel os ritos da nacionalidade. Juscelino Kubitschek, João Goulart e Carlos Lacerda estavam mortos, fazia pouco. Há mais tempo estavam mortos Lamarca e Marighela. Iara Iavelberg. A guerrilheira Maria Auxiliadora Lara Barcelos, do VAR-Palmares, havia se lançado na frente de um trem em Berlim – onde eu jamais poderia imaginar que viria a viver – fazia mais de um ano. Toda a resistência à ditadura havia sido massacrada. Se o período de chumbo começava a arrefecer, ainda fazia vítimas e deixava detrás de si milhares de mortos e desaparecidos. Quais são minhas memórias da Ditadura, tendo nascido e vivido em seus últimos oito anos? Lembro-me de João Figueiredo em pronunciamento oficial na televisão, minha pergunta a minha mãe sobre quem era aquele homem. “O presidente”, ela disse. As aulas de Educação Cívica na escola, as de Organização Social e Política do Brasil. O hino nacional cantado todas as manhãs, antes das aulas. A mão direita no peito.

retrato caladoLer as memórias de Luiz Roberto Salinas Fortes (1937-1987) nesta última semana foi uma experiência difícil. Lançado pela primeira vez em 1988, após a morte do escritor, tradutor e professor de filosofia da Universidade de São Paulo, Retrato Calado é um documento essencial para nossa época. O volume foi relançado pela Cosac Naify em 2012. Estranho e pungente ler as memórias deste homem, saído do interior de São Paulo para estudar filosofia em São Paulo, como eu mesmo fizera, reconhecer algumas experiências e ao mesmo tempo perceber como o horror histórico em que se viu lançado era diferente do meu.

Muito bem escrito, Salinas Fortes nos lança em pleno pesadelo em seu livro. Não há introdução, preparação de cena: começamos na primeira página já caminhando com ele em um corredor daquele prédio de horrores no Largo General Osório em São Paulo, onde o Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) teve sua famosa e infame sede, a caminho da sala onde seria torturado. Mas o homem que ali caminha, com um pacote nas mãos que os agentes de segurança fizeram-no carregar, não sabe o que está prestes a acontecer. Quando chegam à sala e ordenam a Luiz Roberto Salinas Fortes que abra o embrulho, ele percebe que acabara de carregar o próprio aparelho de choques elétricos que usariam contra ele naquela noite. Os agentes explodem em riso. Fosse uma imagem literária, de ficção, eu tiraria aqui o chapéu para o escritor por criar uma imagem de tamanha força. Mas aquilo era a realidade, a realidade de tantos homens e mulheres durante o Regime Militar no Brasil. Despido, pendurado no pau-de-arara, o escritor logo estaria em pleno pesadelo. É leitura de arrancar as entranhas. Penso no poema de Wisława Szymborska chamado “Torturas”: “Nada mudou. / O corpo sente dor, / necessita comer, respirar e dormir, / tem a pele tenra e logo abaixo sangue, / tem uma boa reserva de unhas e dentes, / ossos frágeis, juntas alongáveis. / Nas torturas leva-se tudo isso em conta” (Poemas, tradução de Regina Przybycien, Companhia das Letras, 2012).

O candor e honestidade com que Salinas Fortes narra esta experiência horrível torna o relato ainda mais potente. Os gritos, o momento em que seu corpo não mais tolera a dor e ele defeca de dor, o terrível momento em que, sendo questionado onde certo amigo poderia ser encontrado, o escritor deixa escapar o nome de uma amiga, a viagem terrível  à casa da amiga, com ele no camburão, a prisão da amiga na sua frente, as dúvidas sobre heroísmo e covardia, sua honestidade, sua sinceridade. É não apenas um documento da memória política de um período que ainda nos assombra, mas também uma reflexão admirável sobre a natureza política do ser humano.

A escrita das testemunhas de horrores, daqueles que os viveram na própria pele, é imprescindível para que conheçamos um período não apenas por números, estatísticas. Dar rosto ao horror é um trabalho que exige força hercúlea de um escritor. É esta força histórica que nos assombra nos relatos de homens como Primo Levi, nos poemas de Paul Celan. A importância de um livro como Memórias do Cárcere, de Graciliano Ramos, levando-nos ao horror daquela outra violenta ditadura, a de Getúlio Vargas. O Brasil, sempre ocupado em esquecer, em olhar adiante, adiante e avante, deixando suas ossadas para trás.

A literatura brasileira ainda parece hesitar diante do período. Penso em textos fortes como o conto de Sérgio Sant’Anna, “O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro”; ou o de Zulmira Ribeiro Tavares, “Cortejo em abril”, com o enterro de Tancredo Neves como pano de fundo. Nos últimos anos, escritores como Beatriz Bracher voltaram ao período em seus livros de ficção. Mas o livro de Luiz Roberto Salinas Fortes, memória, não ficção, com sua inegável qualidade literária, nos toca de forma diferente. Nos fustiga.

“E tudo ficará na mesma? Os mesmos senhores de sempre continuarão tranquilos, comandando como se nada tivesse acontecido? Maquiavéis baratos. Sim, pois Maquiavel não ensina, entre outras coisas, estar condenado à ruína o príncipe que, em vez de ferir mortalmente o inimigo, apenas o fustiga ainda que dura e cruelmente, deixando-o afinal intacto – ou quase –, pronto para a nova investida?”, escreve Salinas Fortes ao final do livro.

Ao ler estas palavras, me perguntei se o autor se referia à Ditadura ou a si mesmo (e a nós) como o que estaria pronto para a nova investida. À Ditadura, certamente, à elite civil brasileira e às Forças Armadas, os que decidiram como seria a chamada “transição”, nossa redemocratização capenga, que nos legou, por exemplo, esta Polícia que mata mais que exércitos em guerra. Volto ao poema de Szymborska:

Nada mudou.
Exceto talvez os modos, as cerimônias, as danças.
O gesto da mão protegendo o rosto,
esse permaneceu o mesmo.
O corpo se enrosca, se debate, se contorce,
cai se lhe falta o chão, encolhe as pernas,
fica roxo, incha, baba e sangra.

Nas ruas do Brasil, segue-se torturando. Corpos negros e pobres ainda se enroscam, se debatem, se contorcem, caem quando lhes falta o chão, encolhem as pernas, ficam roxos, incham, babam, sangram, defecam aos pés do torturador quando desce o cacetete sobre seus crânios, são desmembrados, somem como o corpo de Ísis Dias de Oliveira desapareceu em 1972, como o de Amarildo de Souza desapareceu em 2013. Homens que fizeram sua carreira política durante a Ditadura, como José Sarney e Paulo Maluf, a quem meu pai tanto apoiou, aí estão. Quantos ainda aí estão, prontos para a nova investida?

Mas o livro de Luiz Roberto Salinas Fortes foi também a sua própria última investida. Seu último ato de resistência. Para honrá-lo, devemos lê-lo. Lê-lo, ainda, porque os horrores daquele tempo ainda nos assombram. São monstros dentro do armário, sempre a sair se fechamos os olhos.

Data

sexta-feira 22.05.2015 | 05:23

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Austríacos em meus olhos e ouvidos

Em meu último texto neste espaço [“Sprachraum. Lusofonia.”, DW Brasil, 8.5.2015], comentei as diferenças entre as esferas linguísticas da língua alemã e da língua portuguesa, apontando de passagem o que elas geram em distinções nas comunidades literárias das duas línguas. Pois, ainda que os trabalhos de escritores de língua alemã circulem de forma mais livre no bloco geográfico germânico, por este ser tão compacto, é óbvio que os contextos históricos específicos de cada país, em especial sua relação com a história recente do século 20, exigem muitas vezes dos autores estratégias diferentes. Antes de seguir, quero frisar que minha conversa não quer propor hierarquias entre as literaturas nacionais que comentarei aqui.

Eu sempre insisti na importância do contexto histórico para a compreensão e discussão do trabalho literário. No caso do Brasil, o passado colonial sempre terá uma influência sobre as relações literárias entre o país e Portugal. Quando pensamos na literatura de vários países das Américas, é interessante notar como, por exemplo, as literaturas do Brasil, do México e dos Estados Unidos tendem a ter sanha e manha experimentais maiores que as de Portugal, Espanha e Inglaterra, respectivamente. Talvez isso se dê justamente pelo passado colonial, e aquela sensação de que a tradição da língua lhes pertence e não lhes pertence, ao mesmo tempo. Crer que se está começando dá maior liberdade.

Mas como se daria isso no caso dos países que têm o alemão por língua oficial? Talvez um novo paralelo entre o português e o alemão nos ajude: pois um dos mais frutíferos movimentos experimentais brasileiros, a Poesia Concreta, teve dupla paternidade em língua portuguesa e em língua alemã, com os experimentos iniciados por volta de 1952 por Haroldo de Campos, Décio Pignatari e Augusto de Campos no Brasil, e por Eugen Gomringer, poeta boliviano naturalizado suíço. Ao mesmo tempo, as estratégias das vanguardas históricas do entreguerras, em especial o Dadaísmo (que teve seu nascimento em 1916 em Zurique, na Suíça, não na Alemanha), foi retomado com força primeiramente na Áustria, com o Grupo de Viena (H. C. Artmann, Konrad Bayer, Gerhard Rühm etc.).

Quando comparo as literaturas alemã e austríaca hoje, em especial na poesia, noto as mesmas sanha e manha experimentais maiores que noto nos países americanos em comparação com os países da matriz de suas línguas. Isso não quer dizer que não houve experimentação na Alemanha no mesmo período, com Helmut Heissenbüttel por exemplo na década de 50. Mas isso teve muito mais força na Áustria. Quando pensamos na prosa experimental, alguns nomes nos vêm à mente: Joyce e Beckett, em inglês (nascidos na Irlanda), Guimarães Rosa, em português (nascido no Brasil), assim como vários escritores de língua francesa nascidos fora da França. Na língua alemã, o prosador geralmente mencionado junto destes é o austríaco Robert Musil, assim como pensamos nas inovações do suíço Robert Walser e do austro-húngaro/tcheco Franz Kafka. Mas, um vez mais, deixo claro que não estou tentando hierarquizar, nem criar um determinismo, como se bastasse nascer em determinado país para se tornar um escritor experimental. Sabemos dos tantos tradicionalistas que já nascem com mofo no Brasil.

O poeta austríaco mais conhecido no Brasil, eu arriscaria dizer, é o expressionista Georg Trakl, que me parece mais moderno que alguns de seus companheiros alemães, como Ernst Stadler, Georg Heym e Else Lasker-Schüler, exceção feita a August Stramm.

Minha primeira paixão austríaca foi na verdade um pensador, o judeu homossexual Ludwig Wittgenstein. Em seu livro A Escada de Wittgenstein [São Paulo: Edusp, 2008. Tradução de Aurora Bernardini], a crítica norte-americana Marjorie Perloff discute como o pensamento de Wittgenstein parece congenial na língua alemã ao trabalho literário de outros três austríacos: Ingeborg Bachmann, Thomas Bernhard e Peter Handke. São três dos autores por quem mais tenho interesse no pós-guerra germânico. Peter Handke, no contexto de nossa conversa, foi instrumental para a renovação do debate literário germânico no período, em especial por seu papel em questionar a influência do chamado Grupo 47, formado na Alemanha em 1947 para retomar os trabalhos literários após a queda do regime nazista, e no qual ganharam atenção alguns dos mais importantes escritores de língua alemã das próximas décadas, como Günter Eich, Heinrich Böll, Martin Walser e Günter Grass.

Com uma estética e ideologia que poderíamos chamar de neo-realista, é conhecida a reação de grande parte do grupo quando Paul Celan leu em um dos encontros pela primeira vez: rejeição completa. Ainda que a literatura do grupo tenha formado o que ficou conhecido como Trümmerliteratur (Literatura dos escombros), uma poesia como a de Celan, que fazia em escombros a própria língua e literatura, não era bem-vinda. O ataque de Peter Handke ao grupo em 1966 é considerado um dos fatores determinantes para sua dissolução, que teve seu último encontro em 1967. Peter Handke viria a se tornar um dos autores mais influentes e renovadores da língua nas décadas seguintes.

Outra das experiências mais radicais da literatura em língua alemã do pós-guerra, tratando de frente o terrível passado histórico da região, é o trabalho do também austríaco Heimrad Bäcker. Usando material linguístico já existente, extraído dos arquivos do regime nazista (algo como o que Oswald de Andrade faria com documentos e textos coloniais), Bäcker criou alguns poemas poderosos, como este abaixo, intitulado “epitáfio (3)”, de 1986, que usa o material do “plano ferroviário nr. 587 da direção geral da ostbahn (ferrovia do leste), do dia 15 de setembro de 1942 – ‘trem especial para migrantes'”.

9228 de sedziszow para treblinka

9229 trem vazio

9230 de szydlowiec para treblinka

9231 trem vazio

9232 de szydlowiec para treblinka

9233 trem vazio

9234 de kosienice para treblinka

9235 trem vazio

Sedziszow, Szydlowiec e Kosienice são cidades do interior da Polônia. O campo de extermínio de Treblinka é o mais conhecido dos quatro campos de extermínio da chamada “Operação Reinhard”, nome dado pelos nazistas para o programa de extermínio dos judeus poloneses. Treblinka foi o destino da grande maioria dos judeus do Gueto de Varsóvia. Entre julho de 1942 e setembro de 1943, cerca de 750.000 judeus foram assassinados no campo. Trabalhos de apropriação como este só começariam a ser praticados na Alemanha nos últimos anos, em especial no trabalho crítico e poético de Swantje Lichtenstein.

As cenas poéticas alemã e austríaca são razoavelmente distintas hoje. Com formações literárias e acadêmicas, a poesia alemã demonstra ainda hoje características menos experimentais que a austríaca. Gostaria de encerrar este texto tratando de quatro poetas contemporâneos austríacos por quem tenho especial admiração e interesse, vindo de quatro gerações distintas: Christian Ide Hintze (1953-2012), Jörg Piringer (n. 1974), Max Oravin (n. 1984) e Oskar May (n. 1991). Quatro poetas experimentais, ligados à prática da poesia sonora, que tem muito mais força na Áustria que na Alemanha.

Christian Ide Hintze, nascido em Viena, foi uma das vozes mais importantes da poesia experimental germânica nas últimas décadas. Defensor das possibilidades que as novas tecnologias traziam para novas práticas e também de um retorno a formas milenares de manifestação poética, trabalhou com filme e intervenções urbanas em cidades como Viena, Londres, Estocolmo. Chegou a ser preso na Berlim Oriental por uma performance, expulso de uma feira editorial em Stuttgart e condenado em Viena por destruição de patrimônico público por colar poemas e cartazes nas paredes do Burgtheater. Em 1992, fundou em Viena a importante e influente Schule für Dichtung (Escola de Poesia), na qual deram aulas poetas como Allen Ginsberg, Humberto Ak’abal, Nick Cave, H. C. Artmann, Anne Waldman, Blixa Bargeld, Henri Chopin, Ed Sanders, Ayu Utami e Inger Christensen. Sua morte prematura em 2012 foi um choque e uma grande perda.

Jörg Piringer é um poeta sonoro e visual. Atualmente, vive e trabalha em Viena. Alguns de seus trabalhos incluem the joseph boys – stille nacht (performance sonora), konkrete inventionen – samplepoems, hearings (trabalho organizado para o Instituto de Pesquisa Transacústica), digitale dichtung (poesia digital) e wir alle (filme sonoro-textual). O trabalho poético de Jörg Piringer une poesia sonora e visual, tornando-se uma demonstração das possibilidades criativas para a poesia em outras mídias, independente do papel para composição, divulgação e distribuição. É uma das experiências mais radicais na língua alemã em termos de uma pesquisa de novas práticas poéticas a partir de novas tecnologias. Nos últimos anos, tem se dedicado à criação de aplicativos para celulares que permitem jogos de linguagem.

Max Oravin prepara seus textos para performance, compondo-os com música eletrônica e apresentando-se como Oravin. Como uma espécie de Minnesänger contemporâneo, seus textos estão ligados à tradição trovadoresca, permitindo que funcionem tanto na voz como na página.

a grande chancelaria do sol

sobre o fogo há uma rocha e sobre ela uma rocha e sobre ela uma rocha
e sobre ela a terra negra
e sobre a terra estão os pés
e sobre os pés flutua um crânio
e sobre o crânio está uma faca e costura
um pensamento

e sobre o crânio está um osso e sobre o osso os cabelos
e sobre os cabelos está o céu o inquieto amplo céu
e entre o céu estão pássaros com ossos e penas
e no crânio os pensamentos

e sobre o céu está o mundo e curva-se perante o rei

sobre o rei está um chanceler e sobre ele um chanceler maior
e sobre ele a chancelaria
a grande chancelaria do sol
e sobre o sol está a noite longa
com longos dedos frios

e sobre a noite está o dia o infindável dia
e no dia está uma faca e costura o céu
para que caia daí a luz
no dia está a faca e costura
a luz

EU ABRO MINHA BOCA
E VOCÊ INSERE UM VOCÁBULO
UM PEDREGULHO NA LÍNGUA

EU ABRO MEU OUVIDO
E VOCÊ INSERE UM VOCÁBULO
UM OSSO MASTIGADO

EU ABRO MINHA MÃO
E VOCÊ COSPE SEU VOCÁBULO
SEU VOCÁBULO SALIVADO

EU ABRO MINHA MÃO
E VOCÊ ME DÁ UMA PEDRA
E A PEDRA CRESCE EM ROCHA

(tradução minha)

Por fim, tive o prazer de conhecer este ano o jovem poeta e escritor Oskar May, também de Viena, como Hintze e Piringer. Formado em filosofia, Oskar May é um dos cofundadores de um dos eventos mais interessantes da capital austríaca no momento, o “Philosophy Unbound”, que tem atraído centenas de pessoas para eventos em que jovens apresentam suas falas e textos de filosofia. Além disso, Oskar May tem uma das vozes mais belas da poesia alemã contemporânea, como voz física e voz poética, num trabalho sonoro que retoma tanto certas práticas dadaístas como do trovadorismo germânico.

Apesar de viver na Alemanha, é por estas razões que meus ouvidos e olhos muitas vezes se direcionam para a Áustria.

Oskar May

Oskar May

Data

terça-feira 12.05.2015 | 09:08

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Sprachraum. Lusofonia.

LusofoniaUma de minhas palavras favoritas em alemão é Sprachraum, usada para definir o espaço geográfico de uma determinada língua, literalmente “espaço linguístico”. Trata-se de uma palavra comum em qualquer conversa literária por aqui, em geral usada para se referir ao espaço linguístico germânico, mas não só. Formada pela própria habilidade aglutinante da língua alemã, é bastante apropriada quando pensamos que o espaço linguístico alemão é compacto, separado apenas por fronteiras nacionais, unindo no entanto a Alemanha, a Áustria e Liechtenstein, países onde é a única língua oficial, e parte da Suíça, onde é uma das línguas oficiais com mais falantes, além de ter reconhecimento oficial na Bélgica e em Luxemburgo. Não podemos, é claro, nos esquecer de que o alemão é uma língua regional reconhecida na Namíbia, colonizada pelo Império Alemão, assim como o Império Austro-Húngaro expandiu a sua influência para vastas regiões do Leste Europeu, onde ainda é falada por minorias em países como a Eslovênia e a Hungria. Um dos poetas de língua alemã mais famosos do pós-guerra, Paul Celan, nasceu em Czernowitz, então Romênia, hoje Ucrânia, assim como dois dos mais influentes autores da língua alemã no século 20, Franz Kafka e Rainer Maria Rilke, nasceram em Praga, então uma cidade importante do Império Austro-Húngaro. No entanto, reconhecemos o alemão como uma língua dominante em um espaço geográfico praticamente cerrado, com cercas definidas, dando um significado bastante concreto para Sprachraum, que tem seu caráter abstrato no campo da linguística.

Talvez seja um exercício de brasileiro que vive há tantos anos na Alemanha, mas gosto de traçar paralelos entre os dois espaços. Em português, não temos uma expressão como Sprachraum. Podemos exprimir a ideia, mas recorremos a construções como espaço ou comunidade linguística. Usamos, no entanto, com frequência a expressão lusofonia, para indicar talvez não exatamente o espaço, mas os sons-significantes comuns. Temos a palavra germanofonia em português, eu porém jamais a li ou ouvi em qualquer lugar, ao contrário de francofonia e anglofonia, certamente pela maior influência destas culturas no mundo lusófono. Mas a comparação mais interessante é realmente geográfica, pois o mundo lusófono, ao contrário do germanófono, é completamente disperso, espalhado. Nenhum dos países de expressão portuguesa faz fronteira com outro da comunidade. Estão todos banhados pela água salgada do mar em três oceanos, e separados dos outros por extensões de terra. Somos linguisticamente isolados, com Portugal e Brasil compartilhando a experiência de estarem banhados pelo Atlântico e pela língua castelhana. Isso tem uma influência tanto econômica quanto política na relação entre os países de língua alemã e os países de língua portuguesa.

É mais fácil para um autor de língua alemã e seus livros circularem em seu Sprachraum, compacto. Ainda que os países de língua alemã tenham uma história bélica e um passado comum de violência mútua, a situação é muito distinta da que vemos entre os países de língua portuguesa, com suas histórias de dominação colonial e escravidão. Isso traz outras complicações a nossas relações.

Já tive a experiência, um par de vezes, de presenciar um alemão hesitando antes de se lembrar de que o grande Robert Walser, por exemplo, era suíço, não alemão. Rilke, Kafka, Walser, Freud, Hoffmansthal, Musil são todos escritores que circulam na Alemanha como autores da língua comum. É claro que há especificidades no trabalho de cada, e que os contextos austríaco e suíço, por exemplo, são bastante distintos do alemão, mas a maneira como estes autores circulam em seu Sprachraum seria quase impensável, infelizmente, para autores da comunidade lusófona. Ao menos, ainda, hoje.

No caso de Brasil e Portugal, isto está mudando. Aos poucos. Lentamente. As redes sociais ajudaram bastante, em vários aspectos, pelo simples fato de que há muitos escritores brasileiros e portugueses hoje em contato virtual, recebendo ao menos as notícias das publicações e podendo ler outras em formato digital. Além disso, há o caso de escritores portugueses que viveram ou vivem no Brasil, como Alexandra Lucas Coelho e Matilde Campilho, mantendo um contato forte com o país, assim como há escritores brasileiros que viveram ou vivem em Portugal, como Érica Zíngano e Luca Argel. Pequenas editoras portuguesas, como Mariposa Azual e Douda Correria, vêm lançando livros de poetas brasileiros em pequenas tiragens, como Marília Garcia e Diego Moraes, respectivamente. O livro de estreia de Matilde Campilho, que chegou a sua quarta edição em Portugal pela Editora Tinta-da-china, foi lançado há pouco no Brasil pela Editora 34. Adília Lopes e Gonçalo M. Tavares são portugueses admirados no Brasil. Sei que autores como Luiz Ruffato e Milton Hatoum são editados em Portugal, mas seu alcance é menor. A edição da obra completa de Ruy Belo no Brasil foi uma ótima iniciativa da Editora 7Letras. Quando vamos, no Brasil, começar a ler e amar Mario Cesariny como ele merece, esse poeta que certamente nos seria tão congenial? Os portugueses já decobriram Hilda Hilst e Roberto Piva? Não sei.

No entanto, a situação é muito pior quando pensamos na ausência de autores africanos de expressão lusófona no Brasil. A responsabilidade é nossa, como críticos e editoras. Não se trata apenas de apontar os dedos em riste, mas de trabalharmos juntos para uma maior compreensão entre os países lusófonos. Faço aqui o meu próprio mea culpa: após anos editando a revista Modo de Usar & Co., percebi com um calafrio que apenas no mês passado publiquei, pela primeira, um autor de Cabo Verde na revista, a poeta e prosadora Dina Salústio, após ler seu nome em um texto de Victor Heringer, dedicado ao músico cabo-verdiano António Vicente Lopes, conhecido como Travadinha [“Travadinha”, Revista Pessoa, 22.04.2015]. Fiquei pensando, após ler o texto de Heringer, em qual havia sido meu primeiro contato com a língua portuguesa de Cabo Verde. E lembrei-me de um documentário sobre o país, visto talvez na década de 1990, em que um dos entrevistados citava um poeta cabo-verdiano, que teria escrito: “As cabras nos ensinaram a comer pedras / para que não morrêssemos de fome”. Ou, ao menos, era assim que havia ficado em minha memória. Mas percebo agora, ao buscar pela primeira vez o texto depois de tantos anos, graças à internet, que eu havia abrasileirado os versos em minha cabeça. Na verdade, o poeta escreveu: “As cabras ensinaram-nos a comer pedra / para não perecermos”, e descubro seu nome: Ovídio Martins. Que nome. Nome de poeta lusófono. Nós, separados pelo mar.

Eu acredito que precisamos pensar pós-colonialmente, e mais, de forma descolonizadora, em língua portuguesa. Talvez a relação entre Brasil e Portugal, por exemplo, ainda precise complicar-se antes de facilitar-se. Mas penso nos versos de Carlos Drummond de Andrade, o gigante lusófono, para encerrar com uma nota de possibilidade, pensando nos companheiros da língua comum: “Estou preso à vida e olho meus companheiros / Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças / Entre eles, considero a enorme realidade / O presente é tão grande, não nos afastemos / Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas”.

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sexta-feira 08.05.2015 | 07:01

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Patrocínio, Ventura e Colina em antologias

Talvez não haja trabalho crítico e editorial mais ingrato que a organização de antologias. Elas parecem agitar uma verdadeira fobia na cena literária, que vem do eterno medo de todo escritor: ser deixado de lado, ser rejeitado. Antologias influem no cânone, palavra que tem uma conotação fortemente religiosa em nossa cultura, não podemos nos esquecer. Na Igreja católica, ela designa tanto as leis adotadas pela autoridade eclesiástica quanto o processo de santificação de um ser humano. Sua quase divinização. Escritores querem se sentar à direita de Deus Pai. Ou, ao menos, ir pro céu das reputações literárias. É esta conotação que também guia a fúria de alguns contra aqueles que propõem revisões no cânone. Afinal, santo não deixa de ser santo.

Também nos esquecemos das conotações militaristas da palavra “vanguarda”, e de como isto influi em nossas discussões. As querelas entre modernos e antigos, ou vanguardistas e tradicionalistas, podem ser explicadas por vezes pelo embate entre estas duas concepções críticas.

Mas é também isto que confere a força e extrema responsabilidade que envolvem a organização de uma antologia. Não vou entrar em exemplos, mas nos últimos tempos houve no Brasil algumas que pecaram (olha o vocabulário religioso de novo) justamente por sua preguiça em questionar. De que nos vale realmente uma antologia se ela apenas reenforça o status quo, ou nos diz apenas o que já estamos cansados de ouvir? Resgatar o bom trabalho de autores negligenciados ou esquecidos é um trabalho importantíssimo, que pode ter efeitos positivos sobre a produção contemporânea.

Pode nos parecer surpreendente hoje, mas o trabalho de Murilo Mendes esteve negligenciado no debate poético por duas décadas após sua morte, até o lançamento de sua obra completa pela Nova Aguilar em 1994. Também pode parecer chocante, mas Hilda Hilst e Roberto Piva eram escritores ainda marginais no fim do século passado, e as reedições recentes do trabalho de Jorge de Lima também são bastante importantes para resgatarmos esta voz tão singular dentro de nosso Modernismo. Ainda há muito trabalho por fazer, quando pensamos que os poemas da excelente Henriqueta Lisboa seguem negligenciados, assim como os de tantos outros.

Não quis dar maus exemplos, mas os bons merecem ser gritados dos telhados. Uma das contribuições mais importantes dos últimos anos nesse campo foi Poesia (Im)Popular Brasileira [São Bernardo do Campo: Lamparina Luminosa, 2012], organizada por Júlio Mendonça. Trata-se de um volume que reúne poemas de importantes poetas brasileiros menos conhecidos do público, ou que, nas palavras do editor, “por maior ou menor tempo, ficaram ou estão deslocados em relação aos cânones vigentes”. A antologia traz poemas de Aldo Fortes, Edgard Braga, Gregório de Matos, Joaquim Cardozo, Max Martins, Omar Khouri, Patrícia Galvão, Qorpo-Santo, Sapateiro Silva, Sebastião Nunes, Sebastião Uchoa Leite, Joaquim de Sousândrade, Stela do Patrocínio e Torquato Neto. Cada um dos poetas é apresentado por um autor convidado, responsável pela seleção dos poemas. Graças a ela, descobri o trabalho de Stela do Patrocínio.

poesia impopular

“Poesia (Im)Popular Brasileira” [São Bernardo do Campo: Lamparina Luminosa, 2012], organização de Júlio Mendonça

Patrocínio nasceu em 1941, e viveu, desde 1962, internada na Colônia Juliano Moreira, assim como Arthur Bispo do Rosário (1911-1989). Sua fala poética chegou a nós transcrita de cassetes por Viviane Mosé, que organizou essa textualidade no volume Reino dos bichos e dos animais é o meu nome [Rio de Janeiro: Azougue, 2002].

 

Não sou eu que gosto de nascer
Eles é que me botam para nascer todo dia
E sempre que eu morro me ressuscitam
Me encarnam me desencarnam me reencarnam
Me formam em menos de um segundo
Se eu sumir desaparecer eles me procuram onde eu estiver
Pra estar olhando pro gás pras paredes pro teto
Ou pra cabeça deles e pro corpo deles

(Stela do Patrocínio, em diagramação de sua fala por Viviane Mosé, in Reino dos bichos e dos animais é o meu nome [Rio de Janeiro: Azougue, 2002])


Resgatar esta voz é tanto uma contribuição poética como política. Quem conhece meu trabalho sabe que evito esta distinção, mas sempre é bom frisar. Aqui entramos num terreno escorregadio e difícil. Recorro à introdução de Júlio Mendonça à antologia: “
Toda literatura – de qualquer país ou comunidade linguística do mundo – tem seus autores deslocados, não-canônicos (como se diz no jargão literário). Deslocamento autoconsciente (programático), decorrente de opções estéticas, temáticas, ou por razões geopolíticas”.

Cito isso para mencionar outra antologia, esta monumental, que teve um impacto sobre meu pensamento crítico nos últimos anos: Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica (Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011), organizada por Eduardo de Assis Duarte. Em quatro volumes, ela traz desde o trabalho de clássicos do século 19 e 20, como Machado de Assis, Cruz e Sousa, Luiz Gama e Lima Barreto, a contemporâneos como Nei Lopes e Ana Maria Gonçalves. Foi graças a ela que descobri dois autores admiráveis: Adão Ventura (1946-2004) e Paulo Colina (1950-1999). E lendo o trabalho dos dois, na antologia e o que pude encontrar na Rede, fiquei pensando sobre os motivos que levariam estes autores a serem negligenciados. Primeiro, um poema de cada:


Negro forro

Adão Ventura

minha carta de alforria
não me deu fazendas,
nem dinheiro no banco,
nem bigodes retorcidos.

minha carta de alforria
costurou meus passos
aos corredores da noite
de minha pele.

 §

 Forja
Paulo Colina

entre uma calmaria
          e outra
do mar de nossas peles
me bastaria amor cantar o fogo
que somos na nascente
          de suas coxas

mas há essa dor de outros tempos
e corpos
essa rosa dos ventos sem norte
na memória sitiada da noite

embora o gesto possa ser
no mais todo ternura
o poema continua um quilombo
          no coração


Quando penso na importância que críticos e poetas brasileiros na década de 90 deram à concisão, à chamada “economia de meios”, me pergunto: por que poetas de mão tão firme, de escrita tão tesa quanto Adão Ventura e Paulo Colina permaneceram desconhecidos e negligenciados, quando outros fizeram suas carreiras sobre tais qualidades? A resposta que me vem à mente não é muito agradável.

Então, sem rodeios: será porque eram escritores negros? Eu me pergunto. Em um texto anterior aqui neste espaço [“Nota sobre literatura e consciência negra”, DW Brasil, 24/11/2014], escrevi o seguinte: “Pessoalmente, sempre penso em como uma parte considerável da melhor literatura brasileira no século 19 foi produzida por cidadãos à margem: o louco Qorpo-Santo, o filho de escravos Cruz e Sousa, o homossexual Raul Pompeia, o quase anônimo Joaquim José da Silva, que conhecemos como Sapateiro Silva, autor de alguns dos maiores poemas satíricos do país ao lado de Luiz Gama. No entanto, na história oficial da literatura brasileira, especialmente do Grupo de 22 em diante, esta visibilidade da presença negra na produção literária desaparece. Conhecemos a representação dos brasileiros negros em quadros de Tarsila do Amaral e Di Cavalcanti, em poemas de Jorge de Lima e Mario de Andrade, nos romances de Jorge Amado, mas o que houve com a visibilidade da produção de artistas e escritores negros no período? Seria de se esperar que essa visibilidade aumentasse quanto mais nos afastássemos do período escravagista, mas não é o que houve”.

O que complica a discussão é pensarmos que há outro fator: pois Ventura e Colina foram escritores negros que escreveram sobre a experiência da Diáspora. E isso agita outra fobia da cena literária: a politização da poesia, quando pensamos na ideologia trans-histórica que regeu a crítica na década de 90 e até meados do início deste século, baseada no ensaio “Da morte da arte à constelação: o poema pós-utópico”, de Haroldo de Campos. A escrita que demonstra claramente a experiência do que é o Outro na hierarquia social brasileira contesta nossa noção de Universal. Pois universal, já nos foi dito subliminarmente, é a experiência do homem branco heterossexual.

E com isso negligenciamos a literatura de escritores tão admiráveis quanto Adão Ventura e Paulo Colina, que poderiam ter sido referência àqueles que admiraram a escrita de Paulo Leminski, Sebastião Uchoa Leite e outros naquela década e hoje, por sua concisão, sua economia de meios, e assim por diante. Poemas como estes abaixo são admiráveis em tantos aspectos.

Limite
Adão Ventura

e quando a palavra
apodrece
num corredor
de sílabas ininteligíveis.

e quando a palavra
mofa
num canto-cárcere
do cansaço diário.

e quanto a palavra
assume o fosco
ou o incolor da hipocrisia.

e quando a palavra
é fuga
em sua própria armadilha.

e quando a palavra
é furada
em sua própria efígie.

a palavra
sem vestimenta,
nua,
desincorporada.

§

Solitude
Paulo Colina

Dentro desta noite cúmplice
tudo se funde
em meus ouvidos:
o assobio plano do vento
e as ondas pontuais das vozes
e gargalhadas
no interior dos bares.

Já estive em três deles. E até agora,
nenhuma cadeira me aqueceu direito;
nada do que bebi me caiu bem.

As horas se arrastam ao rés dos edifícios
do centro capital,
alheios à soturna clausura das palavras
dentro de mim.

Pelas ruas,
cada ponto de ônibus
é um cão vadio roendo silêncios.
Meu peito é um vão
por onde toda a cidade transita.


Que bonito seria, por exemplo, ver uma editora do porte de uma Companhia das Letras, que nos últimos anos publicou até antologias de poetas estrangeiros como Wisława Szymborska e W.H. Auden, com lindas fotos dos autores na capa, publicar também uma antologia com o lindo rosto negro do zimbabuense Dambudzo Marechera. E que seu maravilhoso trabalho de editar a obra completa de Paulo Leminski, Ana Cristina Cesar e Waly Salomão nao pare por aí, mas quem sabe possa fazer o mesmo com Adão Ventura e Paulo Colina. E que outras editoras sigam o exemplo.

Aos que amam apenas o universal parcial, quando se trata do desafio de colocar-se na pele do outro, que melhor caminho haveria além de um poema, vindo da pele do Outro?

Data

quinta-feira 07.05.2015 | 11:18

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