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Pequena homenagem a um grande editor: Vítor Silva Tavares

Nestes dois últimos anos, sofremos grandes perdas no mundo da língua portuguesa. Em 2014, as mortes se acumulavam, ao que nos parecia, diariamente. Pedíamos trégua ao Anjo pelas redes sociais, esperando que, a esta altura, até a Morte já tivesse perfil no Facebook e no Twitter. E nos seguisse, já que amiga nunca será. Houve um momento em que pensei fazer cartões de visita com a descrição de “obituarista” como profissão.

Este ano, infelizmente, não tem sido diferente. Mas parecemos nos acostumar, como o ser humano se acostuma a tudo. Em Portugal, morreu o grande Herberto Helder. Em Cabo Verde, o grande Corsino Fortes. Na América Latina, perdemos Eduardo Galeano e Pedro Lemebel. A lista seguiria.

Mas, se lamentamos a perda de um grande escritor, precisamos lamentar a morte de um grande editor, e poeta também, de mão satírica firme. Morreu nesta segunda-feira (21/09/2015), em sua Lisboa natal, Vítor Silva Tavares (1937-2015). Sem grandes editores, nós escritores, e especialmente poetas, estaríamos ainda mais sós do que já estamos. No entanto, o próprio talvez se irritasse com minha descrição de seu trabalho principal como de editor. Ele teria dito: “Sou editor? O que é isso? Já me irritei com alguém, que me chamou editor. Também compro a minha comida e cozinho, e não me chamam cozinheiro”.

Vítor Silva Tavares colaborou em diversos jornais de Portugal, foi diretor da editora Ulisseia e, em 1967, fundou o encarte &etc, dedicado à literatura e outras artes no Jornal do Fundão, encarte que se tornaria revista em 1973 e, no ano seguinte, editora. Pela & etc – encarte, revista, editora – passariam alguns dos mais destacados nomes da literatura portuguesa do pós-guerra e do novo milênio, como Mário Cesariny, Herberto Helder, Alberto Pimenta, João César Monteiro, Pedro Oom, Luiz Pacheco, Fiama Hasse Pais Brandão, Adília Lopes e Manuel de Freitas. Trata-se de um catálogo impressionante. E de escritores que não são exatamente conhecidos por fazer concessões ao fácil.

Poucos meses antes de sua morte, Vítor Silva Tavares lançou seu próprio livro Púsias [Lisboa: Editora 50kg, 2015], sobre o qual Hugo Pinto Santos escreveria n’O Público: “Se esta poesia aprendeu alguma lição, na sua rebeldia de não querer a pata dos senhores, foi a da liberdade. Que assimilou por parte de quem menos queria ser mestre: os surrealistas. Esta poesia não tira o chapéu. Porque não é cortês. Por essa ‘grande razão’, não pede licença, nem peca por nenhum ademane. É pura sublevação – ‘Como se alguém arrancasse a cabeça / e a escondesse no bolso das calças’. A única coisa que esta poesia agradece é o salutar trânsito (intestinal) de uma Boa cagada.” [Hugo Pinto Santos, “Porta fora da aula de poesia”, O Público, 13.03.2015].

O artigo cita um dos poemas:

“Que importa pois
a Terceira Mundial
se nós os dois
etecétera e tal?”

Em uma entrevista em vídeo ao programa Arquipélago, Vítor Silva Tavares definiu nestas palavras o trabalho daquele que busca levar aos leitores os livros que respeita: “Enfiar a agulha no palheiro”. Que descrição linda para o trabalho do editor e do crítico nestes tempos de imbecilidades acachapantes. Há toda uma ética e estética aí. Entra para minha lista de guias, como aqueles versos cantados pelos Secos & Molhados: “E no centro da própria engrenagem / Inventa a contra-mola que resiste”, da boca-pena de outro português.

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terça-feira 29.09.2015 | 11:23

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Lorca, feliz, vivo

Hoje é aniversário da data, 19 de agosto de 1936, em que se acredita com maior certeza ter sido aquela em que o poeta, dramaturgo, artista visual e músico Federico García Lorca fora assassinado por franquistas nos arredores de Granada, em Alfacar, este nome que ainda faz soar em nossos ouvidos os tempos do al-Andalus, o império dos mouros na Península Ibérica, que arqueólogos e estudiosos hoje acreditam ter sido o mais glorioso e tolerante império da Europa moderna. Sem os muçulmanos do al-Andalus, não teríamos tido os gregos como fonte de nossa ocidentalidade, não da maneira e à época em que os tivemos.

Lorca foi, afinal, um dos grandes poetas da Andaluzia, o autor do Romanceiro cigano (1928). E o fim completo do al-Andalus veio justamente com a queda de Granada a 2 de janeiro de 1492 para os reis católicos de Castela e Aragão. Granada, a de nome árabe e judeu – os árabes a chamavam de Ġarnāṭah, os judeus de Gárnata –, a cidade de eleição do poeta, onde ele cresceria e seria então capturado em uma noite de desespero ao se esconder na casa de Luis Rosales, seu amigo franquista, crendo poder escapar das represálias que davam início à Guerra Civil Espanhola (1936-1939). E foi a conquista e invasão católica de Granada que daria início à formação da Espanha que conhecemos hoje, a Espanha que Lorca dissecaria em trabalhos como A casa de Bernarda Alba (1936), sua última peça teatral.

Em um século que primou por manifestos literários da vanguarda, hoje quase todos esquecidos, datados, de importância talvez mais histórica do que estética, é talvez o despretencioso “Juego y teoría del duende” de Lorca que ainda nos comove, sua distinção apaixonada entre os artistas leais à Musa, ao Anjo e ao duende.

“Anjo e musa vêm de fora; o anjo dá luzes e a musa dá formas (Hesíodo aprendeu com elas). Pão de ouro ou prega de túnicas, o poeta recebe normas no bosquezinho de lauréis. Ao contrário, o duende tem que ser despertado nas últimas moradas do sangue.

E rechaçar o anjo e dar um pontapé na musa, e perder o medo da fragrância de violetas que exala a poesia do século XVIII, e do grande telescópio em cujos cristais dorme a musa enferma de limites.

A verdadeira luta é com o duende.”

— Federico García Lorca.  Obras Completas.  (Editora Aguillar,  tradução de Roberto Mallet).

rapúnOntem, buscando fotos de Federicio García Lorca, deparei-me com esta bela foto que ilustra esse pequeno artigo em homenagem a ele. Nela, vemos Federico García Lorca e Rafael Rodríguez Rapún, seu amante à época, caminhando pelas ruas de Madri, da Madri republicana, em 1935. À época, Lorca trabalhava em seus “Sonetos del amor oscuro”, nos quais alguns estudiosos identificam Rafael Rodríguez Rapún como destinatário.

Soneto gongorino en que el poeta manda a su amor una paloma
Federico García Lorca

Este pichón del Turia que te mando,
de dulces ojos y de blanca pluma,
sobre laurel de Grecia vierte y suma
llama lenta de amor do estoy parando.

Su cándida virtud, su cuello blando,
en limo doble de caliente espuma,
con un temblor de escarcha, perla y bruma
la ausencia de tu boca está marcando.

Pasa la mano sobre tu blancura
y verás qué nevada melodía
esparce en copos sobre tu hermosura.

Así mi corazón de noche y día,
preso en la cárcel del amor oscura,
llora, sin verte, su melancolía.

Os dois parecem felizes na foto. Lorca seria assassinado no dia 19 de agosto de 1936 por franquistas. Rapún morreria no dia 18 de agosto 1937, lutando contra franquistas.

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quarta-feira 19.08.2015 | 12:41

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Centenário de Paul Zumthor

Nestes dias, eu tento evitar usar expressões como “leitura obrigatória”, porque livros que me foram importantes não necessariamente têm que ter o mesmo significado para outros. Além disso, nós todos temos um tempo limitado na Terra, numa sábia decisão por parte da Natureza (no lamento de Andrew Marvell, “HAD we but world enough, and time”), e nossas bibliotecas eternamente incompletas sempre escondem outras bibliotecas possíveis, de tradições que ignoramos muitas vezes por desconhecimento e educação falha, além dos motivos bem menos nobres ligados a nossas heranças colonialistas e imperialistas.

introdução à poesia oralMas hoje é o centenário do grande medievalista suíço Paul Zumthor (1915-1995), e uma homenagem com recomendações de leitura se faz necessária. Para cantores, cancionistas, poetas vocais e críticos, seus estudos sobre a tradição oral e em especial a poesia medieval são encorajadores, entusiasmantes e muito informativos para termos um conhecimento mais amplo e menos hierarquizado da tradição poética. Sua Introdução à poesia oral, publicado originalmente em 1983 e editado no Brasil pela editora da Universidade Federal de Minas Gerais em 2010, é uma leitura importantíssima, especialmente no Brasil, que possui uma tradição oral ainda viva e forte no Nordeste, por exemplo, e onde críticos desatentos seguem requentando o debate frívolo sobre “letras de música como não sendo poesia”.

zumthor 2Extremamente atento a várias tradições, em livros como o já citado, ou ainda em La lettre et la voix (editado no Brasil como A letra e a voz em 1993 pela Companhia das Letras), Zumthor analisa a poesia oral de tradições que vão da árabe à brasileira, com especial atenção à “literatura” medieval europeia, desde os trovadores, mas falando ainda de cancionistas contemporâneos como Bob Dylan, Jacques Brel e repentistas brasileiros. No Festival de Poesia de Berlim deste ano, convidado a falar sobre o(s) futuro(s) da poesia, voltei a discutir como muitas de nossas previsões sobre o desenvolvimento da literatura ainda parecem marcados por nossa hierarquização entre tradição oral e tradição literária; pela forma como acreditamos que novas tecnologias deveriam necessariamente levar a novas formas literárias, quando temos em grande parte observado como estas novas tecnologias têm permitido justamente um retorno a tradições milenares da voz, ou simplesmente a valorização de uma tradição que jamais morreu.

A população mundial, apesar de nossas narrativas históricas falaciosas e tendenciosas, sempre se manteve leal à tradição oral. É por isso que a poesia vocal segue sendo a forma de arte mais popular do mundo. Quando Michelle Obama convida a cantora e compositora Sara Bareille ou o rapper Common para se apresentarem na Casa Branca, ela não está deixando de ligar-se em arco histórico a uma figura como a rainha Leonor da Aquitânia, que tinha trovadores provençais como Bernart de Ventadorn apresentando-se em sua corte.

No Brasil, nossa poesia oral é fortíssima, com cancionistas cujos textos até mesmo sobrevivem na página, o que não é obrigação nenhuma de um poema oral. Noel Rosa e Angenor de Oliveira, o Cartola, foram poetas sofisticados, e melhores do que alguns de seus poetas-escritores contemporâneos, como vários modernistas hoje esquecidos. Leiamos, por exemplo, o texto de “Conversa de botequim”, de Noel Rosa (1910-1037):

Conversa de Botequim
Noel Rosa

Seu garçom, faça o favor de me trazer depressa
Uma boa média que não seja requentada
Um pão bem quente com manteiga à beça
Um guardanapo e um copo d’água bem gelada
Feche a porta da direita com muito cuidado
Que não estou disposto a ficar exposto ao sol
Vá perguntar ao seu freguês do lado
Qual foi o resultado do futebol

Se você ficar limpando a mesa
Não me levanto nem pago a despesa
Vá pedir ao seu patrão
Uma caneta, um tinteiro
Um envelope e um cartão
Não se esqueça de me dar palitos
E um cigarro pra espantar mosquitos
Vá dizer ao charuteiro
Que me empreste umas revistas
Um isqueiro e um cinzeiro

Telefone ao menos uma vez
Para três quatro, quatro, três, três, três
E ordene ao seu Osório
Que me mande um guarda-chuva
Aqui pro nosso escritório
Seu garçom me empresta algum dinheiro
Que eu deixei o meu com o bicheiro
Vá dizer ao seu gerente
Que pendure esta despesa
No cabide ali em frente

Em minha opinião, tal poema não deixa nada a desejar ou dever aos poetas escritores modernistas das décadas de 1920 e 1930 no Brasil. Parece-me, em certos aspectos, até mesmo melhor que algumas das tentativas de nossos modernistas de captar a prosódia brasileira. Não tivesse eu lido Paul Zumthor, talvez jamais houvesse atentado para isso. Eis aqui meu agradecimento a ele em seu centenário.

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quarta-feira 05.08.2015 | 10:34

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O Homem da Rua Lopes Chaves

Foi há mais de setenta anos que o coração de Mário de Andrade deixou de bater, no dia 25 de fevereiro de 1945, o coração paulistano que ele pedira em seu poema que afundassem no Pátio do Colégio, e que a cabeça esquecessem na rua Lopes Chaves.

Meus pés enterrem na rua Aurora,
No Paissandu deixem meu sexo,
Na Lopes Chaves a cabeça
Esqueçam.

No Pátio do Colégio afundem
O meu coração paulistano:
Um coração vivo e um defunto
Bem juntos.

Carlos Drummond de Andrade, seu amigo, dedicou a ele uma das mais bonitas elegias da poesia brasileira, seu “Mário de Andrade desce aos infernos”: “Mais perto, e uma lâmpada. Mais perto, e quadros, / quadros. Portinari aqui esteve, deixou / sua garra. Aqui Cézanne e Picasso, / os primitivos, os cantadores, a gente de pé-no-chão, / a voz que vem do Nordeste, os fetiches, as religiões, / os bichos… Aqui tudo se acumulou, / esta é a Rua Lopes Chaves, 546, / outrora 108. Para aqui muitas vezes voou / meu pensamento. Daqui vinha a palavra / esperada na dúvida e no cacto. / Aqui nunca pisei. Mas como o chão / sabe a forma dos pés e é liso e beija!”Mario_de_andrade_1928b

Esta semana, foi aberta ao público em São Paulo a casa de Mário de Andrade na famosa Rua Lopes Chaves. Na Festa Literária Internacional de Paraty deste ano, é ele o homenageado. Os últimos anos viram a publicação, pela editora da Universidade de São Paulo, de sua correspondência com Tarsila do Amaral, Manuel Bandeira, Henriqueta Lisboa e Luiz Camillo de Oliveira Netto.

Por duas décadas, o poeta paulistano foi um dos dínamos da cultura brasileira, apaixonado e falho, como convém ao Brasil. Poeta, romancista, contista, crítico literário, musicólogo (pioneiro da etnomusicologia), ensaísta. Percorreu o país coletando cultura. Canções, poemas. Um dos idealizadores e fundadores do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, com Rodrigo Melo Franco (1898-1969), foi também o primeiro diretor da mais importante biblioteca pública paulistana, que hoje leva seu nome.

Foi um dos primeiros modernistas a sair de cena. Morreu em um ano fulcral para o país, oito meses antes do fim da ditadura estadonovista de Getúlio Vargas. O mundo ainda se encontrava em guerra, mesmo que os soviéticos já tivessem entrado na Alemanha pelo leste, e os americanos pelo oeste. Para nós, parece uma figura distante, emoldurada. Oswald de Andrade ainda viveria para ver Getúlio Vargas retornar ao poder e suicidar-se em 1954. Manuel Bandeira viveria para ver o país mergulhar no novo pesadelo ditatorial de 1964, morrendo exatos dois meses antes do AI-5 afundar o país de vez no terror. Carlos Drummond de Andrade sobreviveria a ditaduras e redemocratizações sucessivas.

Este não é o espaço para recontar os percalços da recepção crítica da obra de Mário de Andrade. Posso falar por mim, pelo tempo em que me vi desperto, respirando. A julgar por meus companheiros de geração, com os quais me correspondo, e por minhas próprias impressões, quando cheguei à cena sua obra parecia envelhecida, datada. Os anos 90, com a admiração pela obra enxuta e antilírica de João Cabral de Melo Neto, não pareciam encontrar muita serventia para o mais desbragadamente lírico dos poetas modernos brasileiros.

Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta,
As sensações renascem de si mesmas sem repouso,
Ôh espelhos, ôh Pireneus! Ôh caiçaras!
Si um deus morrer, irei no Piauí buscar outro!

Abraço no meu leito as milhores palavras,
E os suspiros que dou são violinos alheios;
Eu piso a terra como quem descobre a furto
Nas esquinas, nos táxis, nas camarinhas seus próprios beijos!

Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta,
Mas um dia afinal eu toparei comigo…
Tenhamos paciência, andorinhas curtas,
Só o esquecimento é que condensa,
E então minha alma servirá de abrigo.

Sua insistência numa grafia brasileira, seguindo a fala do povo, parecia uma ilusão de pertencimento que o homem privilegiado de São Paulo nutria de forma sincera, mas equivocada. Lembro-me de ler seu poema “Descobrimento”, sobre aquele “homem pálido magro de cabelo escorrendo nos olhos, / Depois de fazer uma pele com a borracha do dia, / Faz pouco se deitou, está dormindo. // Esse homem é brasileiro que nem eu”, e pensar: “Não, Mário, não é”, irritado com o que me parecia uma visão demasiado romântica das desigualdades regionais do país. É claro que a incompreensão era minha, não do homem da Rua Lopes Chaves. Na aura pseudocosmopolita daqueles anos (esta foi a nossa ilusão, o nosso equívoco), o nacionalismo de Mário de Andrade (e de seus companheiros, em menor medida) parecia-me simplesmente cafona.

Em Oswald de Andrade, a busca por uma poesia genuinamente brasileira levara às experimentações poéticas da Poesia Pau-Brasil, que até mesmo nos permitiriam discuti-lo hoje como um precursor do que mais tarde se tornaria uma prática da Internacional Situacionista, ou de um poeta como o austríaco Heimrad Bäcker [ver meu texto “Austríacos em meus olhos e ouvidos”], da poesia conceitual contemporânea – com suas apropriações dos textos coloniais portugueses. Deu-nos os romances experimentais e estimulantes como ainda são as Memórias Sentimentais de João Miramar (1924) e Serafim Ponte Grande (1933). E mesmo sua lírica desbragada, como no lindíssimo Cântico dos Cânticos para Flauta e Violão (1942), tem outra pegada, outra firmeza de mão. Quanto à poesia lírica de Manuel Bandeira, este jamais abandonou a limpidez, a clareza. Sua relação com a fala popular era outra, talvez mais sóbria e consciente.

Mário de Andrade, comparado a eles, era exagerado, um poeta que se abismava. É o brasileiro que negamos, que temos certa vergonha de ser, com nossas lágrimas – verdadeiras – derramadas sobre uma bandeira com lema positivista. Mário nos constrange porque nos constrangemos de nós mesmos. De nosso desbordamento, de nossas contradições. Talvez por isso sua prosa nos pareça ainda o que tem de mais fresco, mais vivo, pois nelas estas contradições parecem encontrar uma síntese. Macunaíma (1928) é um texto em que sua preocupação com a brasilidade e a experimentação vanguardista encontram seu equilíbrio. Jamais será compreensível para um estrangeiro, é bem provável, mas é uma das joias de nossa vanguarda histórica.

Aqui, tentando chegar ao fim do que se quer apenas uma homenagem meio capenga e cheia de confissões tolas sobre o homem da rua Lopes Chaves, preciso tocar em outro tema. Pois, para mim, há algo que por vezes ainda irrita minha sensibilidade quando penso em Mário de Andrade: a eterna negação e pergunta jamais respondida sobre sua sexualidade. Sei que alguns dirão que isso não importa. É óbvio que o sigo admirando pelos textos e pelos trabalhos práticos que nos doou. Sei também que é necessário pensar em seu contexto histórico, no Brasil em que vivia, onde mesmo homens inteligentes como Oswald e Drummond foram capazes de seus momentos de homofobia. Quando penso no tiro no peito que o grande Raul Pompeia infligiu a si mesmo no natal de 1895, compreendo o silêncio de Mário de Andrade, caso tenha sido realmente silêncio.

Estes dois escritores, com suas reputações de “hipersensíveis”, sobre os quais o “fantasma da homossexualidade” sempre paira, complicado, gerando em críticos as desculpas e comentários mais constrangedores, com seus silêncios e suas defesas de honra, por fim seriam os que nos deram alguns dos textos brasileiros mais significativos e corajosos sobre a sexualidade. O Ateneu (1888), de Raul Pompeia, é um livro presciente das discussões que tomariam de assalto o século 20. E Mário de Andrade, em contos como “Frederico Paciência” e, especialmente, em “Atrás da Catedral de Ruão”, criaria tanto uma imagem luminosa do homoerotismo (“Frederico Paciência era aquela solaridade escandalosa”), como uma imagem tenebrosa de nossas neuroses sexuais, com aquele final memorável, assustador, carregado de violência, que é a cena da perseguição imaginada por Mademoiselle atrás da Igreja de Santa Cecília. A equação entre sexualidade e violência em Raul Pompeia e Mário de Andrade parece-me algo que só seria enfrentado de frente pelo abertamente homossexual Lúcio Cardoso, em Crônica da Casa Assassinada (1959), e mais tarde por Hilda Hilst e Roberto Piva, estes que jamais tiveram medo de coisa alguma – certamente não da violência que cerca o sexo em nosso mundo.

Hoje, eu próprio um lírico desbragado, indecoroso, exagerado, celebrando ininterruptamente meus Fredericos Paciências, testando minha mão nos meus próprios poemas pseudo-dialetais, olho para a figura de Mário de Andrade com respeito, com carinho, e respeito suas falas e seus silêncios.

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terça-feira 26.05.2015 | 10:15

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Austríacos em meus olhos e ouvidos

Em meu último texto neste espaço [“Sprachraum. Lusofonia.”, DW Brasil, 8.5.2015], comentei as diferenças entre as esferas linguísticas da língua alemã e da língua portuguesa, apontando de passagem o que elas geram em distinções nas comunidades literárias das duas línguas. Pois, ainda que os trabalhos de escritores de língua alemã circulem de forma mais livre no bloco geográfico germânico, por este ser tão compacto, é óbvio que os contextos históricos específicos de cada país, em especial sua relação com a história recente do século 20, exigem muitas vezes dos autores estratégias diferentes. Antes de seguir, quero frisar que minha conversa não quer propor hierarquias entre as literaturas nacionais que comentarei aqui.

Eu sempre insisti na importância do contexto histórico para a compreensão e discussão do trabalho literário. No caso do Brasil, o passado colonial sempre terá uma influência sobre as relações literárias entre o país e Portugal. Quando pensamos na literatura de vários países das Américas, é interessante notar como, por exemplo, as literaturas do Brasil, do México e dos Estados Unidos tendem a ter sanha e manha experimentais maiores que as de Portugal, Espanha e Inglaterra, respectivamente. Talvez isso se dê justamente pelo passado colonial, e aquela sensação de que a tradição da língua lhes pertence e não lhes pertence, ao mesmo tempo. Crer que se está começando dá maior liberdade.

Mas como se daria isso no caso dos países que têm o alemão por língua oficial? Talvez um novo paralelo entre o português e o alemão nos ajude: pois um dos mais frutíferos movimentos experimentais brasileiros, a Poesia Concreta, teve dupla paternidade em língua portuguesa e em língua alemã, com os experimentos iniciados por volta de 1952 por Haroldo de Campos, Décio Pignatari e Augusto de Campos no Brasil, e por Eugen Gomringer, poeta boliviano naturalizado suíço. Ao mesmo tempo, as estratégias das vanguardas históricas do entreguerras, em especial o Dadaísmo (que teve seu nascimento em 1916 em Zurique, na Suíça, não na Alemanha), foi retomado com força primeiramente na Áustria, com o Grupo de Viena (H. C. Artmann, Konrad Bayer, Gerhard Rühm etc.).

Quando comparo as literaturas alemã e austríaca hoje, em especial na poesia, noto as mesmas sanha e manha experimentais maiores que noto nos países americanos em comparação com os países da matriz de suas línguas. Isso não quer dizer que não houve experimentação na Alemanha no mesmo período, com Helmut Heissenbüttel por exemplo na década de 50. Mas isso teve muito mais força na Áustria. Quando pensamos na prosa experimental, alguns nomes nos vêm à mente: Joyce e Beckett, em inglês (nascidos na Irlanda), Guimarães Rosa, em português (nascido no Brasil), assim como vários escritores de língua francesa nascidos fora da França. Na língua alemã, o prosador geralmente mencionado junto destes é o austríaco Robert Musil, assim como pensamos nas inovações do suíço Robert Walser e do austro-húngaro/tcheco Franz Kafka. Mas, um vez mais, deixo claro que não estou tentando hierarquizar, nem criar um determinismo, como se bastasse nascer em determinado país para se tornar um escritor experimental. Sabemos dos tantos tradicionalistas que já nascem com mofo no Brasil.

O poeta austríaco mais conhecido no Brasil, eu arriscaria dizer, é o expressionista Georg Trakl, que me parece mais moderno que alguns de seus companheiros alemães, como Ernst Stadler, Georg Heym e Else Lasker-Schüler, exceção feita a August Stramm.

Minha primeira paixão austríaca foi na verdade um pensador, o judeu homossexual Ludwig Wittgenstein. Em seu livro A Escada de Wittgenstein [São Paulo: Edusp, 2008. Tradução de Aurora Bernardini], a crítica norte-americana Marjorie Perloff discute como o pensamento de Wittgenstein parece congenial na língua alemã ao trabalho literário de outros três austríacos: Ingeborg Bachmann, Thomas Bernhard e Peter Handke. São três dos autores por quem mais tenho interesse no pós-guerra germânico. Peter Handke, no contexto de nossa conversa, foi instrumental para a renovação do debate literário germânico no período, em especial por seu papel em questionar a influência do chamado Grupo 47, formado na Alemanha em 1947 para retomar os trabalhos literários após a queda do regime nazista, e no qual ganharam atenção alguns dos mais importantes escritores de língua alemã das próximas décadas, como Günter Eich, Heinrich Böll, Martin Walser e Günter Grass.

Com uma estética e ideologia que poderíamos chamar de neo-realista, é conhecida a reação de grande parte do grupo quando Paul Celan leu em um dos encontros pela primeira vez: rejeição completa. Ainda que a literatura do grupo tenha formado o que ficou conhecido como Trümmerliteratur (Literatura dos escombros), uma poesia como a de Celan, que fazia em escombros a própria língua e literatura, não era bem-vinda. O ataque de Peter Handke ao grupo em 1966 é considerado um dos fatores determinantes para sua dissolução, que teve seu último encontro em 1967. Peter Handke viria a se tornar um dos autores mais influentes e renovadores da língua nas décadas seguintes.

Outra das experiências mais radicais da literatura em língua alemã do pós-guerra, tratando de frente o terrível passado histórico da região, é o trabalho do também austríaco Heimrad Bäcker. Usando material linguístico já existente, extraído dos arquivos do regime nazista (algo como o que Oswald de Andrade faria com documentos e textos coloniais), Bäcker criou alguns poemas poderosos, como este abaixo, intitulado “epitáfio (3)”, de 1986, que usa o material do “plano ferroviário nr. 587 da direção geral da ostbahn (ferrovia do leste), do dia 15 de setembro de 1942 – ‘trem especial para migrantes'”.

9228 de sedziszow para treblinka

9229 trem vazio

9230 de szydlowiec para treblinka

9231 trem vazio

9232 de szydlowiec para treblinka

9233 trem vazio

9234 de kosienice para treblinka

9235 trem vazio

Sedziszow, Szydlowiec e Kosienice são cidades do interior da Polônia. O campo de extermínio de Treblinka é o mais conhecido dos quatro campos de extermínio da chamada “Operação Reinhard”, nome dado pelos nazistas para o programa de extermínio dos judeus poloneses. Treblinka foi o destino da grande maioria dos judeus do Gueto de Varsóvia. Entre julho de 1942 e setembro de 1943, cerca de 750.000 judeus foram assassinados no campo. Trabalhos de apropriação como este só começariam a ser praticados na Alemanha nos últimos anos, em especial no trabalho crítico e poético de Swantje Lichtenstein.

As cenas poéticas alemã e austríaca são razoavelmente distintas hoje. Com formações literárias e acadêmicas, a poesia alemã demonstra ainda hoje características menos experimentais que a austríaca. Gostaria de encerrar este texto tratando de quatro poetas contemporâneos austríacos por quem tenho especial admiração e interesse, vindo de quatro gerações distintas: Christian Ide Hintze (1953-2012), Jörg Piringer (n. 1974), Max Oravin (n. 1984) e Oskar May (n. 1991). Quatro poetas experimentais, ligados à prática da poesia sonora, que tem muito mais força na Áustria que na Alemanha.

Christian Ide Hintze, nascido em Viena, foi uma das vozes mais importantes da poesia experimental germânica nas últimas décadas. Defensor das possibilidades que as novas tecnologias traziam para novas práticas e também de um retorno a formas milenares de manifestação poética, trabalhou com filme e intervenções urbanas em cidades como Viena, Londres, Estocolmo. Chegou a ser preso na Berlim Oriental por uma performance, expulso de uma feira editorial em Stuttgart e condenado em Viena por destruição de patrimônico público por colar poemas e cartazes nas paredes do Burgtheater. Em 1992, fundou em Viena a importante e influente Schule für Dichtung (Escola de Poesia), na qual deram aulas poetas como Allen Ginsberg, Humberto Ak’abal, Nick Cave, H. C. Artmann, Anne Waldman, Blixa Bargeld, Henri Chopin, Ed Sanders, Ayu Utami e Inger Christensen. Sua morte prematura em 2012 foi um choque e uma grande perda.

Jörg Piringer é um poeta sonoro e visual. Atualmente, vive e trabalha em Viena. Alguns de seus trabalhos incluem the joseph boys – stille nacht (performance sonora), konkrete inventionen – samplepoems, hearings (trabalho organizado para o Instituto de Pesquisa Transacústica), digitale dichtung (poesia digital) e wir alle (filme sonoro-textual). O trabalho poético de Jörg Piringer une poesia sonora e visual, tornando-se uma demonstração das possibilidades criativas para a poesia em outras mídias, independente do papel para composição, divulgação e distribuição. É uma das experiências mais radicais na língua alemã em termos de uma pesquisa de novas práticas poéticas a partir de novas tecnologias. Nos últimos anos, tem se dedicado à criação de aplicativos para celulares que permitem jogos de linguagem.

Max Oravin prepara seus textos para performance, compondo-os com música eletrônica e apresentando-se como Oravin. Como uma espécie de Minnesänger contemporâneo, seus textos estão ligados à tradição trovadoresca, permitindo que funcionem tanto na voz como na página.

a grande chancelaria do sol

sobre o fogo há uma rocha e sobre ela uma rocha e sobre ela uma rocha
e sobre ela a terra negra
e sobre a terra estão os pés
e sobre os pés flutua um crânio
e sobre o crânio está uma faca e costura
um pensamento

e sobre o crânio está um osso e sobre o osso os cabelos
e sobre os cabelos está o céu o inquieto amplo céu
e entre o céu estão pássaros com ossos e penas
e no crânio os pensamentos

e sobre o céu está o mundo e curva-se perante o rei

sobre o rei está um chanceler e sobre ele um chanceler maior
e sobre ele a chancelaria
a grande chancelaria do sol
e sobre o sol está a noite longa
com longos dedos frios

e sobre a noite está o dia o infindável dia
e no dia está uma faca e costura o céu
para que caia daí a luz
no dia está a faca e costura
a luz

EU ABRO MINHA BOCA
E VOCÊ INSERE UM VOCÁBULO
UM PEDREGULHO NA LÍNGUA

EU ABRO MEU OUVIDO
E VOCÊ INSERE UM VOCÁBULO
UM OSSO MASTIGADO

EU ABRO MINHA MÃO
E VOCÊ COSPE SEU VOCÁBULO
SEU VOCÁBULO SALIVADO

EU ABRO MINHA MÃO
E VOCÊ ME DÁ UMA PEDRA
E A PEDRA CRESCE EM ROCHA

(tradução minha)

Por fim, tive o prazer de conhecer este ano o jovem poeta e escritor Oskar May, também de Viena, como Hintze e Piringer. Formado em filosofia, Oskar May é um dos cofundadores de um dos eventos mais interessantes da capital austríaca no momento, o “Philosophy Unbound”, que tem atraído centenas de pessoas para eventos em que jovens apresentam suas falas e textos de filosofia. Além disso, Oskar May tem uma das vozes mais belas da poesia alemã contemporânea, como voz física e voz poética, num trabalho sonoro que retoma tanto certas práticas dadaístas como do trovadorismo germânico.

Apesar de viver na Alemanha, é por estas razões que meus ouvidos e olhos muitas vezes se direcionam para a Áustria.

Oskar May

Oskar May

Data

terça-feira 12.05.2015 | 09:08

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