Abud Said: um autor nascido na Síria, refugiado na Alemanha e agora publicado no Brasil
Guerras são o reino oficial dos números. Números de tropas, de batalhas, de refugiados, de mortos. No ano passado, as manchetes dos jornais europeus ganharam novos números, recorrentes: os de afogados no Mediterrâneo. Eram 400 numa manhã, para uma semana depois subirem para 900. Os números flutuavam como os corpos, mas eram constantes. A História oficial não tem como dar conta de cada um destes indivíduos, especialmente após termos nos acostumado a ler nela apenas sobre os feitos de vida e da morte de reis e de presidentes.
A guerra civil síria, iniciada em 2011, tem reverberado num raio de milhares de quilômetros, atingindo países do norte da África, do Oriente Médio e de toda a Europa. Mais uma vez, somos confrontados com os destinos abstratos de números.
Até que abrimos um livro com textos escritos em meio aos bombardeios, e lemos: “Meu quarto é o que não tem cama / tem uma TV e um aquecedor / minha mãe sempre fica sentada nele / rezando e assistindo às notícias, e como ela não sabe ler, todo dia me pergunta o número de vítimas. / Fico nervoso com as perguntas dela e de vez em quando invento um número da minha cabeça.”
Este é um fragmento do livro O Cara Mais Esperto do Facebook, do sírio Abud Said (na Alemanha grafado como Aboud Saeed), que a Editora 34 lança neste mês de junho em tradução do árabe por Pedro Martins Criado. Foi um dos primeiros textos que li ao me deparar com a tradução alemã de Sandra Hetzl, lançada pela Mikrotext Verlag, lançado pela primeira vez como livro digital, especialidade da editora alemã.
Abud Said jamais planejou ser escritor, ou ter estes textos reunidos em livro. Nascido na vila síria de Manbij em 1983, vivendo a maior parte de sua vida em Alepo, no norte do país, ele trabalhava como ferreiro quando eclodiu a guerra. Seus textos, todos postagens no Facebook, documentam a vida normal de um homem que trabalha em seu país natal, falando sobre cigarros, mulheres, a relação com sua mãe. E o impacto humanizador de seu livro é justamente ver sua vida seguir desenrolando-se entre cigarros, mulheres, o trabalho, a vida doméstica em meio à guerra. No dia 30 de dezembro de 2011, já após a chamada Primavera Árabe, Said posta: “Escreverei tudo que me vier à cabeça / sobre a vizinha que pegou um prato nosso / emprestado e devolveu outro / Minha mãe, ressentida, mandou-me à casa dos vizinhos para dizer: este não é o nosso prato. / O nosso é o que tem uma flor verde estampada.” Um texto como esse, escrito em tal contexto, dá um significado mais vivo à nossa expressão surrada de “A vida continua”.
Nas palavras do próprio Abud Said, “Escreva como se tocasse piano em uma sala vazia”. Talvez tenha sido sua despretensão por qualquer carreira literária, mas eivada por um talento claro, que o tenha tornado tão conhecido e lido num momento em que muitos escritores oficiais naufragaram ao tentar dar voz aos vivos e aos mortos da guerra.
Conversando com sua tradutora alemã, Sandra Hetzl – que vive há algum tempo em Beirute, foi assim que ela me relatou a descoberta: buscando autores contemporâneos de língua árabe a pedido de editoras alemãs, ela encontrava apenas vozes de palanque, ou enfeitadoras demais. Um conhecido sugerira: adicione Abud Said no Facebook ou o siga. Foi assim que a reunião de seus posts se tornou o volume Der klügste Mensch im Facebook: Statusmeldungen aus Syrien, que teve tanto sucesso em sua versão digital que também ganhou versão impressa. Traduzido para o inglês e o espanhol, e transformado em peça radiofônica. Agora, o livro chega ao português, editado no Brasil, e Abud Said vem ao país para participar da FLIP 2016. Vivendo há um ano como refugiado em Berlim, após a guerra destroçar sua cidade de Alepo, Abud Said vê tudo com o ceticismo que demonstra em seus textos. Eu o conheci pessoalmente em um festival na Eslovênia. Ele continua sendo um cara que quer apenas fumar seus cigarros em paz.
Alemães e estrangeiros na cena literária berlinense
Todo mundo conhece o papel que Paris teve nas vanguardas artísticas do entreguerras. As imagens de Picasso, Chagall, Hemingway e Buñuel pela cidade. Quem leu A Autobiografia de Alice B. Toklas (recomendo muito!), da também exilada Gertrude Stein, se divertiu com as histórias destes artistas na casa dos 20 e 30 anos, embebedando-se, brigando, roubando namoradas uns dos outros, tendo perrengues por questões de reputação e fama. A história oficial diz então que este centro mudou-se para Nova York depois da guerra, a nova capital internacional das artes.
O papel de Berlim na história é menos conhecido. Nos metrôs da capital alemã é fácil ver turistas lendo Goodbye to Berlin, de Christopher Isherwood, que ficou popular depois do filme de Bob Fosse, Cabaret (1972), com Liza Minnelli no papel de Sally Bowles – a americana que ganhava a vida nos cabarés da República de Weimar quando os nazistas tomaram o poder. Um livro quase oficial dos expatriados em Berlim. Já os poemas de seu amigo W.H. Auden escritos em Berlim são menos conhecidos, assim como a comunidade de russos que se exilaram lá após a Revolução de 1917, entre eles Marina Tsvetáieva, Vladimir Nabokov e Nina Berberova. Um de seus retratos mais interessantes está no livro Zoo, ou cartas não sobre amor (1922), de Victor Chklóvski, escrito em Berlim.
É que o papel da capital alemã é mais apimentado. Isherwood e Auden não escondiam que vieram a Berlim em busca da liberdade sexual que não encontravam na Inglaterra. Sua biografia berlinense está marcada por visitas a inferninhos gays em Schöneberg, ainda hoje o centro da cena gay mais hardcore da cidade. Berlim atrai um outro tipo de pessoa. E isso não mudou muito. Os escritores vêm em busca de amor/libertinagem, aluguéis baratos e a possibilidade de escrever em tempo integral, algo impossível em outras cidades. E é vibrante a cena internacional em Berlim. Perambulam hoje pela cidade o irlandês John Holten, o inglês Sean Bonney, o sírio Abud Said (que terá em breve livro lançado no Brasil pela Editora 34), o nigeriano Michael Salu, ou o dissidente chinês Yang Lian, a brasileira Érica Zíngano, a sueca Cia Rinne, para mencionar alguns dos mais conhecidos.
É preciso falar, no entanto, sobre algo que me incomoda: a falta de diálogo entre as cenas de língua alemã e de línguas estrangeiras em Berlim. Por falar alemão, frequento leituras das duas comunidades. Mas não sou um caso comum. Em geral, os autores alemães frequentam os alemães, os estrangeiros dão atenção aos estrangeiros. A barreira óbvia é a língua. Enquanto artistas visuais não dependem, na maioria dos casos, de tradução, a língua é o material do escritor. Há exceções, é claro. Mas em minha opinião falta diálogo e interesse, muitas vezes, por parte dos escritores alemães, pelo que estão fazendo os escritores estrangeiros da cidade. Não é só a língua que se torna uma barreira. Línguas estão fincadas em tradições diferentes. Usando tanto da ironia e do sarcasmo, evitando o lirismo, os poetas alemães estranham e rejeitam o lirismo e a performatividade de tradições mais ao sul, tanto latino-americanas como africanas.
Mas há mudanças no ar. Editoras berlinenses como a Verlagshaus Berlin e a Kookbooks vêm publicando cada vez mais estrangeiros residentes em Berlim, em excelentes traduções. Minha esperança é que estas traduções sirvam de pontes sobre as barreiras das línguas, e as comunidades literárias berlinenses, em alemão e outras línguas, percebam e usufruam melhor as possibilidades de diálogo internacional na cidade. Especialmente neste momento de incompreensão de uma parcela da população alemã sobre o que podem trazer imigrantes à cultura local.
Tradutora de Angélica Freitas recebe prêmio nos EUA
Estes dois últimos anos têm sido de redescoberta da Literatura Brasileira nos Estados Unidos e no mundo anglófono em geral. Talvez redescoberta seja impreciso ou exagerado, já que não se sabe se realmente a descobriram de forma ampla em algum momento. Nas duas últimas décadas, algumas coleções dedicadas à Literatura latino-americana trouxeram, entre outros, Machado de Assis aos norte-americanos em cuidadas edições. Autores como Susan Sontag e cineastas como Woody Allen se declararam fãs. E o ano passado foi certamente de Clarice Lispector.
Apenas esses dois já nos representariam muito bem no cânone mundial, ainda que críticos reivindiquem espaço para outros excelentes escritores, como João Guimarães Rosa e Lúcio Cardoso, com catataus que certamente impressionariam os gringos se um tradutor louco e genial conseguisse verter com justice para o inglês obras como Grande Sertão: Veredas e Crônica da Casa Assassinada. Mas já tratamos de tudo isso neste blog.
Hoje quero celebrar o fato de que Hilary Kaplan, a tradutora norte-americana de Angélica Freitas, recebeu o prêmio Best Translated Book Award (BTBA) por sua tradução de Rilke shake, lançado no Brasil pela poeta gaúcha em 2007, na coleção de poesia contemporânea capitaneada por Carlito Azevedo para a finada Cosac Naify. A tradução foi lançada nos Estados Unidos pela Phoneme Editions e já havia concorrido ao prêmio PEN de tradução de poesia. Mas, desta vez, levou a estatueta (se a há) e a soma de 5.000 dólares para autora e tradutora. Em prosa, o prêmio foi para outra tradutora de um autor latino-americano, Lisa Dillman, por sua versão do romance Signs Preceding the End of the World, do mexicano Yuri Herrera.
Em artigo de um dos jurados, Tess Lewis, o prêmio ao livro de Angélica Freitas foi recomendado porque sua “antiga irreverência e licença poética exuberante são contagiantes, mas não ocorrem em detrimento da profundidade”.
Sobre o trabalho da tradutora Hilary Kaplan, a jurada escreveu que “ela fez justiça aos poemas de Freitas, capturando as muitas mudanças de tom nas linhas e nas entrelinhas, de lúdico e irônico a sardônico e patético e até mesmo sentimental, para inexpressivo e de volta para brincalhão, às vezes dentro de um único poema”. “Fica claro que ela leva a poesia muito a sério para não desmantelá-la e usá-la para seus próprios fins”, prosseguiu.
Em prosa, concorriam ao prêmio os tradutores de autores festejados como José Eduardo Agualusa, Elena Ferrante, Mercè Rodoreda e a própria Clarice Lispector – a tradutora Katrina Dodson venceu há pouco o prêmio PEN por sua tradução dos Contos Completos, agora lançados no Brasil), ao lado dos tradutores de autores mais jovens, como Valeria Luiselli e Fiston Mwanza Mujila. Em poesia, a lista era também bastante variada, incluindo livros de poetas como Yevgeny Baratynsky, Silvina Ocampo e Yi Lu.
A gaúcha Angélica Freitas é uma das poetas da minha geração que têm garantido um lugar firme na boca e nos olhos dos leitores de poesia deste novo século, ao lado da mineira Ana Martins Marques e da portuguesa Matilde Campilho. Este prêmio é uma boa notícia para ela, para a poesia escrita por mulheres no Brasil, e para todos nós que as lemos com atenção e admiração.
Sobre “Uns contos”, de Ettore Bottini
Com sua morte prematura em dezembro de 2013, durante uma cirurgia cardiovascular, sabíamos que, com Ettore Bottini, o país perdia um de seus melhores artistas gráficos, um profissional competente e apaixonado dos bastidores da literatura. Visível, mas invisível, como tantos profissionais excelentes de bastidores na labuta de fazer os grandes textos chegarem a seus leitores.
Luiz Schwarcz, editor da Companhia das Letras, lamentou a morte do colega em texto que o chamava de um dos grandes e primeiros responsáveis pelo aspecto visual dos livros da editora. Bottini projetou para a Companhia das Letras, entre dezenas de outras editoras, capas de volumes dos brasileiros Alfredo Bosi, José Paulo Paes e Decio de Almeida Prado, assim como dos estrangeiros Jean Starobinski, Edmund Wilson, Roger Bastide e Gérard Lebrun, entre inúmeros outros. Seus projetos de capa para as redescobertas de grandes livros, como Lavoura Arcaica e Um Copo de Cólera, de Raduan Nassar, são emblemáticas de seu estilo limpo, legível, elegante. Sem firulas ou fuzuê, alguém diria lá pelas bandas onde nasci, ainda que o meu próprio uso dessas palavras possa parecer firula e fuzuê. Mas, se faço uso dessas palavras, é por motivo que elaboro adiante.
A publicação póstuma de Uns contos (São Paulo: Cosac Naify, 2014), volume com 11 narrativas curtas de Bottini, seguidas de sete “aparas”, ou começos de contos, mostra-nos que perdêramos em 2013 não apenas um excelente artista gráfico, mas também um impecável artista textual, um escritor de verdade escondido em meio aos celebrados incapazes. E que nos deixou alguns dos melhores contos da literatura brasileira deste novo século. O escritor cuiabense Joca Reiners Terron o diz de maneira clara e direta no título de sua resenha: Livro Uns Contos, de Ettore Bottini, já nasce clássico [Folha de S. Paulo, 22.03.14]. Não poderia estar mais de acordo. Terron fala ainda da “linguagem de talhe clássico, da minúcia vocabular com predileção por expressões incomuns (’embarafustou para a rua’, lê-se em Todos os Medos) e o jargão de ambientes que ressurgem no entremear das histórias, como o do turfe, da marinha e da pesca fluvial, e em muito bem-vindas paisagens rurais que destoam da onipresença urbana no conto brasileiro contemporâneo”.
Bottini nasceu em Blumenau, Santa Catarina, em 1948. Estudou na Marinha de Guerra e chegou a iniciar a faculdade de Arquitetura antes de dedicar-se à arte gráfica, trabalhando para várias editoras e projetando centenas de livros. Sua passagem pela Marinha nos demonstra a origem de seu uso seguro do vocabulário e certa rotina do mar para um conto como Irmãos de Armas, sobre marujos brasileiros em um navio atracado em Montevidéu, onde perambulam pela cidade. O mar retorna em Material para a um Conto, que nos leva ao policiamento britânico dos mares após o Aberdeen Act de 1845 – entre a Rainha Vitória, da Inglaterra, e Pedro 2º, do Brasil –, num texto que ressuscita de forma convincente, em plena literatura brasileira, a narrativa sobre piratas.
Nas palavras de Terron, as paisagens “rurais” de Bottini, talvez resultem de uma vida iniciada neste espaço cultural algo indefinido, que atravessa diversas fronteiras estaduais. Um espaço geográfico a que geralmente damos o nome de “interior” e que perpassa torrões de terra de Goiás e Minas Gerais a Paraná e Santa Catarina, longe dos litorais e capitais, passando por cidadezinhas de São Paulo e Mato Grosso. Mudam-se as comidas e os sotaques, mas permanece uma certa modorra de verões gastos em pescarias à beira de rios e lagos, onde decisões familiares importantes são tomadas em churrascos em meio a perrengues sob a sombra de mangueiras.
Senti um reconhecimento desse ambiente cultural interiorano, tendo nascido nas terras caipiras de São Paulo, em contos como As Provisões do Tempo, sobre um dono envelhecido da mercearia de uma cidadezinha que se recusou a crescer; e Hey, Joe, sobre o neto matador de aluguel de uma família próspera de fazenda. Há ainda O Mesmo Rio, sobre a reunião dos membros de uma família na terra natal antes do retorno à capital.
Em sua escrita, está presente a mesma elegância e legibilidade de suas capas. Sim, há contos de “talhe clássico”, nos quais Bottini recusa epifanias construídas. Não há revelações repentinas, não há catástrofes surpreendentes. Não há estrela cadente, sem aviso: há a descoberta de que o cometa Halley passará em 14 anos. Tudo à espera, até o maravilhoso e extraordinário tem anúncio. Nada fora dos eixos, ainda que os eixos sejam tortos. A espera do próprio destino, igual ao do amigo velho, enquanto se observa o desenrolar das decepções da velhice. Há o luto lento em um conto tão bonito como Mundo Natural, no qual um homem, após viajar milhares de quilômetros da capital ao interior, onde enterrou o pai, e então de volta à sua casa, chega à descoberta do que é a dor da perda de forma gradual, como anestesia que perde o efeito lentamente, observando uma mariposa presa em sua cozinha.
Ainda que algumas de suas expressões possam parecer incomuns, seu vocabulário sempre parece adequado ao ambiente em que surgem para definir, nomear, e, num tom baixo, sem gritaria, louvar. A um leitor da cidade grande, talvez pareça estranho ler “coaxar” se há anos não vê um sapo. Se lê “brim”, dentro de seus jeans, sem jamais ter visto um daqueles velhos senhores em suas calças de brim. Para certos leitores, um lambari será sem dúvida coisa raríssima, e capim é só algo que se vê bordeando rodovias. Por que haveria de aparecer com frequência na literatura? Estamos preocupados com coisas maiores. Não, não vejo firulas nem fuzuê, tudo o que vejo é precisão.
Bottini parece-me um grande observador da alma humana, mas não cai jamais na tentação de criar situações inusitadas e fora do comum para desentranhar verdades escondidas sob as ilusões de si mesmos, que talvez pudessem enovelar suas personagens. Sua tática parece ser simplesmente a de olhar com calma, dar-lhes tempo para que se revelem. Encarar essas pessoas como se escondido atrás de uma cortina puída, deixando-as em seus ambientes naturais, para que no minuto em que mais se sintam protegidas dos olhos de todos, suas naturezas saltem à pele e a pipoquem, façam-se visíveis. E tudo isso no espaço exíguo do conto.
Sim, seus contos, tão poucos, fazem muito. Há os que possuem realmente o talhe clássico de que falou Terron. Teriam sido grandes textos entre os nossos modernistas e são grandes textos entre nós, hoje. Perenes. Mas que dizem muito de um mundo que persiste por trás das grandes notícias das grandes cidades, ainda que desapareçam cada vez mais, inundados por barragens para gerar eletricidade para as grandes notícias destas mesmas capitais. Histórias pequenas, mas grandes, de gente pequena, mas grande, perdidas na pequenez crônica do interior. Unem-se a contos que ficarão para sempre como clássicos em minha cabeça, como alguns de Mário de Andrade e Otto Lara Resende, para citar dois com os quais vejo afinidades estilísticas em Bottini.
Por fim vale dizer que, sob sua sutileza, há no livro contos que apontam sim caminhos novos e possíveis para a produção contemporânea, como aqueles exemplares Um Turno de Serviço, que retoma o episódio do Gólgota sob perspectivas bastante singulares, ou Material para um Conto, entremeando história e ficção. O Brasil tem certa obsessão por celebrar apenas os grandes autores de grandes obras, as que possam ocupar mil páginas ou cinco volumes em capa dura e papel-bíblia. Com isso, muitas vezes perde o prazer intenso de escritores discretos como Ettore Bottini, autor de um dos clássicos do século 21 neste Uns Contos. Tento contribuir aqui para que seus contos alcancem capitais e interiores.
Ave Maria, mulheres!
No Brasil, Maria Valéria Rezende desbanca machos famosos e recebe o Prêmio Jabuti por seu romance Quarentas dias (Rio de Janeiro: Alfaguara, 2015). A excelente Márcia Denser reúne seus textos jornalísticos no volume DesEstórias (Curitiba: Kotter Editorial, 2016). Poetas como Angélica Freitas e Ana Martins Marques seguem sendo os poetas lidos com maior paixão dentre os da minha geração, recebendo no ano passado a companhia da portuguesa quase brasileira Matilde Campilho. Os curadores da FLIP, famosos por ignorar o trabalho de mulheres, anunciam que Ana Cristina Cesar (1952-1983) será a homenageada em 2016, a segunda mulher a receber a honraria na história do evento, após Clarice Lispector em 2005. Não entraremos aqui na questão de Ana Cristina Cesar ter tido sua obra lançada recentemente pela Companhia das Letras como motivo. Influência de uma grande editora sobre as decisões do evento? Ao menos escolheram homenagear uma mulher, finalmente.
No âmbito anglófono, discute-se com fervor Clarice Lispector e a tradutora de seus Contos Completos, Katrina Dodson, recebe um prêmio importante da organização PEN. A tradutora americana de Angélica Freitas, Hilary Kaplan, concorria ao prêmio na categoria de poesia. Desde as suas primeiras traduções para o inglês, Hilda Hilst vem angariando seus fãs nos Estados Unidos, também. Em uma mesa redonda em 2014, cuja discussão pode ser lida na revista Music and Literature, tradutores e críticos discutem com paixão a obra da escritora nascida em Jaú e exilada na Casa do Sol, morta 10 anos antes. E tanto Clarice Lispector quanto Hilda Hilst são escritoras que contradizem o que o Norte espera da literatura do Sul. Stephanie Sauer diz na mesa redonda: “Tenho confiança de que o trabalho de Hilst, em especial, tem o poder de desafiar as noções de seu novo público (o norte-americano) do que é a escrita vinda do Brasil, de um Sul imaginado.”
Li ontem um artigo de Daniel Gigena no jornal argentino La Nación mencionando o maravilhoso trabalho de Veronica Stigger [“Mujeres que (se) escriben”, La Nación, 6.3.2016]. Na Espanha, Marília Garcia é traduzida. Na Alemanha, Érica Zíngano. Na França, durante o Salão do Livro de Paris, a imprensa quer saber é de Conceição Evaristo. Em Portugal, nossos conlíngues vão lendo Nina Rizzi, Carla Diacov, Adelaide Ivánova. Do pó de sebos, do escuro de gavetas, da miopia crítica de universidades e jornais, vão ressurgindo as obras de Patrícia Galvão, Henriqueta Lisboa, Maura Lopes Cançado, Carolina Maria de Jesus, Stela do Patrocínio, Hilda Machado, graças aos esforços de uns loucos apaixonados.
Como falar sobre a Literatura Brasileira Contemporânea sem mencionar prosadoras como Zulmira Ribeiro Tavares e Ana Maria Gonçalves? Poetas como Elisabeth Veiga e Lu Menezes? Os trabalhos cruzando fronteiras entre gêneros, como os de Laura Erber, Fabiana Faleiros e Luísa Nóbrega? Não há poeta de minha geração de quem eu espere textos com mais avidez do que Juliana Krapp. São estes alguns dos nomes que comandam minha atenção quando penso na produção literária do país.
Já se foram os dias em que o país se espantava com a obra de uma mulher como Francisca Júlia e insinuava nos jornais que aquilo não poderia ter sido escrito por uma mulher, que só podia ser coisa de homem, era bom demais. Francisca Júlia casou-se, calou-se, e jamais saberemos os motivos. Suicidou-se em 1920 e Deus sabe o que se fez de seus papeis, se os havia. Cecília Meireles segue sendo nossa poeta mais famosa, ao menos o era enquanto eu crescia, ainda que sua obra não seja tão mencionada nos dias de hoje. Mas a concretude e música áspera de seus melhores poemas ainda estão entre nossas melhores tentativas de redenção neste país de assassinos.
Desenho
Cecília Meireles
Pescador tão entretido
numa pedra ao sol,
esperando o peixe ferido
pelo teu anzol,
há um fio do céu descido
sobre o teu coração:
de longe estás sendo ferido
por outra mão.
Quantos escritores brasileiros se arriscaram mais do que Clarice Lispector em A Maçã no Escuro (1951)? Do que Hilda Hilst em Qadós (1973)? Neste Dia Internacional, celebro estas mulheres que têm me ensinado a pensar sem que me esquecer que o pensamento apenas pode ocorrer em um corpo. As matriarcas mortas e, principalmente, as guerreiras vivas. As de agora. Aquelas com quem compartilho oxigênio, cidadania, e nossa falta de oxigênio e falta de cidadania. Obrigado, Maria Valéria Rezende e Ana Maria Gonçalves. Zulmira Ribeiro Tavares e Lygia Fagundes Telles. Márcia Denser e Miriam Alves. Conceição Evaristo e Veronica Stigger. Lu Menezes e Elisabeth Veiga. Marília Garcia e Érica Zíngano. Angélica Freitas e Luísa Nóbrega. Obrigado.
atributos
Juliana Krapp
Gostaria de ser uma mulher
que soubesse identificar um brocado
uma cerzidura um carmesim um
adorno
em matelassê
No comércio
a palavra aviamentos me lembra
de que há todo um reino de malícias
que desconheço
– penso
não em ilhós
mas em aves aquáticas
artefatos explosivos
Gostaria
de poder dizer: vamos desenlaçar
o cordão do meu quimono vamos
providenciar castanhas doces
para o grande banquete
e nos deitar sob o dossel à espreita
das comissuras
que ardem na pele
Porém
eu estou atada
ao mundo da sonolência
e das cintilações breves
da louça quebradiça e da mixórdia
– ao lugar
das mulheres e bichos
que se espatifam n’água
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